Aproveite esta promoção, nova Torah 2014.

Imuno-hai

Home / Acervo / Blog
A+ R A-

Warning: Creating default object from empty value in /home/centrodeestudosprofeticos/www/components/com_k2/views/itemlist/view.html.php on line 145

Warning: Creating default object from empty value in /home/centrodeestudosprofeticos/www/components/com_k2/models/item.php on line 445
Robespierre Cardoso da Cunha

Robespierre Cardoso da Cunha

Shalom.

Grande paz, bondade, bênção, graça, gentileza e compaixão sobre nós. Abençoa-nos, nosso Pai, todos nós como um só, com a luz do Teu rosto, pois com a luz do teu rosto nos deste, Adonai, nosso Elohim, a Torá da vida e amor de bondade, justiça, bênção, compaixão, vida e paz. E isto pode ser bom diante de Teus olhos para abençoar Teu povo a cada momento e a cada hora com a Tua paz. Bendito és Tu, Elohim, que abençoa todo o teu povo com paz.

URL do website: http://centrodeestudosprofeticos.com.br/ E-mail: Este endereço de e-mail está protegido contra spambots. Você deve habilitar o JavaScript para visualizá-lo.

TESTEMUNHAS DE JEOVÁ E MAÇONARIA – QUAL A CONEXÃO?

Ter, 30 de Agosto de 2011 00:39 Publicado em Estudos
Pr. Hélio Eduardo de Souza *
CARTAS RESPONDIDAS
A Sociedade Torre de Vigia respondendo a um leitor sobre a existência de uma pirâmide de granito com cerca de 2 metros de altura junto ao túmulo do seu fundador e primeiro presidente, Sr. Charles Taze Russell, e a hipótese dele ter se envolvido com a Maçonaria, respondeu o seguinte:
a) Que realmente existe uma pirâmide junto ao túmulo do Sr, Russell, em Ross, EUA, mas que foi construída por parentes e amigos de Russell de Pittsburgo, onde Russell nasceu e se criou. Afirma, ainda, que entre esses amigos uns eram políticos e comerciantes de sua cidade natal. Contudo não sabe explicar por que motivo eles decidiram homenagear Russell com uma pirâmide.
b) Quanto ao fato dos diretores da Sociedade Torre de Vigia serem maçons, dizem ser totalmente infundado. Porém, a Sociedade afirma que infelizmente não tem literatura que fale sobre a Maçonaria.
Em face da resposta negativa da Sociedade (como era de se esperar) analisaremos os seguintes pontos sobre a carta e outros detalhes dessa organização religiosa no decorrer da sua história:
1) Em cartas anteriores, a Sociedade afirmava desconhecer o fato de haver uma pirâmide junto ao túmulo do Sr. Russell. Embora seja conhecido desde 1916 por muitos jornais norte-americanos e as próprias Testemunhas de Jeová nos EUA. Interessante é que, respondendo a um outro leitor, a Sociedade disse que “aquela pirâmide pode ser vista por qualquer um que for visitar o túmulo de Russell, e que foi ele mesmo que encomendou aquela pirâmide antes de morrer”, de modo que a Sociedade não poderia removê-la de lá.
2) Agora, numa outra carta, afirma que nem Russell nem a Sociedade teve nada que ver com a construção daquela pirâmide. Qual da três cartas fala a verdade?
LIGAÇÃO COM PRÁTICAS MAÇÔNICAS
Na verdade, a Sociedade Torre de Vigia está procurando esconder algo mais além da mera pirâmide – ou seja, a sua ligação com práticas maçônicas. Isto pode até parecer fantasia, mas veja as evidências:
a) A pirâmide em si já é um símbolo profundamente esotérico. Tal símbolo pode ser visto na cédula de um dólar americano, como homenagem dos maçons norte-americanos. O simbolismo da pirâmide é grande em qualquer literatura esotérica ou maçônica. De fato, Russell se envolveu com a Maçonaria Templária em 1891, através dos irmãos John Edgar e Morton Edgar, que estudavam os segredos da pirâmide de Gizé, no Egito. De acordo com os livros “Venha o Teu Reino”, de 1905, de Russell, e “Os Corredores da Grande Pirâmide”, dos irmãos Edgar, (ambos em inglês), as Testemunhas de Jeová daquela época tinham por hábito estudar um mapa com várias pirâmides e datas proféticas. Era o que se chamava de “O Plano Divino das Eras”, ou “A Tabela da Pirâmide”. Isto pode ser verificado no livro “Proclamadores”, página 162, editado pela Sociedade Torre de Vigia. O próprio John Edgar se tornou um TJ, na cidade de Glasgow (confira na revista Sentinela, de 01/05/1987, p.24).
b) Mas a Sociedade alega que foram parentes e amigos de Russell os responsáveis pela pirâmide junto ao seu túmulo. Entretanto, a Sociedade se esqueceu que aquele lote no cemitério é de sua propriedade e, ademais, os símbolos incrustados na lápide são também sua propriedade. (Seria bom conferir o livro Proclamadores, p.64). Ora, poderia alguém erigir um monumento obscuro em sua propriedade, sem a sua autorização, e você ainda ficaria impedido de removê-lo?
c) A Sociedade Torre de Vigia alega que não tem nenhuma literatura que aborde o assunto Maçonaria, exceto uma experiência atual e sem expressão de um certo africano que pertenceu a uma loja maçônica antes de se tornar TJ. Será que em seus anos de existência, tendo abordado e criticado negativamente os mais diferentes ramos das religiões e seitas, a Sociedade Torre de Vigia nunca parou para discutir sobre algo que é tão comentado como a Maçonaria?
SÍMBOLOS MAÇÔNICOS E ESOTÉRICOS
Além do que já foi analisado nas próprias respostas da Sociedade, vejamos outros indícios curiosos que nos levam a crer que há uma ligação secreta entre a cúpula fechada da Sociedade Torre de Vigia e a Maçonaria, uma sociedade secreta de cunho humanista e deísta:
a) O símbolo da cruz e coroa que aparece na pirâmide junto ao túmulo de Russell, na verdade é um símbolo, ou “jóia” dos Cavaleiros Templários, que corresponde ao 18º grau do Rito Escocês da Maçonaria (pertenceria Russell a esse grau?). Também em seu túmulo podemos ver outros elementos maçônicos como os ramos de acácia e lírios do campo, além do formato da tumba com as duas colunas maçônicas, ou pedra fundamental (cúbica).
b) A cruz e a coroa e a armadura medieval eram dois símbolos que apareciam nos cantos superiores da revista Sentinela. Igualmente tais símbolos são do grau 18 da maçonaria.
c) O sol alado (com asas) também aparece em alguns livros e revistas antigos da Sociedade Torre de Vigia. Trata-se de símbolo teósofo usado pela Maçonaria, Rosa Cruz, Teosofia, Ciência Cristã, etc. (Veja o livro Proclamadores, p. 88)
d) No Anuário das Testemunhas de Jeová, de 1994, p.9, aparece a fotografia dos veteranos diretores dessa organização. Eles estão sentados numa forma típica dos maçons sentarem-se em suas reuniões secretas, conforme se vê no Manual do Mestre Maçom, de M. Gomes, p.79, Editora Aurora, que diz: “os maçons devem sentar-se com as palmas das mãos sobre as coxas, sem cruzar as pernas”. (Uma homenagem a Osíris)
e) Em alguns desenhos das revistas e livros da Sociedade Torre de Vigia aparecem, de forma subliminar, certas letras esotéricas traçadas de forma a se confundirem com a paisagem do desenho. Tais letras são evocações cabalísticas de cunho gnóstico, com o objetivo de identificar a Sociedade Torre de Vigia com outras organizações irmãs. Também, há certos sinais executados nos dedos das mãos dos personagens, que já foram usados na Maçonaria do século XVIII. Tais símbolos apareceram nas obras de Aleijadinho e outros pintores renascentistas célebres – todos eles alquimistas.
AS DUAS CLASSES – CELESTIAL E TERRESTRE
Já em 1865, antes da criação da Sociedade Torre de Vigia, ensinava-se nos meios esotéricos que haveria duas classes de salvos: uma classe terrestre e outra celeste. Os irmãos Edgar chegaram a esta conclusão por descobrirem que o sarcófago do Faraó Quéops ficava num compartimento superior ao da rainha, no interior da pirâmide de Gizé. Deste modo, idealizaram as duas classes de salvos. Mais tarde, em 1935, o Sr. J. F. Rutherford usou essa teoria para criar a “Grande Multidão” e o “Pequeno Rebanho de 144 mil ungidos para a vida celestial”. (Veja o livro “As Profecias da Pirâmide”, de Max Toth, ed. Record, p.210/211).
O PARAÍSO TERRESTRE
No ritual do grau 19, da Maçonaria, diz-se que a proposta da maçonaria é criar um paraíso terrestre a partir do conhecimento e crescimento intelectual dos homens, através das lojas maçônicas espalhadas pelo mundo. Seria este paraíso terrestre também pregado pela Sociedade Torre de Vigia?
REUNIÕES DAS TJs EM LOJAS MAÇÔNICAS
Todos estes fatos, aliados ainda ao fato de que Russell e seus seguidores realizavam reuniões públicas dentro de lojas maçônicas, corroboram a tese de que a Sociedade Torre de Vigia é um agente das trevas a serviço da maçonaria e outras sociedades secretas que servem à Nova Era.
(março/99)

Pr. Hélio Eduardo de Souza

*CARTAS RESPONDIDASA

Sociedade Torre de Vigia respondendo a um leitor sobre a existência de uma pirâmide de granito com cerca de 2 metros de altura junto ao túmulo do seu fundador e primeiro presidente, Sr. Charles Taze Russell, e a hipótese dele ter se envolvido com a Maçonaria, respondeu o seguinte:a) Que realmente existe uma pirâmide junto ao túmulo do Sr, Russell, em Ross, EUA, mas que foi construída por parentes e amigos de Russell de Pittsburgo, onde Russell nasceu e se criou. Afirma, ainda, que entre esses amigos uns eram políticos e comerciantes de sua cidade natal. Contudo não sabe explicar por que motivo eles decidiram homenagear Russell com uma pirâmide.b) Quanto ao fato dos diretores da Sociedade Torre de Vigia serem maçons, dizem ser totalmente infundado. Porém, a Sociedade afirma que infelizmente não tem literatura que fale sobre a Maçonaria.Em face da resposta negativa da Sociedade (como era de se esperar) analisaremos os seguintes pontos sobre a carta e outros detalhes dessa organização religiosa no decorrer da sua história:1) Em cartas anteriores, a Sociedade afirmava desconhecer o fato de haver uma pirâmide junto ao túmulo do Sr. Russell. Embora seja conhecido desde 1916 por muitos jornais norte-americanos e as próprias Testemunhas de Jeová nos EUA. Interessante é que, respondendo a um outro leitor, a Sociedade disse que “aquela pirâmide pode ser vista por qualquer um que for visitar o túmulo de Russell, e que foi ele mesmo que encomendou aquela pirâmide antes de morrer”, de modo que a Sociedade não poderia removê-la de lá.2) Agora, numa outra carta, afirma que nem Russell nem a Sociedade teve nada que ver com a construção daquela pirâmide. Qual da três cartas fala a verdade?LIGAÇÃO COM PRÁTICAS MAÇÔNICASNa verdade, a Sociedade Torre de Vigia está procurando esconder algo mais além da mera pirâmide – ou seja, a sua ligação com práticas maçônicas. Isto pode até parecer fantasia, mas veja as evidências:a) A pirâmide em si já é um símbolo profundamente esotérico. Tal símbolo pode ser visto na cédula de um dólar americano, como homenagem dos maçons norte-americanos. O simbolismo da pirâmide é grande em qualquer literatura esotérica ou maçônica. De fato, Russell se envolveu com a Maçonaria Templária em 1891, através dos irmãos John Edgar e Morton Edgar, que estudavam os segredos da pirâmide de Gizé, no Egito. De acordo com os livros “Venha o Teu Reino”, de 1905, de Russell, e “Os Corredores da Grande Pirâmide”, dos irmãos Edgar, (ambos em inglês), as Testemunhas de Jeová daquela época tinham por hábito estudar um mapa com várias pirâmides e datas proféticas. Era o que se chamava de “O Plano Divino das Eras”, ou “A Tabela da Pirâmide”. Isto pode ser verificado no livro “Proclamadores”, página 162, editado pela Sociedade Torre de Vigia. O próprio John Edgar se tornou um TJ, na cidade de Glasgow (confira na revista Sentinela, de 01/05/1987, p.24).b) Mas a Sociedade alega que foram parentes e amigos de Russell os responsáveis pela pirâmide junto ao seu túmulo. Entretanto, a Sociedade se esqueceu que aquele lote no cemitério é de sua propriedade e, ademais, os símbolos incrustados na lápide são também sua propriedade. (Seria bom conferir o livro Proclamadores, p.64). Ora, poderia alguém erigir um monumento obscuro em sua propriedade, sem a sua autorização, e você ainda ficaria impedido de removê-lo?c) A Sociedade Torre de Vigia alega que não tem nenhuma literatura que aborde o assunto Maçonaria, exceto uma experiência atual e sem expressão de um certo africano que pertenceu a uma loja maçônica antes de se tornar TJ. Será que em seus anos de existência, tendo abordado e criticado negativamente os mais diferentes ramos das religiões e seitas, a Sociedade Torre de Vigia nunca parou para discutir sobre algo que é tão comentado como a Maçonaria?SÍMBOLOS MAÇÔNICOS E ESOTÉRICOSAlém do que já foi analisado nas próprias respostas da Sociedade, vejamos outros indícios curiosos que nos levam a crer que há uma ligação secreta entre a cúpula fechada da Sociedade Torre de Vigia e a Maçonaria, uma sociedade secreta de cunho humanista e deísta:a) O símbolo da cruz e coroa que aparece na pirâmide junto ao túmulo de Russell, na verdade é um símbolo, ou “jóia” dos Cavaleiros Templários, que corresponde ao 18º grau do Rito Escocês da Maçonaria (pertenceria Russell a esse grau?). Também em seu túmulo podemos ver outros elementos maçônicos como os ramos de acácia e lírios do campo, além do formato da tumba com as duas colunas maçônicas, ou pedra fundamental (cúbica).b) A cruz e a coroa e a armadura medieval eram dois símbolos que apareciam nos cantos superiores da revista Sentinela. Igualmente tais símbolos são do grau 18 da maçonaria.c) O sol alado (com asas) também aparece em alguns livros e revistas antigos da Sociedade Torre de Vigia. Trata-se de símbolo teósofo usado pela Maçonaria, Rosa Cruz, Teosofia, Ciência Cristã, etc. (Veja o livro Proclamadores, p. 88)d) No Anuário das Testemunhas de Jeová, de 1994, p.9, aparece a fotografia dos veteranos diretores dessa organização. Eles estão sentados numa forma típica dos maçons sentarem-se em suas reuniões secretas, conforme se vê no Manual do Mestre Maçom, de M. Gomes, p.79, Editora Aurora, que diz: “os maçons devem sentar-se com as palmas das mãos sobre as coxas, sem cruzar as pernas”. (Uma homenagem a Osíris)e) Em alguns desenhos das revistas e livros da Sociedade Torre de Vigia aparecem, de forma subliminar, certas letras esotéricas traçadas de forma a se confundirem com a paisagem do desenho. Tais letras são evocações cabalísticas de cunho gnóstico, com o objetivo de identificar a Sociedade Torre de Vigia com outras organizações irmãs. Também, há certos sinais executados nos dedos das mãos dos personagens, que já foram usados na Maçonaria do século XVIII. Tais símbolos apareceram nas obras de Aleijadinho e outros pintores renascentistas célebres – todos eles alquimistas.AS DUAS CLASSES – CELESTIAL E TERRESTREJá em 1865, antes da criação da Sociedade Torre de Vigia, ensinava-se nos meios esotéricos que haveria duas classes de salvos: uma classe terrestre e outra celeste. Os irmãos Edgar chegaram a esta conclusão por descobrirem que o sarcófago do Faraó Quéops ficava num compartimento superior ao da rainha, no interior da pirâmide de Gizé. Deste modo, idealizaram as duas classes de salvos. Mais tarde, em 1935, o Sr. J. F. Rutherford usou essa teoria para criar a “Grande Multidão” e o “Pequeno Rebanho de 144 mil ungidos para a vida celestial”. (Veja o livro “As Profecias da Pirâmide”, de Max Toth, ed. Record, p.210/211).O PARAÍSO TERRESTRENo ritual do grau 19, da Maçonaria, diz-se que a proposta da maçonaria é criar um paraíso terrestre a partir do conhecimento e crescimento intelectual dos homens, através das lojas maçônicas espalhadas pelo mundo. Seria este paraíso terrestre também pregado pela Sociedade Torre de Vigia?REUNIÕES DAS TJs EM LOJAS MAÇÔNICASTodos estes fatos, aliados ainda ao fato de que Russell e seus seguidores realizavam reuniões públicas dentro de lojas maçônicas, corroboram a tese de que a Sociedade Torre de Vigia é um agente das trevas a serviço da maçonaria e outras sociedades secretas que servem à Nova Era.Pr. Hélio Eduardo de Souza foi TJ por 21 anos - E-mail: Este endereço de e-mail está protegido contra spambots. Você deve habilitar o JavaScript para visualizá-lo. . Telefone: (27) 3732-4877.(março/99)

 

O Nome Kadosh

Ter, 30 de Agosto de 2011 00:36 Publicado em Estudos
YHWH
Expressão como Ye’chua, Lê-se Yerrua Eu Sou Espírito. Não se deve Ler como Ye’shua
Lido da direita para esquerda:- הוהי – YHWH
iud) ה(H(r)ê) ו(Vav) ה(H(r)ê).
O Nome do Eterno nas Escrituras Hebraicas, o Tetragrama, lê-se “Há’Shem(i)”. Este é o som que recomendamos para as leituras públicas e diálogos verbais. Pronunciando o “Há” como o fonema da palavra “Razão” e o “Shem” do verbo chegar e uma menção tão leve da vogal “I” a ponto do fonema dela confundir-se com a vogal “E” Há’Shem(i)(Rachem(i), que traduzido para português quer dizer “O Nome” é atribuída ao “ETERNO” dAquele que no universo ilimitado do puro hebraísmo é o Absoluto, o Criador e de Eternidade a Eternidade a Causa Causadora, O Ser Eternissímo, bem como o Único Princípio Eternizante, nosso Pai Celestial, o Eterno.
Entre Judeus e Hebraístas é comum mencionar e registrar “Há’Shem” diante da ocorrência do Tetragrama, ainda que muitos prefiram mencioná-lo como Eterno ou outro título de grandeza. Nisto, elogiamos e concordamos com nossos conterrâneos mestres, estudantes e apreciadores. Entretanto, Há’Shem é mencionado há mais de cinco mil anos.
Já no que diz respeito ao uso dos Nomes: Javé, Jeová ou outros iniciados com a consoante “J”, advertimos que são deturpações abusivas dos sons originais. Cabe-nos recordar aos interessados que “Je” e “Ja” não eram fonemas no hebraico original, inclusive em todos os nomes citados na bíblia ou outras fontes. “Javé”, pelas respectivas razões literárias, fonéticas e morfo - lingüísticas é estranho ao mundo Hebraico.
Adjetivos usados nos respectivos idiomas como, por exemplo: Senhor, Eterno, Absoluto, é permitido usar, desde que não se choquem com a cultura hebraica e não se torne uma substituição definitiva para o Tetragrama.
Em relação ao termo “Deus”, convidamos ao estudante das Escrituras a exercer o Máximo da sua atenção espiritual, e mesmo a orar para ampliar a pureza de suas motivações e intenções. Eis o que é digno de tão séria meditação e dedicação:
“Deus” do grego “Zeus” cujas declinações:
ό Zεύ – Ó Zeu
ώ Ζεσς- Pronúncia “ZEUS” o mesmo que “Iupiter” para os Romanos.
Δίος- Díos
Διί- Dií
Δία – Dia
- 4 -
Da palavra “Zeus” surgiu Théos em grego θέος, que em latim é o mesmo que Júpiter. A palavra “Teologia” surgiu desta raiz pagã, que significa o “Estudo de Deus”, ou seja, “Estudo de Zeus”.
A partir destas declinações anteriormente descritas surgiram palavras latinas como “Deus” dentre muitas outras da mesma natureza. É óbvio que houve uma evolução da língua grega, e alguém o denominou foneticamente por esse nome a partir do egípcio antigo “Zeuth”. Vemos claramente que as formas do sincretismo são muito antigas. Querer justificar que “Zeus” ou “Deus” é o mesmo que Pai dos Céus, e que por isso, não é errado usar esta palavra, é o mesmo que dizer, que na índia, usar o termo na Bíblia Sagrada “Shiva” Salvação dos céus está correto; ou referente a “Buda” considerar a utilização desse termo na “Bíblia” como “Deus” ou ser Poderoso; bem assim, Confúcio em outro País, e assim sucessivamente. Todos esses termos têm origem pagã representando os deuses ligados à adoração ao “Sol”.
No Dicionário: “Deuses e Heróis da Antiguidade Clássica”, de Tassilo Orpheu Spalding (Cultrix Mec) do Ministério da Educação e Cultura, primeira Edição de 1974 pág., 169 a171 podemos observar que:
“Júpiter ou Ζεσς (genitivo Δίος) πατήρ, em grego, que corresponde ao Sânscrito Diaus pitar e ao Latim Ju-ppter (Ju ou Iu-ppiter)”. Diaus significa céu ou luz do céu, (Igual ao sol) que, por sua vez, já indica o caráter desta antiga divindade indo-européia. Para os gregos e Romanos, Júpiter era filho de Saturno e Réia.
O Nome indo-europeu deus ou Deus, que se encontra em Sânscrito, Lituano, antigo prussiano, velho Islandês, galês, Latim e Grego, significa brilhante, inseparável do vocábulo dia, Ζεσς em grego, dies em Latim”.
Isso Transcreve claramente o que diz Isaias 14:12 a 14 “Como caíste dos céus, tu, o resplandecente, filho da alva! Como fostes cortado por terra tu que debilitava as nações! E tu dizias no teu coração: Eu subirei aos céus, acima das estrelas de Elorrim e exaltarei o meu trono. E serei semelhante ao Altíssimo.”
Como vemos a estrela da manhã “Brilhante” ou “Dia” se refere a Ζεσς ou Deus. O culto de Iúpiter ou Zeus graças ao helenismo, estendeu-se à vários povos e a varias línguas.
O Hebraísmo do primeiro século combatia arduamente a maneira Helênica, pois se afastava completamente da “Torah”!... Os helênicos, nunca deixaram de adorar a “Zeus” ou “Deus” enquanto os que amam as Escrituras Hebraicas reconhecem somente Há’Shem. Por esse motivo, não usamos e não recomendamos esse termo fonético grego “Zeus” ou “Deus”.
Por conseguinte, O “Hebraico” é o idioma primordial de toda esfera da vida. Neste idioma está codificada toda a “Criação” do Eterno. Seu nome está inserido no nome de YESHUA, onde Ele se manifesta como Yeh; Eu Sou, Shua; Salvação. “Ehie Asher Ehie” ou O Grande “Eu Sou”; Aquele Que Causa Que Venha A Ser. Quanto à pronúncia, foi amplamente conhecida, enquanto existiu o Templo de Yeruschalayim. Sendo a tradição passada de pai para filho e de mestre para discípulo, com respeito e reverência aos nomes sagrados. Por este motivo, recomenda-se a expressão Há’Shem como melhor forma de preservar a Santidade de Seu Eterno “Nome”.n
1-GLOSSÁRIO: Esta seção destina-se a propiciar uma rápida compreensão dos recursos utilizados na Tradução Peschita.
1. Da transliteração:
Dos fonemas iniciados com H, o som é de um H aspirado, como na palavra Há’Shem ou no artigo definido Há. Em ambos os casos, trata-se de um fonema similar ao do inicial da palavra razão. Já no término exprime um timbre acentuado como se fosse uma leve menção de “r“. No meio das palavras ocorre o som de “rr”
- 7 -
como na palavra carro. Haverá palavras em que o leitor notará o “r” ou “rr” sinalizado entre parênteses, colchetes, ou diretamente escrito no texto.
Quanto ao “sh”, este é o som do “ch” como em “Shem” que pode ser pronunciado “Chem”. Tanto este ocorre nos textos como é substituído por “ch” ou ainda por “sch”. Por que “Sch”?
- “Sch” pode ser simplesmente “ch” como também pode denotar um “s” que precede o “ch” exemplo é o caso de “Rêsch” que fica clara quando transcrita “Rêschi”
No caso do “k”, “Hókmah”, kahal (Karral), Kohem ou T’seduk são palavras que contém o som do “k” como (Qui) Rôquima(r), (Ka) Karral, (C ) Corrém, e (K(i)) Tiseduk(i). Aplicamos diversas sinalizações para facilitar o entendimento da transliteração.
O “w” geralmente exprime som de “v”, mas também pode ser da vogal “u”. O “y” tem função da vogal “i” e muitos outros casos são no próprio texto elucidados por sinalizações entre colchetes ou parênteses.
Exemplos:
A) T’sevaóh – Tisevaó(r); “ti” em português
B) Li’shuóhth’k’ráh- Lischuó(r)ti’kirrá
C) “Ts” ou “Tz”- S, z ou tise, tize
Considerando ser esta obra uma oportunidade de pesquisa e descobertas, que busca acima de tudo esclarecimento e elucidações básicas, recomendamos aos leitores interessados num amplo estudo para domínio do idioma hebraico a procura de instituições israelitas ou reconhecidas pelo Judaísmo. Os benefícios serão amplos e duradouros
2. Do idioma Hebraico:
Nesta tradução, o Hebraico é a única autoridade lingüística desde o Livro Bereschit(i) – Gênesis até Apocalipse – Revelação. O Aramaico é reconhecido e honrosamente apontado como dialeto do próprio do Hebraico, intimamente familiarizado com a estrutura deste. Aperfeiçoamentos futuros desta obra serão profundamente consolidados pelo aumento da compreensão do Universo Hebraísta.
Argumentamos com estudiosos dedicados à uma aberta compreensão de todos os aspectos da vida humana que o Idioma Hebraico contém em sua estrutura fonética todos os idiomas falados pela raça humana, bem como todos os sons presentes nos reinos: Mineral, Vegetal, Animal e Espiritual.
3. Das palavras:
Alef- Primeira letra do Alfabeto Hebraico
Avadon-Pai do cativeiro; alusão a Há’Satan
Adam- Homem feitodeBarro
Av = Pai
Avinu = Pai Nosso/ Nosso Pai
Aba = Pai (aramaico)
Ahaváh = Amor
Ben = Filho
Bar= Filho ( Aramaico)
Bináh= Entendimento
Baal’Zibul- Senhor dos impuros ou Senhor dos demônios
Biney = Filhos
Beihth = Casa
Beith Hamikdash- Casa Sagrada
B´rachá- Bençãos
Chanuká-Festas das Luzes
Chomerim- Plural de Chomer quer dizer: “Pesado”
Cohen- Sacerdote
Ets chain- Árvore daVida
Ischi = Homem
Ischi schar = Mulher
Ruach = Vento/Espírito/sopro
Daymon = Demônio(grego)
Neféschi = Alma
- 8 -
Ketuvim = Escrituras
Kohém = Sacerdote
Gadol = Sumo/Mor/grão(superior)
Navy = Profeta
Navyim = Profetas
Natziri=Nazaré
Mele(r)h = Rei/ Melek/ Malak/Malk
Malkuti = Reino
Mykeveh= Mergulho, Batismo, Imergir.
Kete(r)h = Coroa de reinado
H(R)ésedhi = Misericórdia
Guevuráh = Rigor
Ga’bra- Em Genealogia Pai, Varão etc...
Yarden- Jordão
Lehem ou lechem - Pão
Bináh = Entendimento
Emunah = Fé (somente no contexto judaico)
Êmeth = Verdade ( somente no contexto judaico)
Há/Ham = Artigo definido o/a ;preposição do(a) e ou ainda preposição “de”
Lipekach- Supervisor
Kohanim-Sacerdotes
Ruarh Ha’Kodesch= Espírito, “o Santo”
Melarríms- Anjos
Makulim- lugar para designar açougue cujo dono era gentio, mas cujo açougueiro era Judeu.(Alimento era puro de acordo com a Torah)
Menra- Verbo, segundo os Hebreus é a expressão máxima da manifestação de Elohim, também é o mesmo que consolador e intercessor.
Mikeveh- Imersão; Batismo
Mishpatim – Julgamento
Mtisvá- Mandamento
Yiesha’eyáhu= Isaias
Talmidim- Discípulos
Guehinom= Termo utilizado para se referir tanto ao local de destruição final dos inimigos de Elohim, como também ao Reino de Há’Satan.
Paruschs- Fariseus
Goyim ou Goim = Transliteração da palavra gentio, nações.
Semichá- Autoridade rabínica dada por imposição de mãos
Seder – Serviço do Jantar de Pessach
Sanhedrim- Sinédrio
Suká- Barraca
Shofar- Corneta do chifre do carneiro (Trombeta)
Talit- manto, Judeu se veste (Yeshua Usava o Talit)
Taw- Última letra do alfabeto Hebraico.
t’zeduks= Saduceus
Toráh = Lei/ Pentateuco
Teshuvah- Retorno
Tach’ti- Tido como nível mais baixo do Sheol, cujo lugar habita os anjos caídos. (Destruição final dos melarrim) Segunda Morte.
Tsitsi- Parte do Talit, tem ligação espiritual com os mandamentos.
Yteser Hará- Inclinação ao mal
4. Da Bibliografia:
As obras abaixo relacionadas, além de constarem na relação bibliográfica deste trabalho de pesquisa, são também um acervo de estudo que recomendamos para os que desejam aprofundar suas pesquisas bíblicas.
PERSPICÁCIA PARA COMPRENDER LAS ESCRITURAS,1991, Watch Tower Bible and Tract Society of Pennsylvania. Vols. 1,2.
- 9 -
TRADUCCIÓN DEL NUEVO MUNDO DE LAS SANTAS ESCRITURAS, 1987, Watch Tower Bible and Tract Society of Pennsylvania.
Papiro Ossirrinco Numero 1– (Mat 5:.49-52).
Gramática Grega, S.J .Freire
Dicionário Das Mitologias Européias e Orientais, de Tassilo Orfpheu Spalding(Cultrix /Mec).
Biblia Grega, Trinitarian Bible Society (Printed in the Netherlands).
The Greek, New Testament (Third Edition, by the United Bible Societies) 1985.
Peshita Inglesa, Dr. James S Trimm ( Firist Edition, Israel).
Bíblia Sagrada, Novo Velho Testamento (Traduzida em Português pelo Padre
João Ferreira de Almeida) Sociedade Bíblica do Brasil, 1955.
Os Homens de Qumran, Florentino Garcia Martis e Julio Trebolle Barrera (Editora Vozes)Os Manuscritos do Mar Morto, G.Vermes (Editora Mercúrio, São Paulo)
Dicionário: “ Deuses e Heróis da Antiguidade Clássica”, de Tassilo Orpheu Spalding(Cultrix Mec) do mnistério de Educação e Cultura. Primeira Edição de 1974. pág, 169 a171
As Varias Faces de Jesus , Geza Vermes
Editora Record.
Torah, Judaica.

YHWHExpressão como Ye’chua, Lê-se Yerrua Eu Sou Espírito. Não se deve Ler como Ye’shuaLido da direita para esquerda:- הוהי – YHWHiud) ה(H(r)ê) ו(Vav) ה(H(r)ê).O Nome do Eterno nas Escrituras Hebraicas, o Tetragrama, lê-se “Há’Shem(i)”. Este é o som que recomendamos para as leituras públicas e diálogos verbais. Pronunciando o “Há” como o fonema da palavra “Razão” e o “Shem” do verbo chegar e uma menção tão leve da vogal “I” a ponto do fonema dela confundir-se com a vogal “E” Há’Shem(i)(Rachem(i), que traduzido para português quer dizer “O Nome” é atribuída ao “ETERNO” dAquele que no universo ilimitado do puro hebraísmo é o Absoluto, o Criador e de Eternidade a Eternidade a Causa Causadora, O Ser Eternissímo, bem como o Único Princípio Eternizante, nosso Pai Celestial, o Eterno.Entre Judeus e Hebraístas é comum mencionar e registrar “Há’Shem” diante da ocorrência do Tetragrama, ainda que muitos prefiram mencioná-lo como Eterno ou outro título de grandeza. Nisto, elogiamos e concordamos com nossos conterrâneos mestres, estudantes e apreciadores. Entretanto, Há’Shem é mencionado há mais de cinco mil anos.Já no que diz respeito ao uso dos Nomes: Javé, Jeová ou outros iniciados com a consoante “J”, advertimos que são deturpações abusivas dos sons originais. Cabe-nos recordar aos interessados que “Je” e “Ja” não eram fonemas no hebraico original, inclusive em todos os nomes citados na bíblia ou outras fontes. “Javé”, pelas respectivas razões literárias, fonéticas e morfo - lingüísticas é estranho ao mundo Hebraico.Adjetivos usados nos respectivos idiomas como, por exemplo: Senhor, Eterno, Absoluto, é permitido usar, desde que não se choquem com a cultura hebraica e não se torne uma substituição definitiva para o Tetragrama.Em relação ao termo “Deus”, convidamos ao estudante das Escrituras a exercer o Máximo da sua atenção espiritual, e mesmo a orar para ampliar a pureza de suas motivações e intenções. Eis o que é digno de tão séria meditação e dedicação:“Deus” do grego “Zeus” cujas declinações:ό Zεύ – Ó Zeuώ Ζεσς- Pronúncia “ZEUS” o mesmo que “Iupiter” para os Romanos.Δίος- DíosΔιί- DiíΔία – Dia- 4 -Da palavra “Zeus” surgiu Théos em grego θέος, que em latim é o mesmo que Júpiter. A palavra “Teologia” surgiu desta raiz pagã, que significa o “Estudo de Deus”, ou seja, “Estudo de Zeus”.A partir destas declinações anteriormente descritas surgiram palavras latinas como “Deus” dentre muitas outras da mesma natureza. É óbvio que houve uma evolução da língua grega, e alguém o denominou foneticamente por esse nome a partir do egípcio antigo “Zeuth”. Vemos claramente que as formas do sincretismo são muito antigas. Querer justificar que “Zeus” ou “Deus” é o mesmo que Pai dos Céus, e que por isso, não é errado usar esta palavra, é o mesmo que dizer, que na índia, usar o termo na Bíblia Sagrada “Shiva” Salvação dos céus está correto; ou referente a “Buda” considerar a utilização desse termo na “Bíblia” como “Deus” ou ser Poderoso; bem assim, Confúcio em outro País, e assim sucessivamente. Todos esses termos têm origem pagã representando os deuses ligados à adoração ao “Sol”.No Dicionário: “Deuses e Heróis da Antiguidade Clássica”, de Tassilo Orpheu Spalding (Cultrix Mec) do Ministério da Educação e Cultura, primeira Edição de 1974 pág., 169 a171 podemos observar que:“Júpiter ou Ζεσς (genitivo Δίος) πατήρ, em grego, que corresponde ao Sânscrito Diaus pitar e ao Latim Ju-ppter (Ju ou Iu-ppiter)”. Diaus significa céu ou luz do céu, (Igual ao sol) que, por sua vez, já indica o caráter desta antiga divindade indo-européia. Para os gregos e Romanos, Júpiter era filho de Saturno e Réia.O Nome indo-europeu deus ou Deus, que se encontra em Sânscrito, Lituano, antigo prussiano, velho Islandês, galês, Latim e Grego, significa brilhante, inseparável do vocábulo dia, Ζεσς em grego, dies em Latim”.Isso Transcreve claramente o que diz Isaias 14:12 a 14 “Como caíste dos céus, tu, o resplandecente, filho da alva! Como fostes cortado por terra tu que debilitava as nações! E tu dizias no teu coração: Eu subirei aos céus, acima das estrelas de Elorrim e exaltarei o meu trono. E serei semelhante ao Altíssimo.”Como vemos a estrela da manhã “Brilhante” ou “Dia” se refere a Ζεσς ou Deus. O culto de Iúpiter ou Zeus graças ao helenismo, estendeu-se à vários povos e a varias línguas.O Hebraísmo do primeiro século combatia arduamente a maneira Helênica, pois se afastava completamente da “Torah”!... Os helênicos, nunca deixaram de adorar a “Zeus” ou “Deus” enquanto os que amam as Escrituras Hebraicas reconhecem somente Há’Shem. Por esse motivo, não usamos e não recomendamos esse termo fonético grego “Zeus” ou “Deus”.Por conseguinte, O “Hebraico” é o idioma primordial de toda esfera da vida. Neste idioma está codificada toda a “Criação” do Eterno. Seu nome está inserido no nome de YESHUA, onde Ele se manifesta como Yeh; Eu Sou, Shua; Salvação. “Ehie Asher Ehie” ou O Grande “Eu Sou”; Aquele Que Causa Que Venha A Ser. Quanto à pronúncia, foi amplamente conhecida, enquanto existiu o Templo de Yeruschalayim. Sendo a tradição passada de pai para filho e de mestre para discípulo, com respeito e reverência aos nomes sagrados. Por este motivo, recomenda-se a expressão Há’Shem como melhor forma de preservar a Santidade de Seu Eterno “Nome”.n1-GLOSSÁRIO: Esta seção destina-se a propiciar uma rápida compreensão dos recursos utilizados na Tradução Peschita.1. Da transliteração:Dos fonemas iniciados com H, o som é de um H aspirado, como na palavra Há’Shem ou no artigo definido Há. Em ambos os casos, trata-se de um fonema similar ao do inicial da palavra razão. Já no término exprime um timbre acentuado como se fosse uma leve menção de “r“. No meio das palavras ocorre o som de “rr”- 7 -como na palavra carro. Haverá palavras em que o leitor notará o “r” ou “rr” sinalizado entre parênteses, colchetes, ou diretamente escrito no texto.Quanto ao “sh”, este é o som do “ch” como em “Shem” que pode ser pronunciado “Chem”. Tanto este ocorre nos textos como é substituído por “ch” ou ainda por “sch”. Por que “Sch”?- “Sch” pode ser simplesmente “ch” como também pode denotar um “s” que precede o “ch” exemplo é o caso de “Rêsch” que fica clara quando transcrita “Rêschi”No caso do “k”, “Hókmah”, kahal (Karral), Kohem ou T’seduk são palavras que contém o som do “k” como (Qui) Rôquima(r), (Ka) Karral, (C ) Corrém, e (K(i)) Tiseduk(i). Aplicamos diversas sinalizações para facilitar o entendimento da transliteração.O “w” geralmente exprime som de “v”, mas também pode ser da vogal “u”. O “y” tem função da vogal “i” e muitos outros casos são no próprio texto elucidados por sinalizações entre colchetes ou parênteses.Exemplos:A) T’sevaóh – Tisevaó(r); “ti” em portuguêsB) Li’shuóhth’k’ráh- Lischuó(r)ti’kirráC) “Ts” ou “Tz”- S, z ou tise, tizeConsiderando ser esta obra uma oportunidade de pesquisa e descobertas, que busca acima de tudo esclarecimento e elucidações básicas, recomendamos aos leitores interessados num amplo estudo para domínio do idioma hebraico a procura de instituições israelitas ou reconhecidas pelo Judaísmo. Os benefícios serão amplos e duradouros2. Do idioma Hebraico:Nesta tradução, o Hebraico é a única autoridade lingüística desde o Livro Bereschit(i) – Gênesis até Apocalipse – Revelação. O Aramaico é reconhecido e honrosamente apontado como dialeto do próprio do Hebraico, intimamente familiarizado com a estrutura deste. Aperfeiçoamentos futuros desta obra serão profundamente consolidados pelo aumento da compreensão do Universo Hebraísta.Argumentamos com estudiosos dedicados à uma aberta compreensão de todos os aspectos da vida humana que o Idioma Hebraico contém em sua estrutura fonética todos os idiomas falados pela raça humana, bem como todos os sons presentes nos reinos: Mineral, Vegetal, Animal e Espiritual.3. Das palavras:Alef- Primeira letra do Alfabeto HebraicoAvadon-Pai do cativeiro; alusão a Há’SatanAdam- Homem feitodeBarroAv = PaiAvinu = Pai Nosso/ Nosso PaiAba = Pai (aramaico)Ahaváh = AmorBen = FilhoBar= Filho ( Aramaico)Bináh= EntendimentoBaal’Zibul- Senhor dos impuros ou Senhor dos demôniosBiney = FilhosBeihth = CasaBeith Hamikdash- Casa SagradaB´rachá- BençãosChanuká-Festas das LuzesChomerim- Plural de Chomer quer dizer: “Pesado”Cohen- SacerdoteEts chain- Árvore daVidaIschi = HomemIschi schar = MulherRuach = Vento/Espírito/soproDaymon = Demônio(grego)Neféschi = Alma- 8 -Ketuvim = EscriturasKohém = SacerdoteGadol = Sumo/Mor/grão(superior)Navy = ProfetaNavyim = ProfetasNatziri=NazaréMele(r)h = Rei/ Melek/ Malak/MalkMalkuti = ReinoMykeveh= Mergulho, Batismo, Imergir.Kete(r)h = Coroa de reinadoH(R)ésedhi = MisericórdiaGuevuráh = RigorGa’bra- Em Genealogia Pai, Varão etc...Yarden- JordãoLehem ou lechem - PãoBináh = EntendimentoEmunah = Fé (somente no contexto judaico)Êmeth = Verdade ( somente no contexto judaico)Há/Ham = Artigo definido o/a ;preposição do(a) e ou ainda preposição “de”Lipekach- SupervisorKohanim-SacerdotesRuarh Ha’Kodesch= Espírito, “o Santo”Melarríms- AnjosMakulim- lugar para designar açougue cujo dono era gentio, mas cujo açougueiro era Judeu.(Alimento era puro de acordo com a Torah)Menra- Verbo, segundo os Hebreus é a expressão máxima da manifestação de Elohim, também é o mesmo que consolador e intercessor.Mikeveh- Imersão; BatismoMishpatim – JulgamentoMtisvá- MandamentoYiesha’eyáhu= IsaiasTalmidim- DiscípulosGuehinom= Termo utilizado para se referir tanto ao local de destruição final dos inimigos de Elohim, como também ao Reino de Há’Satan.Paruschs- FariseusGoyim ou Goim = Transliteração da palavra gentio, nações.Semichá- Autoridade rabínica dada por imposição de mãosSeder – Serviço do Jantar de PessachSanhedrim- SinédrioSuká- BarracaShofar- Corneta do chifre do carneiro (Trombeta)Talit- manto, Judeu se veste (Yeshua Usava o Talit)Taw- Última letra do alfabeto Hebraico.t’zeduks= SaduceusToráh = Lei/ PentateucoTeshuvah- RetornoTach’ti- Tido como nível mais baixo do Sheol, cujo lugar habita os anjos caídos. (Destruição final dos melarrim) Segunda Morte.Tsitsi- Parte do Talit, tem ligação espiritual com os mandamentos.Yteser Hará- Inclinação ao mal4. Da Bibliografia:As obras abaixo relacionadas, além de constarem na relação bibliográfica deste trabalho de pesquisa, são também um acervo de estudo que recomendamos para os que desejam aprofundar suas pesquisas bíblicas.PERSPICÁCIA PARA COMPRENDER LAS ESCRITURAS,1991, Watch Tower Bible and Tract Society of Pennsylvania. Vols. 1,2.- 9 -TRADUCCIÓN DEL NUEVO MUNDO DE LAS SANTAS ESCRITURAS, 1987, Watch Tower Bible and Tract Society of Pennsylvania.Papiro Ossirrinco Numero 1– (Mat 5:.49-52).Gramática Grega, S.J .FreireDicionário Das Mitologias Européias e Orientais, de Tassilo Orfpheu Spalding(Cultrix /Mec).Biblia Grega, Trinitarian Bible Society (Printed in the Netherlands).The Greek, New Testament (Third Edition, by the United Bible Societies) 1985.Peshita Inglesa, Dr. James S Trimm ( Firist Edition, Israel).Bíblia Sagrada, Novo Velho Testamento (Traduzida em Português pelo PadreJoão Ferreira de Almeida) Sociedade Bíblica do Brasil, 1955.Os Homens de Qumran, Florentino Garcia Martis e Julio Trebolle Barrera (Editora Vozes)Os Manuscritos do Mar Morto, G.Vermes (Editora Mercúrio, São Paulo)Dicionário: “ Deuses e Heróis da Antiguidade Clássica”, de Tassilo Orpheu Spalding(Cultrix Mec) do mnistério de Educação e Cultura. Primeira Edição de 1974. pág, 169 a171As Varias Faces de Jesus , Geza VermesEditora Record.Torah, Judaica.

 

Mitologia

Ter, 30 de Agosto de 2011 00:33 Publicado em Estudos

Até o final da Segunda Guerra Mundial, o xintoísmo era a religião estatal no Japão. Até mesmo nos dias de hoje, os peregrinos ainda freqüentam os 80 mil templos, orando pela realização dos seus sonhos pessoais. A religião, que não conta com textos sagrados, também venera as árvores, as montanhas e as pedras.

No princípio era o arco-íris. Segundo a narrativa xintoísta da criação, o casal divino - Izanagi e Izanami - sentou-se sobre o arco-íris e mexeu o oceano abaixo deles com uma lança ornada com pérolas. Quando eles retiraram a lança desta mistura primordial, gotas de água caíram sobre a Terra e criaram as ilhas do Japão.

O casal teve filhos, entre eles a deusa solar Amaterasu. De acordo com a lenda, a linhagem da família imperial japonesa pode ser traçada até essa deusa, fazendo do atual imperador do Japão, Akihito, um descendente direto da divindade. O seu pai, Hirohito (1901-1089), foi reverenciado como deus-imperador até o final da Segunda Guerra Mundial.

A gênese mítica do povo japonês vem sendo transmitida através das gerações em antigas narrativas, tendo sido preservada em papel pelos governantes do Japão do século oito quando o sistema chinês de escrita foi introduzido no país. Não obstante, o xintoísmo - que significa literalmente “o caminho dos deuses” - não conta com escrituras sagradas ou ensinamentos formais. Não existem os conceitos de pecado original ou salvação. O foco do xintoísmo é a vida na terra e a singularidade do povo japonês.

O Japão tem cerca de 80 mil templos xintoístas, incluindo o templo Hiraoka Hachimangu na antiga cidade imperial de Kyoto. A cada outono os seguidores comemoram o festival matsuri, em homenagem aos deuses. O nome é uma indicação do caráter oficial dos primeiros desses festivais - o termo japonês matsurigoto também denota assuntos governamentais. No passado, a classe política e o culto xintoísta japoneses estavam estreitamente entrelaçados, sendo que os anciões que chefiavam os clãs eram ao mesmo tempo sumo-sacerdotes a serviço das divindades.

O sacerdote Shusuke Sasaki (50) entra sozinho nos recônditos mais profundos do santuário. Na estrutura de madeira de cumeeira pontuda, os fiéis escutam o cântico monótono em japonês antigo, uma língua que atualmente pouquíssima gente entende. As entonações variam de um templo para outro. Mas, como as orações foram passadas de geração a geração, os monges falam exatamente como os seus ancestrais.

A compreensão dessas palavras não é algo crucial. No Japão os sacerdotes não pregam punições com fogo ou enxofre, e tampouco exigem que as congregações se arrependam por suas vidas de pecado. Os monges são simplesmente um meio para que se rogue benevolência aos deuses. Entre os deuses reverenciados - cada templo presta homenagem à sua própria divindade -, o monge Sasaki naturalmente inclui o tenno, o imperador. Mas ele também invoca os elementos naturais, tais como a camélia, que traz boa sorte. Assim como as religiões primitivas baseadas na natureza, o xintoísmo venera as árvores, os animais, as pedras e as montanhas - incluindo o Monte Fuji, o pico mais alto do Japão. O “caminho dos deuses” não conduz os japoneses para um mundo após a morte; em vez disso guia-os no decorrer das suas vidas na Terra. O objetivo é viver em harmonia com a natureza e limpar a alma com o auxílio da natureza. Por esse motivo, o ritual no templo Hiraoka Hachimangu lembra uma festa. O vinho sagrado de arroz flui e gargalhadas estrondosas ressoam. E ninguém se importa se o monge fumar entre uma cerimônia e outra.

O principal festival tem início depois que o sacerdote deixa o santuário. Se o tempo estiver bom, uma liteira ornamentada com ouro, a residência da divindade, é carregada para fora do templo. Em termos simbólicos, a divindade está se misturando com o povo. Neste ano, choveu. Mas isso não foi por si uma tragédia. Foi apenas o que a natureza sempre teve em mente. Os percussionistas simplesmente fizeram ressoar os seus tambores taiko com mais entusiasmo, lançando um ruidoso convite aos espíritos do bem.

A seguir foi a vez dos torneios de sumô, um evento que sempre agrada as multidões. As origens xintoístas do sumô ainda são visíveis em Tóquio, onde a principal arena possui um telhado como o de um templo. No templo Hiraoka Hachimangu, em Kyoto, jovens semi-nus lutam no ringue; um círculo de areia consagrado. Mas estas justas não são de fato competitivas. Os lutadores estão executando uma dança para os deuses.

Os festivais como o de Hiraoka Hachimangu ocorrem em todo o Japão. Os japoneses têm matsuris para todas as estações e ocasiões. Os festivais modelam as suas rotinas e estados de espírito. Durante essas comemorações, o país altamente urbanizado e repleto de sofisticada tecnologia redescobre as suas raízes antigas. A segunda maior nação industrial do mundo de repente volta a ser um conjunto vasto de comunidades de vilas ancoradas nos templos xintoístas.

O xintoísmo também é único de outras formas. Quando lhes perguntam que religião professam, poucos japoneses se arriscam a afirmar que são exclusivamente xintoístas. Para a maioria deles, “o caminho dos deuses” é uma tradição, e não uma fé. Eles mantém essa tradição apaixonadamente, mas não sentem necessidade de transformá-la em uma religião. Os pais xintoístas levam os filhos a um templo e oram pela boa saúde das crianças: os filhos aos cinco anos, e as filhas aos três e aos sete.

E os mesmos japoneses que mantêm as tradições xintoístas tão fervorosamente são capazes de se casar em uma cerimônia cristã ou de enterrar os seus mortos de acordo com os rituais budistas. Como os japoneses professam várias religiões ao mesmo tempo, o número de fiéis supera a população total em termos estatísticos.

Esse pragmatismo histórico possui raízes históricas. Assim que o budismo migrou para o Japão, vindo da China e da Coréia no século seis, ambas as tradições coexistiam lado a lado. Pequenos santuários xintoístas ainda podem ser encontrados hoje em dia ao lado dos templos budistas. Durante certos períodos os governantes japoneses fizeram do budismo a religião estatal, especialmente no século seis, quando o Japão reorganizou o seu governo e a sua administração segundo o modelo chinês.

Além do budismo, a nação foi influenciada por uma outra religião chinesa, o confucionismo. Os xoguns, os líderes militares do Japão, baseavam o seu poder nos tradicionais valores confucianos da lealdade e da obediência. Eles chegaram ao poder em Edo, a atual Tóquio, no século 17. O imperador morava na remota cidade de Kyoto. O se papel se limitava a confirmar o novo líder.

Em meados do século 19, o Japão abriu-se para o Ocidente, e o xintoísmo foi transformado em um culto nacional. Durante a Restauração Meiji, de 1868, guerreiros defensores de reformas derrubaram o xogun e colocaram no poder o deus-imperador Meiji (1852-1912) na sua posição legal de soberano. Eles introduziram métodos ocidentais que modernizaram o país. Mas esses indivíduos utilizaram os mitos xintoístas para consolidar o regime imperial.

Durante um curto período, o budismo foi considerado um “produto importado”, sendo, conseqüentemente, reprimido. O novo governo colocou os templos xintoístas sob a supervisão do Estado e transformou os sacerdotes em funcionários públicos. Os japoneses tinham que prestar homenagem ao imperador divino, e não a conjuntos de divindades locais, Na escola, as crianças oravam para o retrato do tenno. E nas guerras subseqüentes, os heróicos soldados imperiais encararam a morte gritando “Tenno banzai” - “10 mil vidas para o tenno”.

Em 1869, o exército e a marinha japoneses construíram o templo Yasukuni, em Tóquio. Nesse santuário os guerreiros são reverenciados como divindades xintoístas que sacrificaram as suas vidas pelo tenno. Um portão imponente, construído em aço, em vez de em madeira tradicional, domina a entrada - simbolizando a perversão do suave “caminho dos deus”, que tornou-se uma ideologia marcial durante o período Meiji.

Depois da derrota do Japão na Segunda Guerra Mundial, o templo Yasukuni foi transformado em uma instituição religiosa privada. Mas ele preservou o seu caráter militar: apesar de terem sido executados em 1948, os criminosos de guerra do Japão são reverenciados como deuses xintoístas. Os políticos, incluindo até mesmo o primeiro-ministro Junichiro Koizumi, fazem peregrinações até o templo, gerando protestos dos vizinhos do Japão.

A capitulação após a Segunda Guerra Mundial também marcou o fim de uma era para a monarquia japonesa. Sob pressão do vitorioso Estados Unidos, o imperador Hirohito renunciou explicitamente à sua divindade em 1946. A constituição de pós-guerra - que foi de fato ditada pelos ocupantes norte-americanos - mantém a separação entre religião e Estado. Oficialmente o imperador é visto como um símbolo tanto do Estado quando da unidade do povo japonês.

No seu palácio em Tóquio, o tenno ainda atua como o mais graduado sacerdote xintoísta do Japão. De acordo com a tradição, ele planta arroz no jardim do seu palácio e manda regularmente enviados para os maiores templos do país.

Como parte da insígnia imperial - composta do espelho, da espada e das jóias sagrados -, o espelho fica no templo Ise, na municipalidade de Mie. O templo é dedicado à deusa solar. Um membro da família imperial atua como sumo-sacerdote. Os primeiros-ministros japoneses tradicionalmente visitam esse santuário xintoísta no início do ano.

O tenno reafirmou a sua linhagem a partir da deusa solar na sua coroação em 1990, embora o papel que desempenhou no ritual não tenha sido exibido publicamente. O imperador passou várias horas sozinho dentro de dois salões de madeira especialmente construídos, oferecendo vinho de arroz e pratos santificados ao seu ancestral primordial. Cada salão é dotado de uma cama, na qual - segundo a tradição - o tenno se relaciona com a divindade solar, e renasce nesse processo.

Se os patriotas que lideram o governista Partido Liberal-Democrata tiverem a supremacia, o xintoísmo será ainda mais fortemente privilegiado a fim de conter o declínio da moralidade tradicional na moderna sociedade japonesa.

“O Japão é um país de deuses, que tem o tenno no seu centro”, declarou em 2000 o primeiro-ministro Yoshiro Mori. À época, o seu comentário gerou protestos. Mas, hoje em dia, os pedidos para que se incluam os mitos xintoístas nos textos escolares, promovendo dessa forma a lealdade nacional, têm obtido cada vez mais aprovação.

Apesar desse caráter nacionalista, para muitos japoneses o xintoísmo pouco tem a ver com política. Esses japoneses estão mais interessados em preservar as suas tradições. Durante os feriados do Ano Novo, milhões de pessoas de todas as idades visitam os templos xintoístas para pedir a proteção dos deuses. Os visitantes oram por por si próprios, por suas famílias e até mesmo pelas companhias para as quais trabalham. Um grupo inteiro de trabalhadores pode comparecer junto para orar por bons negócios e altos lucros. Em um ritual simples, eles balançam uma corda dotada de pequenos sinos e jogam as suas esmolas em uma caixa de madeira para oferendas.

Existem espíritos xintoístas para todos os desejos e males. Muito próximo da Bolsa de Valores de Tóquio, o tempo Kabuto atrai investidores e acionistas que oram pelos bons preços das ações. O templo Kitano Tenmangu, em Kyoto, é o preferido dos estudantes e seus parentes, que desejam boas notas e ingresso nas melhores universidades.

O templo Togo, em Tóquio, também é muito popular. O santuário, que atrai japoneses que buscam alívio para todos os tipos de problemas, fica no meio do distrito da moda, o Harakaju, freqüentado pela juventude da cidade.

Muitos jovens pintam o cabelo de amarelo brilhante ou de vermelho radiante, e usam roupas bizarras, como se fossem pessoas que vão a uma festa de Halloween. Poucos parecem dar a mínima para a tradição. O patrono do templo é Heihachiro Togo (1847-1934), um almirante lendário que comandou a marinha imperial no Estreito de Tsushima, em 1905, onde destruiu a frota russa do báltico e acabou de fato com o império tzarista.

Os jovens japoneses em Harajuku pouco sabem sobre a História, e tampouco se preocupam com ela. Mas eles ainda freqüentam o templo em multidões. Para eles, Togo é um ancestral que virou deus e que fará com que os seus sonhos mais seculares, na verdade até carnais, se tornem realidade. Assim sendo eles compram pequenas tábuas de oração que trazem a imagem do almirante barbudo, entalham os seus desejos nelas, e as penduram. Depois disso, postam-se de pé defronte ao templo, fazem duas mesuras, batem palmas duas vezes e fazem mais uma mesura. Eles estão seguindo o chamado da tradição, da mesma forma que gerações de japoneses fizeram antes deles.


Texto : Wieland Wagner

Tradução: UOL

Leia o texto na íntegra aqui.

Enviado em Mitologia, Religião | Nenhum comentário »

O Ritual do Banho

Escrito por Josenildo Marques ligado 16th Março 2007

 

Seja em rios, lagos, termas públicas ou banheiras particulares, banhar-se é um dos rituais mais antigos da humanidade. Além de ter como objetivo a higiene pessoal e a estética, o ato de banhar-se também era e ainda é visto em muitas religiões como um rito de purificação do corpo. O texto abaixo conta um pouco da história desse rito em diferentes lugares e culturas.

Durante a Idade Média, os ocidentais abandonaram os sofisticados rituais de limpeza da Antiguidade e mergulharam numa profunda sujeira. Principalmente por causa da religião, o homem medieval comum achava suficiente tomar um banho por ano. Foi preciso muito tempo - e alguns bons exemplos dos povos orientais e indígenas - para que voltássemos às nossas asseadas origens.

Pesquisadores acreditam que todos os povos, desde tempos imemoriais, tenham praticado alguma forma de higiene pessoal. Os primeiros registros do ato de se banhar individualmente pertencem ao antigo Egito, por volta de 3000 a.C. Os egípcios realizavam rituais sagrados na água e tomavam ao menos três banhos por dia, dedicados a divindades como Thot, deus do conhecimento, e Bes, deus da fertilidade.

“Mais do que limpar o corpo, eles presumiam que a água purificava a alma”, diz o egiptólogo francês Christian Jacq, fundador do Instituto Ramsés, em Paris. “A crença valia tanto para a realeza, cortejada com óleos aromáticos e massagens aplicadas pelos escravos, quanto para as populações mais pobres, que recorriam inclusive a profissionais de rua quando não conseguiam tratar da própria beleza.” O apreço pela higiene é o motivo ao qual arqueólogos atribuem a sobrevivência dos egípcios às pragas e doenças que assolaram a Antiguidade.

A Grécia foi outro local em que os banhos prosperaram. Em Cnossos e Faístos, na ilha de Creta, é possível encontrar bem preservados palácios de 1700 a.C. a 1200 a.C. que, até hoje, surpreendem por suas avançadas técnicas de distribuição da água. “Todo banquete que precisava ser luxuoso incluía uma sessão de banho para os convidados”, explica Georges Vigarello, professor de Ciências da Educação da Universidade de Paris-5.

Embora os gregos tenham iniciado a prática dos banhos públicos no Ocidente, os pioneiros nos balneários coletivos foram os babilônios. A diferença é que, na Grécia, o banho não era motivado apenas pela higiene e espiritualidade. Entre 800 a.C. e 400 a.C., o esporte, particularmente a natação, era um dos três pilares da educação juvenil - ao lado das letras e da música. Bom cidadão era aquele que sabia ler e nadar, como comprovam imagens presentes em centenas de vasos de cerâmica pintados naquela época.

Os romanos herdaram muito da cultura da Grécia, incluindo a adoração pelo banho. Mas, entre eles, esse hábito tomou proporções inéditas. Enquanto construíam um dos maiores impérios de todos os tempos, os romanos levavam a suntuosidade de suas termas (enormes balneários públicos) aos mais diversos lugares.

Clique aqui para ler o artigo acima na íntegra.

Clique aqui para ler sobre como o ritual do banho é praticado por hindus, japoneses, muçulmanos e judeus.

Clique aqui para ler sobre o hábito do banho entre os índios brasileiros.

A foto acima é de Paulo Gama.

 

Enviado em Mitologia, Antropologia, Religião | Nenhum comentário »

Medusa e o Jardim das Hespérides

Escrito por Josenildo Marques ligado 5th Março 2007

 

Na mitologia grega, Medusa (do verbo medein [mesmo radical que dá origem ao nome Medéia ], proteger, guardar; portanto, ‘protetora’, ‘guardiã’) é uma personagem feminina ctônica monstruosa que teve origem em máscaras rituais usadas para afastar maus espíritos. Ela podia transformar qualquer um que olhasse para si em pedra e tinha duas irmãs imortais, Esteno ou Estenusa (”forte”) e Euríale (”aquela do mar vasto e salgado”); as três eram chamadas de Górgonas (”terríveis” ou, segundo alguns, “que rugem alto”).
As referências clássicas às três Gorgonas aparecem em várias histórias: Medusa, Estenusa e Euríale tinham dentes pontiagudos, olhos esbugalhados e línguas saindo para fora da boca, asas de ouro, mãos de bronze e, ao invés de cabelos, cobras venenosas sobre suas cabeças. Eram filhas de Fórcis e Ceto ou, segundo outras histórias, de Tifão e Equídina, todos eles monstros ctônicos do mundo antigo.
Em pinturas de vasos e obras de arte em relevo da Grécia antiga, Medusa e suas irmãs são sempre representadas como seres de formas monstruosas, mas escultores e pintores do século V começaram a personificá-las como criaturas terríveis e simultaneamente belas. A versão do mito de Medusa mais difundida entre nós foi escrita pelo poeta romano Ovídio. Em As Metamorfoses, Medusa é uma belíssima ninfa que é seduzida por Poseidon num templo de Atena e, como castigo, é transformada pela Deusa numa criatura horrenda que podia transformar quem a olhasse numa estátua de pedra.
Para o propósito deste artigo, a versão do mito que nos interessa é a original grega, a de Medusa como guardiã. Se ela era uma guardiã, o que ela protegia? Esta é a pergunta que me trouxe ao que vem a seguir. Segundo Hesíodo, as Górgonas habitavam o Oceano Ocidental, que é como os gregos chamavam o Oceano Atlântico, perto do lugar onde se dizia que estava o Jardim das Hespérides. Segundo o mito, quando Zeus se casou com Hera, ela recebeu de Gaia lindas maças (pomos) como presente de casamento. A pedido de Hera, as maças foram plantadas num jardim bem longínquo no extremo Ocidente e as Hespérides - Egle, Erítia e Héspera - eram ninfas que zelavam por esse Jardim. Diz-se que lá havia uma grande macieira de onde nasciam pomos de ouro, os pomos da imortalidade, que também eram guardados por um dragão de cem cabeças.
As Hespérides também são chamadas de Damas do Oeste, Filhas do Entardecer ou Deusas do Sol Poente. Diz-se que são filhas de Nyx (Noite) e Érebus (Escuridão). Segundo outros relatos, seriam filhas do próprio Zeus, de Atlas ou de Fórcis e Ceto, os pais de Medusa.
É relativamente fácil constatar que há muitas semelhanças entre o Jardim das Hespérides e o Jardim do Éden da mitologia judaica. Em ambos está metaforicamente presente a origem obscura da vida, o princípio de tudo. Ambos são locais da mais sagrada importância imaginável. Na antiga mitologia grega, porém, Deuses e mortais eram muito semelhantes, partilhavam das mesmas faltas, virtudes e paixões. O que os separava era apenas uma qualidade: a imortalidade. Enquanto os seres humanos estavam fadados à morte, os Deuses viveriam ad eternum. Por esse motivo, o Jardim das Hespérides tinha guardiães, entre eles a terrível Medusa, para que só os valorosos conseguissem adentrá-lo para pegar os pomos de ouro da imortalidade. Na mitologia judaica, Deus, Adão e Eva são iguais, passeiam e conversam no Jardim do Éden. Porém, após comerem o fruto proibido da Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal, dissipa-se a similitude e eles são banidos do Jardim, na porta do qual o Deus hebraico põe um querubim (tipo de anjo da mitologia hebraica), armado com uma espada flamejante que apontava para todas as direções. Assim como Medusa, esse querubim é um guardião daquele lugar sagrado.
Assim como muitos outros guardiães, como o querubim ou os guardiães nas entradas de templos budistas, Medusa é um arquétipo do guardião do limiar. Eles guardam a passagem a outro nível de consciência e seu papel é advertir aqueles que querem ultrapassar o limiar para que o façam cônscios.
Entre os raros heróis que conseguiram chegar até o Jardim das Hespérides está Perseu, que decepou a cabeça da Górgona e também Héracles (Hércules), que conseguiu alguns pomos dourados que mais tarde seriam devolvidos por Atena a seu lugar de origem.

Enviado em Arquétipos, Mitologia, Religião | Nenhum comentário »

A Geografia das Religiões

Escrito por Josenildo Marques ligado 15th Fevereiro 2007

 

Esta animação em flash mostra a geografia das principais religiões do mundo inteiro: Hinduísmo, Budismo, Judaísmo, Cristianismo e Islamismo. Períodos de tensão entre elas também são mostrados. É uma apresentação compacta, instrutiva e interessante. Vale a pena vê-la.

Enviado em Mitologia, Religião, História | Nenhum comentário »

Einstein, Ciência e Religião

Escrito por Josenildo Marques ligado 14th Fevereiro 2007

 

Albert Einstein é considerado um dos mais importantes físicos de todos os tempos e também foi um dos pouquíssimos cientistas a torna-se uma celebridade internacional. Ele é amplamente conhecido pela sua maior contribuição à ciência moderna, a Teoria da Relatividade, mas escreveu sobre os mais variados assuntos, entre os quais sobre a relação entre ciência e religião. No texto abaixo, o pensamento de Einstein transita por esse assunto tão complexo e tão atual.

 

 

Ciência e Religião

 

Parte I

 

Durante o século passado e em parte do que o precedeu, a existência de um conflito insolúvel entre conhecimento e crença foi amplamente sustentada. Prevalecia entre mentes avançadas a opinião de que chegara a hora de substituir, cada vez mais, a crença pelo conhecimento; toda crença que não se fundasse ela própria em conhecimento era superstição e, como tal, devia ser combatida. Segundo essa concepção, a função exclusiva da educação seria abrir caminho para o pensamento e o conhecimento, devendo a escola, como o órgão por excelência para a educação do povo, servir exclusivamente a esse fim.

É provável que raramente, ou mesmo nunca, possamos encontrar o ponto de vista racionalista expresso com tanta crueza; pois todo homem sensível veria de imediato o quanto essa formulação é tendenciosa. Mas é conveniente formular uma tese de maneira nua e crua quando se quer aclarar a própria mente com relação a sua natureza.

É verdade que a experiência e o pensamento claro são a melhor maneira de fundamentar as convicções. Quanto a isto, podemos concordar irrestritamente com o racionalista extremado. O ponto fraco dessa concepção, contudo, e que as convicções necessárias e determinantes para nossa conduta e nossos juízos não podem ser encontradas unicamente nessa sólida via cientifica.

Pois o método cientifico não nos pode ensinar outra coisa além do modo como os fatos se relacionam e são condicionados uns pelos outros. A aspiração a esse conhecimento objetivo está entre as mais elevadas de que o homem e capaz, e certamente ninguém pode suspeitar que eu deseje subestimar as realizações e os heróicos esforços do homem nessa esfera.

É igualmente claro, no entanto, que o conhecimento do que é, não abre diretamente a porta para o que deve ser.

Podemos ter o mais claro e completo conhecimento do que é, sem contudo sermos capazes de deduzir disso qual deveria ser a meta de nossas aspirações humanas. O conhecimento objetivo nos fornece poderosos instrumentos para atingir certos fins, mas a meta final em si é a mesma, e o desejo de atingi-la devem emanar de outra fonte. E é praticamente desnecessário defender a idéia de que nossa existência e nossa atividade só adquirem ’sentido’ mediante o estabelecimento de uma meta como essa e dos valores correspondentes. O conhecimento da verdade como tal é maravilhoso, mas é tão pouco capaz de servir de guia que não consegue provar sequer a justificação e o valor da aspiração a esse mesmo conhecimento da verdade.

Aqui defrontamos, portanto, com os limites da concepção puramente racional de nossa existência.

Mas não se deve presumir que o pensamento inteligente não possa desempenhar nenhum papel na formação da meta e de juízos éticos. Quando alguém se dá conta de que certo meio seria útil para a consecução de um fim, isto faz com que o próprio meio se torne um fim. A inteligência elucida para nós a inter-relação entre meios e fins. O mero pensamento não pode, contudo, nos dar uma consciência dos fins últimos e fundamentais. Elucidar esses fins e valores fundamentais é engastá-los firmemente na vida emocional do indivíduo; parece-me, precisamente, a mais importante função que a religião tem a desempenhar na vida social do homem. E se alguém pergunta de onde provém a autoridade desses fins fundamentais, já que eles não podem ser formulados e justificados puramente pela razão, só há uma resposta: eles existem numa sociedade saudável na forma de tradições vigorosas, que agem sobre a conduta, as aspirações e os juízos dos indivíduos; eles existem, isto é, vivem dentro dela, sem que seja preciso encontrar justificação para sua existência. Nascem, não através da demonstração, mas da revelação, por meio de personalidades excepcionais. Não se deve tentar justificá-los, mas antes, sentir, simples e claramente, sua natureza.

Os mais elevados princípios para nossas aspirações e juízos nos são dados pela tradição religiosa judáico-cristã.

Trata-se de uma meta muito elevada, que, com nossos parcos poderes, só podemos atingir de maneira muito insatisfatória, mas que da um sólido fundamento a nossas aspirações e avaliações. Se quiséssemos tirar essa meta de sua forma religiosa e considerar apenas seu aspecto puramente humano, talvez pudéssemos formulá-la assim: desenvolvimento livre e responsável do indivíduo, de modo que ele possa por suas capacidades, com liberdade e alegria a serviço de toda a humanidade.

Não há lugar nisso para a divinização de uma nação, de uma classe, nem muito menos de um indivíduo. Não somos todos filhos de um só pai, como se diz na linguagem religiosa? Na verdade, mesmo a divinização da humanidade, como totalidade abstrata, não estaria no espírito desse ideal. E somente ao indivíduo que é dada uma alma. E o ’sublime’ destino do indivíduo é antes servir que comandar, ou impor-se de qualquer outra maneira.

Se considerarmos mais a substância que a forma, poderemos ver também nestas palavras a expressão da postura democrática fundamental. Ao verdadeiro democrata e tão inviável idolatrar sua nação quanto ao homem religioso, no sentido que damos ao termo.

Qual será então, em tudo isto, a função da educação e da escola? Elas devem ajudar o jovem a crescer num espírito tal que esses princípios fundamentais sejam para ele como o ar que respira. O mero ensino não pode fazer isso.

Se mantermos esses princípios elevados claramente diante de nossos olhos, e os comparamos com a vida e o espírito de nosso tempo, revela-se flagrantemente que a própria humanidade civilizada encontra-se, neste momento, em grave perigo. Nos Estados totalitários, são os próprios governantes que se empenham hoje em destruir esse espírito de humanidade. Em lugares menos ameaçados, são o nacionalismo e a intolerância, bem com a opressão dos indivíduos por meios econômicos, que ameaçam sufocar essas tão preciosas tradições.

A clareza da enormidade do perigo está se difundindo, no entanto, entre as pessoas que pensam, e há uma grande procura de meios que permitam enfrentar o perigo - meios no campo da política nacional e internacional, da legislação, da organização em geral. Esses esforços são, sem dúvida, extremamente necessários. Contudo, os antigos sabiam algo que parecemos ter esquecido. “Todos os meios mostram-se um instrumento grosseiro quando não tem atrás de si um espírito vivo”. Se o desejo de alcançar a meta estiver vigorosamente vivo dentro de nós, porém, não nos faltarão forças para encontrar os meios de alcançar a meta e traduzi-la em atos.

 

 

 

Parte II

 

Não seria difícil chegar a um acordo quanto ao que entendemos por ciência. Ciência é o esforço secular de reunir, através do pensamento sistemático, os fenômenos perceptíveis deste mundo, numa associação tão completa quanto possível. Falando claramente, é a tentativa de reconstrução posterior da existência pelo processo da conceituação.

Mas, quando pergunto a mim mesmo o que é a religião, a resposta não me ocorre tão facilmente. E, mesmo depois de encontrar uma resposta que possa me satisfazer num momento particular, continuo convencido de que nunca consigo, em nenhuma circunstância, criar um acordo, mesmo que muito limitado, entre todos os que refletem seriamente sobre essa questão.

De início, portanto, em vez de perguntar o que é religião, eu preferiria indagar o que caracteriza as aspirações de uma pessoa que me dá a impressão de ser religiosa: uma pessoa religiosamente esclarecida parece-me ser aquela que, tanto quanto lhe foi possível, libertou-se dos grilhões, de seus desejos egoístas e está preocupada com pensamentos, sentimentos e aspirações a que se apega em razão de seu valor suprapessoal. Parece-me que o que importa é a força desse conteúdo suprapessoal, e a profundidade da convicção na superioridade de seu significado, quer se faça ou não alguma tentativa de unir esse conteúdo com um Ser divino, pois, de outro modo, não poderíamos considerar Buda e Spinoza como personalidades religiosas. Assim, uma pessoa religiosa é devota no sentido de não ter nenhuma dúvida quanto ao valor e eminência dos objetivos e metas suprapessoais que não exigem nem admitem fundamentação racional. Eles existem, tão necessária e corriqueiramente quanto ela própria. Nesse sentido, a religião é o antiquíssimo esforço da humanidade para atingir uma clara e completa consciência desses valores e metas e reforçar e ampliar incessantemente seu efeito. Quando concebemos a religião e a ciência segundo estas definições, um conflito entre elas parece impossível. Pois a ciência pode apenas determinar o que é, não o que deve ser, está fora de seu domínio, todos os tipos de juízos de valor continuam sendo necessários. A religião, por outro lado, lida somente com avaliações do pensamento e da ação humanos: não lhe é lícito falar de fatos e das relações entre os fatos. Segundo esta interpretação, os famosos conflitos ocorridos entre religião e ciência no passado devem ser todos atribuídos a uma apreensão equivocada da situação descrita.

Um conflito surge, por exemplo, quando uma comunidade religiosa insiste na absoluta veracidade de todos os relatos registrados na Bíblia. Isso significa uma intervenção da religião na esfera da ciência; é aí que se insere a luta da Igreja contra as doutrinas de Galileu e Darwin. Por outro lado, representantes da ciência tem constantemente tentado chegar a juízos fundamentais com respeito a valores e fins com base no método científico, pondo-se assim em oposição a religião. Todos esses conflitos nasceram de erros fatais.

Ora, ainda que os âmbitos da religião e da ciência sejam em si claramente separados um do outro, existem entre os dois fortes relações recíprocas e dependências. Embora possa ser ela o que determina a meta, a religião aprendeu com a ciência, no sentido mais amplo, que meios poderão contribuir para que se alcancem as metas que ela estabeleceu. A ciência, porém, só pode ser criada por quem esteja plenamente imbuído da aspiração e verdade, e ao entendimento. A fonte desse sentimento, no entanto, brota na esfera da religião. A esta se liga também a fé na possibilidade de que as regulações válidas para o mundo da existência sejam racionais, isto é, compreensíveis à razão.

Não posso conceber um autêntico cientista sem essa fé profunda. A situação pode ser expressa por uma imagem: a ciência sem religião e aleijada, a religião sem ciência e cega.

Embora eu tenha afirmado acima que um conflito legítimo entre religião e ciência não pode existir verdadeiramente, devo fazer uma ressalva a esta afirmação, mais uma vez, num ponto essencial, com referencia ao conteúdo efetivo das religiões históricas. Esta ressalva tem a ver com o conceito de Deus. Durante o período juvenil da evolução espiritual da humanidade, a fantasia humana criou a sua própria imagem ‘deuses’ que, por seus atos de vontade, supostamente determinariam ou, pelo menos, influenciariam o mundo fenomênico. O homem procurava alterar a disposição desses deuses a seu próprio favor, por meio da magia e da prece. A idéia de Deus, nas religiões ensinadas atualmente, é uma sublimação dessa antiga concepção dos deuses. Seu caráter antropomórfico se revela, por exemplo, no fato de os homens recorrerem ao Ser Divino em preces, a suplicarem a realização de seus desejos.

Certamente, ninguém negará que a idéia da existência de um Deus pessoal, onipotente, justo e todo-misericordioso é capaz de dar ao homem consolo, ajuda e orientação; e também, em virtude de sua simplicidade, acessível as mentes menos desenvolvidas. Por outro lado, porem, esta idéia traz em si aspectos vulneráveis e decisivos, que se fizeram sentir penosamente desde o início da história. Ou seja, se esse ser é onipotente, então tudo o que acontece, aí incluídos cada ação, cada pensamento, cada sentimento e aspiração do homem, é também obra Sua; nesse caso, como é possível pensar em responsabilizar o homem por seus atos e pensamentos perante esse Ser ‘todo-poderoso’?

Ao distribuir punições e recompensas, Ele estaria, até certo ponto, julgando a Si mesmo. Como conciliar isso com a bondade e a justiça a Ele atribuídas?

A principal fonte dos conflitos atuais entre as esferas da religião e da ciência reside nesse conceito de um Deus pessoal. A ciência tem por objetivo estabelecer regras gerais que determinem a conexão recíproca de objetos e eventos no tempo e no espaço. A validade absolutamente geral dessas regras, ou leis da natureza, e algo que se pretende - mas não se prova. Trata-se sobretudo de um projeto, e a confiança na possibilidade de sua realização, por princípio, funda-se apenas em sucessos parciais. Seria difícil, porém, encontrar alguém que negasse esses sucessos parciais e os atribuísse a ilusão humana. O fato de sermos capazes, com base nessas leis, de predizer o comportamento temporal dos fenômenos de certos domínios, com grande precisão e certeza, está profundamente enraizado na consciência do homem moderno, ainda que possamos ter apreendido muito pouco do conteúdo dessas leis. Basta considerarmos que as trajetórias planetárias do sistema solar podem ser antecipadamente calculadas, com grande exatidão, com base num número limitado de leis simples. De maneira similar, embora não com a mesma precisão, é possível calcular antecipadamente o modo de funcionamento de um motor elétrico, de um sistema de transmissão ou de um aparelho de rádio, mesmo quando estamos lidando com uma invenção inédita.

É bem verdade que, quando o número de fatores em jogo num complexo fenomenólogico é grande demais, o método científico nos decepciona na maioria dos casos. Basta pensarmos nas condições do tempo, cuja previsão, mesmo para alguns dias à frente, é impossível. Ninguém duvida, contudo, de que estamos diante de uma conexão causal cujos componentes causais nos são essencialmente conhecidos. As ocorrências nessa esfera estão fora do alcance da predição exata por causa da multiplicidade de fatores em ação, e não por alguma falta de ordem na natureza.

Penetramos muito menos profundamente nas regularidades que prevalecem no âmbito das coisas vivas, mas o suficiente, de todo modo, para pelo menos perceber a existência de uma regra necessária. Basta pensarmos na ordem sistemática presente na hereditariedade e no efeito que provocam os venenos - como o álcool, por exemplo - no comportamento dos seres orgânicos. O que ainda falta aqui é uma compreensão de caráter profundamente geral das conexões, não um conhecimento da ordem enquanto tal.

Quanto mais o homem esta imbuído da regularidade ordenada de todos os eventos, mais firme se torna sua convicção de que não sobra lugar, ao lado dessa regularidade ordenada, para causas de natureza diferente. Para ele, nem o domínio da vontade humana, nem o da vontade divina existirão como causa independente dos eventos naturais. Não há dúvida de que a doutrina de um Deus pessoal que interfere nos eventos naturais jamais poderia ser refratada, no sentido verdadeiro, pela ciência, pois essa doutrina pode sempre procurar refúgio nos campos em que o conhecimento científico ainda não foi capaz de se firmar. Estou convencido, porém, de que tal comportamento por parte dos representantes da religião seria não só indigno como desastroso. Pois uma doutrina que não é capaz de se sustentar à “plena luz”, mas apenas na escuridão, está fadada a perder sua influência sobre a humanidade, com incalculável prejuízo para o progresso humano. Em sua luta pelo bem ético, os professores de religião precisam ter a envergadura para abrir mão da doutrina de um Deus pessoal, isto é, renunciar a fonte de medo e esperança que, no passado, concentrou um poder tão amplo nas mãos dos sacerdotes. Em seu ofício, terão de se valer daqueles forças que são capazes de cultivar o Bom, o Verdadeiro e o Belo na própria humanidade. Trata-se, sem dúvida, de uma tarefa mais difícil, mas incomparavelmente mais valiosa. Quando tiverem realizado esse processo de depuração, os professores da religião certamente hão de reconhecer com alegria que a verdadeira religião ficou enobrecida e mais profunda graças ao conhecimento científico.

Se um dos objetivos da religião é libertar a humanidade, tanto quanto possível, da servidão dos anseios, desejos e temores egocêntricos, o raciocínio científico pode ajudar a religião em mais um sentido. Embora seja verdade que a meta da ciência é descobrir regras que permitam associar e prever os fatos, essa não é sua única finalidade. Ela procura também reduzir as conexões descobertas ao menor número possível de elementos conceituais mutuamente independentes.

E nessa busca da unificação racional do múltiplo que a ciência logra seus maiores êxitos, embora seja precisamente essa tentativa que a faz correr os maiores riscos de se tornar uma presa das ilusões. Mas todo aquele que experimentou intensamente os avanços bem-sucedidos feitos nesse domínio é movido por uma profunda reverência pela racionalidade que se manifesta na existência. Através da compreensão, ele conquista uma emancipação de amplas conseqüências dos grilhões das esperanças e desejos pessoais, atingindo assim uma atitude mental de humildade perante a grandeza da razão que se encarna na existência e que, em seus recônditos mais profundos, é inacessível ao homem. Essa atitude, contudo, parece-me ser religiosa, no mais elevado sentido da palavra. A meu ver, portanto, a ciência não só purifica o impulso religioso do entulho de seu antropomorfismo, como contribui para uma ‘espiritualização’ religiosa de nossa compreensão da vida.

Quanto mais avança a evolução espiritual da humanidade, mais certo me parece que o caminho para a religiosidade genuína não passa pelo medo da vida, nem pelo medo da morte, ou pela fé cega, mas pelo esforço em busca do conhecimento racional.

Neste sentido, acredito que o sacerdote, se quiser fazer jus a sua ’sublime’ missão educacional, deve tornar-se um professor.

 

Enviado em Mitologia, Religião, Ciência | Nenhum comentário »

Índios Protestantes no Brasil holandês

Escrito por Josenildo Marques ligado 1st Fevereiro 2007

 

A Reforma Protestante foi um movimento que começou no século XVI com uma série de tentativas de reformar a Igreja Católica Romana e levou subsequentemente ao estabelecimento do Protestantismo. Houve divisão na Igreja entre os «católicos romanos» de um lado e os «reformados» ou «protestantes» de outro; entre esses, surgiram várias igrejas, das quais se destacam o Luteranismo (de Martinho Lutero), as igrejas reformadas e os Anabaptistas. A Reforma teve intuito moralizador, colocando em plano de destaque a moral do indivíduo (conhecedor agora dos textos religiosos, após séculos em que estes eram o domínio privilegiado dos membros da hierarquia eclesiástica). Sua principais figuras foram Jan Huss (1370-1415), Martinho Lutero (1483-1546) e João Calvino (1509-1564). A resposta da Igreja foi o movimento conhecido como Contra-Reforma. Com a descoberta “oficial” do Brasil em 1500 e sua colonização, a doutrina prevalente foi a da Igreja Católica. No entanto, como lê-se no artigo abaixo, ela não foi a única a “catequizar”, ou seja, a impor sua doutrina aos índios que aqui viviam. Vale lembrar que aqui no Brasil usa-se o termo “evangélico” para se referir aos protestantes.

Três vezes a igreja protestante foi implantada no Brasil Colônia, três vezes foi expulsa pelos portugueses católicos. Primeira vez: a igreja reformada dos franceses no Rio de Janeiro (1557-1558); segunda, a dos holandeses na Bahia (1624-1625); terceira, a dos holandeses, alemães, ibéricos, ingleses, franceses e índios no Nordeste, quase 30 anos depois.

A história da igreja protestante indígena durante a ocupação holandesa do Nordeste (1630-1654) está registrada em vários arquivos, especialmente em Amsterdã e Haia, na Holanda.

No século XVII, Bahia, Rio de Janeiro e Pernambuco constituíam os três principais centros urbanos do Brasil Colônia. A riqueza produzida pelo açúcar brasileiro ajudava a Espanha a consolidar o seu domínio, enquanto procurava estrangular a jovem República dos Países Baixos - ou seja, a Holanda. (…)

Infelizmente, quanto à escravidão africana, na época as consciências cristãs era subdesenvolvidas. Quando o pastor Jacobus Dapper questionou se era lícito ao cristão negociar ou possuir escravos africanos, até o conde de Nassau afirmou que se tratava de escrúpulos desnecessários.

Nassau se conformava ao espírito de seu tempo, mas contrariava o pensamento do pai espiritual da Companhia, o belga Willem Usselinex, e do patriarca da Igreja Reformada, o francês João Calvino.

O derradeiro período da missão da Igreja Cristã Reformada começou com a realização de duas importantes assembléias, uma eclesiástica, outra política. A mesa da Assembléia Geral das Igrejas recebeu pedidos de tribos que queriam receber seus próprios obreiros.

O professor Dionísio Biscareto foi ordenado pastor e dois brasilianos nomeados professores. Poucos meses antes da chamada insurreição pernambucana, em 1645, realizou-se a primeira grande assembléia indígena, com 120 representantes, em Itapecerica, na capitania de Itamaracá.

Foram organizadas três câmaras,: a câmara de Itamaracá, dirigida pelo índio Carapeba; a de Paraíba, pelo índio Pedro Poti; e a do Rio Grande, pelo índio Antônio Paraupaba.

O teste final e violento da missão reformada veio com a eclosão da guerra de restauração portuguesa. Os documentos atestam a impressionante fidelidade dos brasilianos refugiados ao redor das fortalezas litorâneas.

O mais famoso desses registros são as chamadas cartas tupis, trocadas entre dois primos colocados em campos opostos, o capitão-mór Filipe Camarão e Pedro Poti. Camarão era defensor do lado luso-católico na guerra; Poti, defensor do lado flamengo-reformado. Essa correspondência deixa claro a estreita vinculação entre fé e nação, igreja e Estado. Filipe Camarão escreveu: não quero reconhecer a Antônio Paraupaba, nem a Pedro Poti, que se tornaram hereges […].

Em resposta datada de 31 de outubro de 1645, dia da Reforma Protestante, Poti garante que seus índios viviam em maior liberdade do que os outros, ressaltando que os portugueses queriam apenas escravizá-los.

Poti lembra a Camarão as matanças ocorridas na baia da Traição e em Sirinhaém, havia poucas semanas, quando os portugueses, após a rendição da frota holandesa, mataram perversamente 23 índios prisioneiros de guerra, quebrando as condições previamente acordadas.

Confessou também ser cristão, crendo somente em Cristo, não desejando contaminar-se com a idolatria, e convidou seus parentes e amigos a passar para o lado dos piedosos, que nos reconhecem no nosso país e nos tratam bem.

Ambos os primos não veriam o final dessa luta sangrenta: Camarão faleceu em 1648, depois da primeira batalha de Guararapes, e Poti no ano seguinte foi preso no cabo Santo Agostinho pelos portugueses. Segundo testemunho de Paraupaba, Poti foi lançado num poço, onde permaneceu durante seis meses.

Retirado de vez em quando, padres se atiravam sobre ele, tentando obrigá-lo a abjurar a religião protestante. Poti, entretanto, resistiu bravamente na fé protestante, e foi embarcado para Portugal, para as câmaras de tortura do Santo Ofício, mas a viagem não acabou, atalhada pela morte.

A guerra de restauração aproximou ainda mais os índios dos holandeses e apenas o pacto com os brasilianos garantiu a resistência flamenga durante nove anos.

Quando não houve mais condições de manter Recife, com as tropas luso-brasileiras às portas das fortificações e a armada portuguesa á entrada do porto, o Nordeste foi devolvido a Portugal. Terminava, também, a missão cristã reformada, impossível sem a proteção de um país protestante.

Leia este artigo na íntegra.

 

Enviado em Mitologia, Religião, História | Nenhum comentário »

O Evangelho de Maria Madalena

Escrito por Josenildo Marques ligado 17th Janeiro 2007

 

O Evangelho de Maria de Magdala foi encontrado no Códice de Akhmin, um texto gnóstico e apócrifo do Novo Testamento que foi adquirido pelo Dr. Carl Rheinhardt no Cairo em 1896. A tradução integral do texto só veio à luz em 1955. Embora este Evangelho tenha, no mínimo, 19 páginas, as páginas de 1 a 6 e 11 a 14 estão faltando. Embora o nome do autor não seja mencionado no texto, na literatura popular convencionou-se chamar-lhe de O Evangelho de Maria de Magdala devido ao papel preponderante da personagem em relação aos outros apóstolos. Ele foi escrito num dialeto copta e data do século IV ou V d.C. Há também um papiro em grego antigo com parte do texto e cuja datação remonta ao século III d.C.
Nesse Evangelho, Maria de Magdala aparece como a herdeira espiritual e principal apóstolo de Jesus Cristo. Ela o vê após a ressurreição e lhe faz várias perguntas. O teor das respostas do Salvador mostra um tipo de Cristianismo visceralmente diferente, repleto de conceitos budistas e taoístas. Por exemplo, numa passagem, ele diz:

Todo o universo, todas as coisas formadas, todas as criaturas estão unidas umas às outras, elas dependem umas das outras e serão dissolvidas novamente em sua própria origem. Pois a natureza da matéria é ser dissolvida em sua própria essência. Quem tem ouvidos para ouvir que ouça.

E isso é muito semelhante ao conceito taoísta de Unidade conforme está expresso no capítulo 34 - Falando sobre o Tao - do Tao Te Ching:

 

A vida de todas as coisas deriva dele [Tao]
Todas as coisas retornam a ele
E ele contém todas as coisas

Em outras parte do Evangelho de Maria Madalena é narrada a jornada da alma após a morte e os desafios por que ela tem de passar. Esse trecho é muito semelhante ao Livro Tibetano dos Mortos, segundo o qual a alma encontra deidades pacíficas e furiosas em sua jornada após a separação do corpo.

E a alma disse: ‘Por que me julgaste apesar de eu não haver julgado? Eu estava aprisionada; no entanto, não aprisionei. Não fui reconhecida que o Todo se está desfazendo, tanto as coisas terrenas quanto as celestiais.’ “Quando a alma venceu a terceira potência, subiu e viu a quarta potência, que assumiu sete formas. A primeira forma, trevas; a segunda, desejo; a terceira, ignorância; a quarta é a comoção da morte; a quinta é o reino da carne; a sexta é a vã sabedoria da carne; a sétima, a sabedoria irada. Essas são as sete potências da ira.

Não há dúvida de que o texto lança uma nova perspectiva sobre as origens do Cristianismo. Segundo Karen L. King, professora de História Eclesiástica da Universidade de Harvard, o Evangelho Apócrifo de Maria Madalena oferece “um olhar intrigante para um tipo de Cristianismo perdido há mais de mil e quinhentos anos.” Ela reafirma que o evangelho “apresenta uma interpretação radical dos ensinamentos de Jesus como caminho espiritual interior; ele rejeita o sofrimento e morte como caminho para a vida eterna; ele expõe a visão errônea de que Maria de Magdala foi uma prostituta pelo que ele é: uma ficção teológica; ele apresenta o argumento mais honesto e convincente num escrito sobre o Cristianismo antigo para a legitimação da liderança feminina; ele oferece uma crítica ferrenha sobre o poder ilegítimo e a visão utópica de perfeição espiritual; ele desafia nossa visão romântica sobre a harmonia e unanimidade dos primeiros cristãos; e ele nos faz repensar sobre a base da autoridade da igreja.” Ela também observa que as tensões no Cristianismo do segundo século estão refletidas no “confronto entre Maria Madalena e Pedro, que é um cenário encontrado também no Evangelho de Tomás, no Pistis Sophia e no Evangelho copta dos Egípcios. Pedro e André representam posições ortodoxas que negam a validade da revelação esotérica e rejeitam a autoridade feminina para ensinar a doutrina.”
Abaixo está o fragmento traduzido.

Evangelho Apócrifo de Maria Madalena [Fragmento]

 

[…]então, a matéria será salva ou não?

O Salvador disse: Todo o universo, todas as coisas formadas, todas as criaturas estão unidas umas às outras, elas dependem umas das outras e serão dissolvidas novamente em sua própria origem. Pois a natureza da matéria é ser dissolvida em sua própria essência. Quem tem ouvidos para ouvir que ouça”.

Pedro lhe disse: “Já que nos explicaste tudo. Diz-nos isso também: o que é o pecado do mundo?”

Jesus disse: “Não há pecado; sois vós que os criais, quando fazeis coisas da mesma espécie que o adultério, que é chamado ‘pecado’. Por isso, Deus-Pai veio para o meio de vós, para a essência de cada espécie, para conduzi-la a sua origem”.

Em seguida disse: “Por isso adoeceis e morreis […] Aquele que compreende minhas palavras, que as coloque em prática. A matéria produziu uma paixão sem igual, que se originou de algo contrário à Natureza Divina. A partir daí, todo o corpo se desequilibra. Essa é a razão por que vos digo: tende coragem, e se estiverdes desanimados, procurai força das diferentes manifestações da natureza. Quem tem ouvidos para ouvir que ouça.”

Quando o Filho de Deus assim falou, saudou a todos dizendo: “A Paz esteja convosco. Recebei minha paz. Tomai cuidado para que ninguém vos afaste do Caminho, dizendo: ‘Por aqui’ ou ‘Por lá’, pois o Filho do Homem está dentro de vós. Segui-o. Quem o procurar, o encontrará. Prossegui agora, então, pregai o Evangelho do Reino. Não estabeleçais outras regras, além das que vos mostrei, e não instituais como legislador, senão sereis cerceados por elas”. Após dizer tudo isso, partiu.

Mas eles estavam profundamente tristes. E falavam: “Como vamos pregar aos gentios o Evangelho do Reino do Filho do Homem? Se eles não o procuraram, vão poupar a nós?” Maria Madalena se levantou, cumprimentou a todos e disse a seus irmãos: “Não vos lamentais nem sofrais, nem hesiteis, pois sua graça estará inteiramente convosco e vos protegerá. Antes, louvemos sua grandeza, pois Ele nos preparou e nos fez homens.” Após Maria ter dito isso, eles entregaram seus corações a Deus e começaram a conversar sobre as Palavras do Salvador.

Pedro disse a Maria: “Irmã, sabemos que o Salvador te amava mais do que qualquer outra mulher. Conta-nos as palavras do Salvador, as de que te lembras, aquelas que só tu sabes e nós nem ouvimos”.

Maria Madalena respondeu dizendo: “Esclarecerei a vós o que está oculto”. E ela começou a falar essas palavras: “Eu…”, disse ela, “Eu tive uma visão do Senhor e contei a Ele: ‘Mestre, apareceste-me hoje numa visão’. Ele respondeu e me disse: ‘Bem-aventurada sejas, por não teres fraquejado ao me ver. Pois, onde está a mente, há um tesouro’. Eu lhe disse: ‘Mestre, aquele que tem uma visão vê com a alma ou com o espírito?’ Jesus respondeu e disse: “Não vê nem com a alma nem com o espírito, mas com a consciência, que está entre ambos -assim é que tem a visão […]”.

E o desejo disse à alma: ‘Não te vi descer, mas agora te vejo subir. Por que falas mentira, já que pertences a mim?’ A alma respondeu e disse: ‘Eu te vi. Não me viste, nem me reconheceste.

Usaste-me como acessório e não me reconheceste.’ Depois de dizer isso, a alma foi embora, exultante de alegria. “De novo alcançou a terceira potência, chamada ignorância. A potência, inquiriu a alma dizendo: ‘Onde vais? Estás aprisionada à maldade. Estás aprisionada, não julgues!’

E a alma disse: ‘Por que me julgaste apesar de eu não haver julgado? Eu estava aprisionada; no entanto, não aprisionei. Não fui reconhecida que o Todo se está desfazendo, tanto as coisas terrenas quanto as celestiais.’ “Quando a alma venceu a terceira potência, subiu e viu a quarta potência, que assumiu sete formas. A primeira forma, trevas; a segunda, desejo; a terceira, ignorância; a quarta é a comoção da morte; a quinta é o reino da carne; a sexta é a vã sabedoria da carne; a sétima, a sabedoria irada. Essas são as sete potências da ira. Elas perguntaram à alma: ´De onde vens, devoradora de homens, ou onde vais, conquistadora do espaço?’ A alma respondeu, dizendo: ‘O que me subjugava foi eliminado e o que me fazia voltar foi derrotado…, e meu desejo foi consumido e a ignorância morreu. Num mundo fui libertada de outro mundo; num tipo fui libertada de um tipo celestial e também dos grilhões do esquecimento, que são transitórios.

Daqui em diante, alcançarei em silêncio o final do tempo propício, do reino eterno’.”

Depois de ter dito isso, Maria Madalena se calou, pois até aqui o Salvador lhe tinha falado. Mas André respondeu e disse aos irmãos: “Dizei o que tendes para dizer sobre o que ela falou. Eu, de minha parte, não acredito que o Salvador tenha dito isso. Pois esses ensinamentos carregam idéias estranhas”. Pedro respondeu e falou sobre as mesmas coisas. Ele os inquiriu sobre o Salvador: “Será que ele realmente conversou em particular com uma mulher e não abertamente conosco? Devemos mudar de opinião e ouvirmos ela? Ele a preferiu a nós?” Então Maria Madalena se lamentou e disse a Pedro: “Pedro, meu irmão, o que estás pensando? Achas que inventei tudo isso no mau coração ou que estou mentindo sobre o Salvador?” Levi respondeu a

Pedro: “Pedro, sempre foste exaltado. Agora te vejo competindo com uma mulher como adversário. Mas, se o Salvador a fez merecedora, quem és tu para rejeitá-la? Certamente o Salvador a conhece bem. Daí a ter amado mais do que a nós. É, antes, o caso de nos envergonharmos e assumirmos o Homem Perfeito e nos separaremos, como Ele nos mandou, e pregarmos o Evangelho, não criando nenhuma regra ou lei, além das que o Salvador nos legou.”

Depois que Levi disse essas palavras, eles começaram a sair para anunciar e pregar.

Enviado em Mitologia, Religião | 1 Comentário »

Mito e Ciência

Escrito por Josenildo Marques ligado 12th Janeiro 2007

 

A relação entre ciência e religião é um assunto complexo que frequentemente vem à tona para provocar discussões acaloradas. Para alguns, ciência e religião são conflitantes e irreconciliáveis. Para outros, ambas têm finalidades diferentes, lidam com aspectos diferentes da experiência humana e, portanto, qualquer conflito é apenas ilusório. Outros ainda argumentam que religião e ciência interagem em colaboração. Além disso, a opinião de cientistas sobre o assunto tem forte influência sobre a imaginação popular, cuja tendência é, a princípio, pensar que ciência e religião são sempre antagônicas.
Em Mito e Significado, Claude Lévi-Strauss afirma estar bem informado sobre a metodologia científica e as últimas descobertas da ciência e que, portanto, ele diz ter a

a sensação de que a ciência moderna, na sua evolução, não se está a afastar destas matérias perdidas, e que, pelo contrário, tenta cada vez mais reintegrá-las no campo da explicação científica. O fosso, a separação real, entre a ciência e aquilo que poderíamos denominar pensamento mitológico, para encontrar um nome, embora não seja exatamente isso, ocorreu nos séculos XVII e XVIII. Por essa altura, com Bacon, Descartes, Newton e outros, tornou-se necessário à ciência levantar-se e afirmar se contra as velhas gerações de pensamento místico e mítico, e pensou-se então que a ciência só podia existir se voltasse costas ao mundo dos sentidos, o mundo que vemos, cheiramos, saboreamos e percebemos; o mundo sensorial é um mundo ilusório, ao passo que o mundo real seria um mundo de propriedades matemáticas que só podem ser descobertas pelo intelecto e que estão em contradição total com o testemunho dos sentidos. Este movimento foi provavelmente necessário, pois a experiência demonstra-nos que, graças a esta separação – este cisma, se se quiser –, o pensamento científico encontrou condições para se autoconstituir.

Assim, tenho a impressão de que (e, evidentemente, não falo como cientista – não sou físico, não sou biólogo, não sou químico) a ciência contemporânea está no caminho para superar este fosso e que os dados dos sentidos estão a ser cada vez mais reintegrados na explicação científica como uma coisa que tem um significado, que tem uma verdade e que pode ser explicada.

Claude Lévi-Strauss, Mito e Significado, pp. 9,10

Portanto, para ele, se houve algum confronto entre o pensamento científico e o mitológico, isto se deveu ao ímpeto inicial dos homens de ciência em pôr enfase em seu método e a qualificar o outro como pensamento “primitivo” ou “inferior”. Trata-se de uma questão datada que, embora ainda hoje encontre alguma ressonância, já há muito deixou de ser a visão predominante graças ao avanço das ciências exatas e das humanas. Por isso, diz Lévi-Strauss,

 

…creio que há certas coisas que perdemos e que devíamos fazer um esforço para as conquistar de novo, porque não estou seguro de que, no tipo de mundo em que vivemos e com o tipo de pensamento científico a que estamos sujeitos, possamos reconquistar tais coisas como se nunca as tivéssemos perdido; mas podemos tentar tornar-nos conscientes da sua existência e da sua importância.

Claude Lévi-Strauss, Mito e Significado, p. 9

 

Assim como Joseph Campbell, a despeito das diferenças no trabalho de ambos, Lévi-Strauss estava profundamente interessado nas semelhanças mais significativas das mitologias e culturas que estudou. Como ele mesmo diz:

 

 

É provável que não haja muito mais que isto na abordagem estruturalista; é a busca de invariantes ou de elementos invariantes entre diferenças superficiais.

Claude Lévi-Strauss, Mito e Significado, p.12

 

Apesar da aparente desordem, da grandeza de diferenças e da riqueza de manifestações, o papel do pesquisador é, como ele atesta, perquirir todo esse material e tentar encontrar uma ordem, um campo de convergências diante do qual as diferenças começam a desaparecer.

 

 

As histórias de caráter mitológico são, ou parecem ser, arbitrárias, sem significado, absurdas, mas apesar de tudo dir-se-ia que reaparecem um pouco por toda a parte. Uma criação «fantasiosa» da mente num determinado lugar seria obrigatoriamente única – não se esperaria encontrar a mesma criação num lugar completamente diferente. O meu problema era tentar descobrir se havia algum tipo de ordem por detrás desta desordem aparente - e era tudo.

 

Claude Lévi-Strauss, Mito e Significado, p.15


E não há dúvida de que Campbell e Lévi-Strauss estão plenamente de acordo com esse preceito. Para ambos,

O problema é descobrir aquilo que é comum a todos. É um problema, poder-se-ia dizer, de tradução, de traduzir o que está expresso numa linguagem – ou num código, se se preferir, mas linguagem é suficiente – numa expressão de uma linguagem diferente.

Claude Lévi-Strauss, Mito e Significado, p.12

E quando se fala em linguagem, fala-se em significado ou níveis de significação. Lévi-Strauss faz uma observação muito rica em relação ao problema do que chamamos de significado. Segundo expõe, dizemos que uma coisa tem significado não apenas porque é inteligível, mas também porque ela pode ser traduzida.

Segundo penso, é absolutamente impossível conceber o significado sem a ordem. Há uma coisa muito curiosa na semântica, é que a palavra «significado» é provavelmente, em toda a língua, a palavra cujo significado é mais difícil de encontrar. Que é que significa o termo «significar»? Parece-me que a única resposta que se pode dar é que «significar» significa a possibilidade de qualquer tipo de informação ser traduzida numa linguagem diferente. Não me refiro a uma língua diferente, como o francês ou o alemão, mas a diferentes palavras num nível diferente. No fim de contas, esta tradução é a que se espera de um dicionário – o significado da palavra em outras palavras que, a um nível ligeiramente diferente, são isomórficas relativamente à palavra ou à expressão que se pretende perceber. E porque não se pode substituir uma palavra por qualquer outra palavra, ou uma frase por qualquer outra frase (arbitrárias), tem de haver regras de tradução. Falar de regras e falar de significado é falar da mesma coisa; e, se olharmos para todas as realizações da Humanidade, seguindo os registos disponíveis em todo o mundo, verificaremos que o denominador comum é sempre a introdução de alguma espécie de ordem. Se isto representa uma necessidade básica de ordem na esfera da mente humana e se a mente humana, no fim de contas, não passa de uma parte do universo, então quiçá a necessidade exista porque há algum tipo de ordem no universo e o universo não é um caos.

Claude Lévi-Strauss, Mito e Significado, pp. 15,16

 

Segundo Joseph Campbell, os avanços e descobertas científicas de nosso tempo não colidem contra o “pensamento mitológico”. Ao contrário, Campbell pensa que elas abrem novas dimensões míticas para o homem moderno. Como diz Bill Moyers:

 

 

Campbell não era pessimista. Ele acreditava que existe um “nível de sabedoria, para além dos conflitos entre ilusão e verdade, através do qual as vidas podem voltar a ser irmanadas”. Encontrar esse nível é a “questão primordial desta época”. Nos seus últimos anos, ele buscava uma nova síntese entre ciência e espírito. “A mudança de uma visão geocêntrica para uma visão heliocêntrica do mundo ”, escreveu ele, depois que os astronautas chegaram à Lua, “parece ter removido o homem do centro e o centro parece tão importante. Espiritualmente, porém, o centro está onde está o olhar. Poste-se numa elevação e contemple o horizonte. Poste-se na Lua e contemple a Terra inteira se erguendo – ainda que através da televisão, na sua sala de visita.” O resultado é uma insuspeitada expansão do horizonte, que poderia servir, em nossa época, como as antigas mitologias serviram, no passado, para abrir as portas da percepção “para o prodígio, ao mesmo tempo terrível e fascinante, de nós mesmos e do universo”. Para ele, não foi a ciência que diminuiu os seres humanos ou nos divorciou da divindade. Ao contrário, as novas descobertas da ciência “nos reúnem aos antigos”, por nos tornarem capazes de reconhecer, no todo do universo, “um reflexo ampliado de nossa própria e mais íntima natureza; assim, somos de fato seus ouvidos, seus olhos, seu pensamento e sua fala – ou, em termos teológicos, os ouvidos de Deus, os olhos de Deus, o pensamento de Deus, a Palavra de Deus”.

Joseph Campbell e Bill Moyers, O Poder do Mito, p.12

Assim como Lévi-Strauss, Joseph Campbell também não acredita que haja conflitos insolúveis entre ciência e religião.

MOYERS: Um dos pontos intrigantes do seu pensamento é que você não vê conflito entre ciência e mitologia.

CAMPBELL: Não, não há conflito. Ciência é abrir caminho, agora, na direção das dimensões do mistério. Assim ela se aproxima da esfera de que fala o mito. Chega ao limiar.

MOYERS: E o limiar é…

CAMPBELL: …o limiar, a superfície comum ao que pode ser conhecido e ao que nunca será descoberto, porque é um mistério que transcende todo esforço humano. O que é a fonte da vida? Ninguém sabe. Não sabemos sequer o que é um átomo, se é uma onda ou uma partícula – é ambos. Não fazemos idéia do que sejam essas coisas. É por essa razão que falamos do divino. Existe uma fonte de energia transcendente. Quando um físico observa partículas subatômicas, ele está vendo um traço na tela. Esses traços vêm e vão, vêm e vão; nós vimos e vamos, e tudo o que diz respeito à vida vem e vai. Essa energia é a energia que modela todas as coisas. A reverência mítica se endereça a isso.

Joseph Campbell e Bill Moyers, O Poder do Mito, p.146

Nas palestras e livros de Joseph Campbell, a ciência está sempre presente. Como se trata de um ramo do saber de natureza transdisciplinar, ele mesmo não seria possível sem a arqueologia, a psicologia, a antropologia, a física, a química, etc. Os avanços nessas ciências também contribuem para que saibamos mais sobre essa matéria e, como diz Lévi-Strauss, para que nos tornemos mais conscientes de sua existência e importância.

 

 

 

 

 

 

Enviado em Mitologia, Religião, Ciência | 1 Comentário »

O Tempo no Candomblé

Escrito por Josenildo Marques ligado 3rd Janeiro 2007

 

O texto abaixo é um trecho de uma conferência proferida pelo professor Reginaldo Prandi, estudioso das religiões afro-brasileiras, em virtude da entrega do Prêmio Érico Vanucci Mendes. Nessa conferência, o professor Prandi trata, entre outras coisas, da questão do tempo na sociedade iorubana tradicional, nos rituais de Candomblé e na sociedade capitalista.

 

Para o pensador africano John Mbiti, enquanto nas sociedades ocidentais o tempo pode ser concebido como algo a ser consumido, podendo ser vendido e comprado, como se fosse mercadoria ou serviço potenciais - dizemos ‘tempo é dinheiro!’ -, nas sociedades africanas tradicionais o tempo tem que ser criado ou produzido, acrescentando Mbiti que “o homem africano não é escravo do tempo, mas, ao invés disso, ele produz tanto tempo quanto queira”. Ele comenta que, por não conhecerem essa concepção, muitos estrangeiros ocidentais não raro julgam que os africanos estão sempre atrasados naquilo que fazem, enquanto outros dizem: “Ah! Esses africanos ficam aí sentados desperdiçando seu tempo na ociosidade” (Mbiti, 1990: 19). (…)

 

Nas palavras do nigeriano Wole Soyinka, prêmio Nobel de literatura, “o pensamento tradicional opera não uma sucessão linear de tempo mas uma realidade cíclica” (Soyinka, 1995: 10). Por isso, o tempo escalar, que se mede matematicamente, podendo ser somado, subtraído, dividido etc., não faz nenhum sentido para o pensamento africano tradicional. Para os ocidentais, o tempo é uma variável contínua, uma dimensão que tem realidade própria, que independe dos fatos, de tal modo que são os fatos que se justapõem à escala do tempo. É o tempo da precisão, que objetiva o cálculo, que viabiliza a projeção e fundamenta a racionalidade - tempo da ciência histórica e da modernidade. Nessa escala ocidental do tempo, os acontecimentos são enfileirados uns após outros, em seqüências que permitem organizá-los como anteriores e posteriores, uns como causa e outros como conseqüência, construindo-se uma cadeia de correlações e causações que conhecemos como história.

 

Para os africanos tradicionais, contudo, o tempo é uma composição dos eventos que já aconteceram ou que estão para acontecer imediatamente. É a reunião daquilo que já experimentamos como realizado, sendo que o passado, imediato, está intimamente ligado ao presente, do qual é parte, enquanto que o futuro, imediato, nada mais é que a continuação daquilo que já começou a acontecer no presente, não fazendo nenhum sentido a idéia do futuro como acontecimento remoto desligado de nossa realidade imediata. O futuro que se expressa na repetição cíclica dos fatos da natureza, como as estações, as colheitas vindouras, o envelhecer de cada um, é repetição do que já se conheceu, viveu e experimentou, não é futuro. Não há sucessão de fatos encadeados no passado distante, nem projeção do futuro; a idéia de história como a conhecemos no Ocidente não existe; a idéia de fazer planos para o futuro, de planejar os acontecimentos vindouros, é completamente estapafúrdia. Se o futuro é aquilo que não foi experimentado, ele não faz sentido nem pode ser controlado, pois o tempo é o tempo vivido, o tempo acumulado, o tempo acontecido.

 

Para os iorubás e outros povos africanos, os acontecimentos do passado estão vivos nos mitos, que falam de grandes acontecimentos, atos heróicos, descobertas e toda sorte de eventos dos quais a vida presente seria a continuação. Ao contrário da narrativa histórica, os mitos nem são datados nem mostram coerência entre si. Cada mito atende a uma necessidade de explicação tópica e justifica fatos e crenças que compõem a existência de quem o cultiva, o que não impede a existência de versões conflitantes, quando os fatos e interesses a justificar são diferentes. O mito fala do passado remoto que explica a vida no presente, mais que isso, que se refaz no presente. O tempo mítico expressa o passado distante, e fatos separados por um intervalo de tempo muito grande podem ser apresentados nos mitos como ocorrências de uma mesma época, concomitantes. Cada mito é autônomo e os personagens de um podem aparecer num outro mito com outras características e relações, às vezes contraditórias com as primeiras. Os mitos são narrativas parciais e sua reunião não propicia o desenho de nenhuma totalidade, pois não existe um fio narrativo na mitologia, como aquele que norteia a construção da história para os ocidentais. No mundo mítico, os eventos não se ajustam a um tempo contínuo e linear. O tempo do mito é o tempo das origens, e parece existir um tempo vazio entre o fato contado pelo mito e o tempo do narrador.

 

Para os iorubás, os mortos devem reencarnar e, enquanto esperam pelo renascimento, habitam o mundo dos que vão nascer, que é próximo do mundo aqui-e-agora, o mundo em que vivemos, o Aiê. Esse mundo do futuro imediato é atado ao presente pelo fato de que aquele que vai nascer de novo tem que permanecer vivo na memória de seus descendentes, participando de suas vidas e sendo por eles alimentados nos ritos sacrificiais, até o dia de seu renascimento como um novo membro de sua própria família. Para o homem, o mundo das realizações, da felicidade, da plenitude é o mundo do presente, o Aiê, não havendo prêmio nem punição no mundo dos que vão nascer, o mundo dos mortos, pois ali nada acontece. Os homens e mulheres pagam por seus crimes em vida e são punidos pelas instâncias humanas. As punições impostas aos humanos pelos deuses e antepassados por causa de atos maus igualmente não o atingem após a morte, mas se aplicam a toda a coletividade à qual o infrator pertence, e isso também acontece no Aiê, numa concepção ética que está focada na coletividade e não no indivíduo (Mbon, 1991: 102), não existindo a noção ocidental cristã de salvação no outro mundo nem a idéia de pecado. O outro mundo habitado pelos mortos é temporário, transitório, voltado para o presente dos humanos. Nem mesmo a vida espiritual tem expressão no futuro. Os mortos ilustres - fundadores de troncos familiares e de cidades, heróis, reis, conquistadores, grandes sacerdotes - podem vir a ser cultuados como antepassados, os egunguns, passando a habitar o passado mítico, o passado distante localizado no Orum, onde vivem os deuses orixás, dos quais muitos são antigos heróis divinizados, cujo culto se desprendeu dos limites da família e se generalizou, sendo incorporados ao passado mítico de todo um clã, uma cidade, um povo, podendo vir a ter altares erigidos em sua homenagem até mesmo do outro lado do oceano, como aconteceu com muitos orixás na América.

 

O passado remoto da narrativa mítica, que trata dos orixás e dos antepassados, é transmitido de geração a geração, por meio da oralidade, é ele que dá o sentido geral da vida para todos e fornece a identidade grupal e os valores e normas essenciais para a ação naquela sociedade, confundindo-se plenamente com a religião. Ensina Prigogine, prêmio Nobel de física, que o tempo cíclico é o tempo da natureza, o tempo reversível, e também o tempo da memória, o tempo mítico que não se perde, mas que se repõe. O tempo da história, em contrapartida, é o tempo irreversível, um tempo que não se liga nem à eternidade e nem ao eterno retorno. O tempo do mito e o tempo da memória descrevem um mesmo movimento de reposição: sai do presente, vai para o passado e volta ao presente, em que o futuro é apenas o tempo necessário para a reencarnação, o renascimento, o começar de novo. A religião é a ritualização dessa memória, desse tempo cíclico, ou seja, a representação no presente, através de símbolos e encenações ritualizadas, desse passado que garante a identidade do grupo - quem somos, de onde viemos, para onde vamos? É o tempo da tradição, da não mudança, da religião, a religião como fonte de identidade que reitera no cotidiano a memória ancestral. No candomblé, emblematicamente, quando o filho-de-santo entra em transe e incorpora um orixá, assumindo sua identidade, que é representada pela dança característica que lembra as aventuras míticas dessa divindade, é o passado remoto, coletivo, que aflora no presente para se mostrar vivo, o transe ritual repetindo o passado no presente, numa representação em carne e osso da memória coletiva.

 

Para os iorubás, uma vez que tudo é repetição, nada é novidade, aquilo que nos acontece hoje e que está prestes a acontecer no futuro imediato já foi experimentado antes por outro ser humano, por um antepassado, pelos próprios orixás. O oráculo de Ifá, praticado pelos babalaôs, baseia-se no conhecimento de um grande repertório de mitos que falam de toda sorte de fatos acontecidos no passado remoto e que voltam a acontecer, envolvendo personagens do presente. É sempre o passado que lança luz sobre o presente e o futuro imediato. Conhecer o passado é deter as fórmulas de controle dos acontecimentos da vida dos viventes. Esse passado mítico, que se refaz a cada instante no presente, é narrado pelos odus do oráculo de Ifá, preservados no Brasil pelo jogo de búzios das mães e pais-de-santo dos candomblés. O jogo de búzios é a leitura do tempo mítico que se refaz no presente. É olhar o presente com os olhos no passado.

 

A essa concepção africana de tempo estão intimamente associadas as idéias de aprendizado, saber, competência e hierarquia que podemos observar no candomblé. Para os africanos tradicionais, o conhecimento humano é entendido, sobretudo, como resultado do transcorrer inexorável da vida, do fruir do tempo, do construir da biografia. Sabe-se mais porque se é velho, porque se viveu o tempo necessário da aprendizagem. A aprendizagem não é uma esfera isolada da vida, como a nossa escola ocidental, mas um processo que se realiza a partir de dentro, participativamente. Aprende-se à medida que se faz, que se vive. Com o passar do tempo, os mais velhos vão acumulando um conhecimento a que o jovem só terá acesso quando tiver passado pelas mesmas experiências. Mesmo quando se trata de conhecimento especializado, o aprendizado é por imitação e repetição. As diferentes confrarias profissionais, especialmente as de caráter mágico e religioso, dividem as responsabilidades de acordo com a senioridade de seus membros e estabelecem ritos de passagem que marcam a superação de uma etapa de aprendizado para ingresso em outra, que, certamente, implica o acesso a novos conhecimentos, segredos ou mistérios da confraria.

 

Para ler o artigo na íntegra, clique aqui.

.

 

1984 (Nineteen Eighty – Four) George Orwell

Ter, 30 de Agosto de 2011 00:18 Publicado em Livros

ERA UM DIA FRIO E ENSOLARADO DE ABRIL, E OS RELóGIOS batiam treze horas. Winston Smith, o queixo fincado no peito numa tentativa de fugir ao vento impiedoso, esgueirou-se rápido pelas portas de vidro da Mansão Vitória; não porém com rapidez suficiente para evitar que o acompanhasse uma onda de pó áspero.

O saguão cheirava a repolho cozido e a capacho de trapos. Na parede do fundo fôra pregado um cartaz colorido, grande demais para exibição interna. Representava apenas uma cara enorme, de mais de um metro de largura: o rosto de um homem de uns quarenta e cinco anos, com espesso bigode preto e traços rústicos mas atraentes. Winston encaminhou-se para a escada. Inútil experimentar o elevador. Raramente funcionava, mesmo no tempo das vacas gordas, e agora a eletricidade era desligada durante o dia. Fazia parte da campanha de economia, preparatória da Semana do ódio. O apartamento ficava no sétimo andar e Winston, que tinha trinta e nove anos e uma variz ulcerada acima do tornozelo direito, subiu devagar, descansando várias vezes no caminho. Em cada patamar, diante da porta do elevador, o cartaz da cara enorme o fitava da parede. Era uma dessas figuras cujos olhos seguem a gente por tôda parte. O GRANDE IRMÃO ZELA POR TI, dizia a legenda.

Dentro do apartamento uma voz sonora lia uma lista de cifras relacionadas com a produção de ferro gusa. A voz saía de uma placa metálica retangular semelhante a um espêlho fosco, embutido na parede direita. Winston torceu um comutador e a voz diminuiu um pouco, embora as palavras ainda fossem audíveis. O aparelho (chamava-se teletela) podia ter o volume reduzido, mas era impossível desligá-lo de vez. Winston foi até a janela: uma figura miuda,

frágil, a magreza do corpo apenas realçada pelo macacão azul que era o uniforme do Partido. O cabelo era muito louro, a face naturalmente sanguínea, e a pele arranhada pelo sabão ordinário, as giletes sem corte e o inverno que mal terminara.

Lá fóra, mesmo através da vidraça fechada, o mundo parecia frio. Na rua, pequenos rodamoinhos de vento levantavam em pequenas aspirais poeira e papéis rasgados, e embora o sol brilhasse e o céu fosse dum azul berrante, parecia não haver côr em coisa alguma, salvo nos cartazes pregados em tôda parte. O bigodudo olhava de cada canto. Havia um cartaz na casa defronte, O GRANDE IRMÃO ZELA POR TI, dizia o letreiro, e os olhos escuros procuravam os de Winston. Ao nível da rua outro cartaz, rasgado num canto, trapejava ao vento, ora cobrindo ora descobrindo a palavra INGSOC. Na distância um helicóptero desceu beirando os telhados, pairou uns momentos como uma varejeira e depois se afastou num vôo em curva. Era a Patrulha da Polícia, espiando pelas janelas do povo. Mas as patrulhas não tinham importância. Só importava a Polícia do Pensamento.

Por trás de 'Winston a voz da teletela ainda tagarelava a respeito do ferro gusa e da superação do Nono Plano Trienal. A teletela recebia e transmitia simultâneamente. Qualquer barulho que Winston fizesse, mais alto que um cochicho, seria captado pelo aparelho; além do mais, enquanto permanecesse no campo de visão da placa metálica, poderia ser visto também. Naturalmente, não havia jeito de determinar se, num dado momento, o cidadão estava sendo vigiado ou não. Impossível saber com que freqüência, ou que periodicidade, a Polícia do Pensamento ligava para a casa dêste ou daquele individuo. Era concebivel, mesmo, que observasse todo mundo áo mesmo tempo. A realidade é que podía ligar determinada linha, no momento que desejasse. Tinha-se que viver - e vivia-se por hábito transformado em instinto na suposição de que cada som  era ouvido e cada movimento examinado, salvo quando feito no escuro.

Winston continuou de costas para a teletela. Era mais seguro, conquanto até as costas pudessem falar. A um quilômetro dali o Ministério da Verdade, onde trabalhava, alteava-se, alvo e enorme, sôbre a paisagem fuliginosa. Era isto, pensou êle com uma vaga repugnância - isso era Londres, cidade principal da Pista N.O 1, por sua vez a terceira entre as mais populosas provincias da Oceania. Tentou encontrar na memória uma recordação infantil que lhe dissesse se Londres sempre tivera aquele aspecto. Haviam existido sempre aquelas apodrecidas casas do século dezenove, os flancos reforçados com espeques de madeira, janelas com remendos de cartolina e os telhados com chapa de ferro corrugado, e os muros doidos dos jardins, descaindo em tôdas as direções? E as crateras de bombas onde o pó de rebôco revoluteava no ar e o mato crescia à matroca sôbre os montes de escombros; e os lugares onde as bombas haviam aberto clareiras maiores e tinham nascido sórdidas colónias de choças de madeira que mais pareciam galinheiros? Mas era inútil, não conseguia se lembrar: nada sobrava de sua infância, excepto uma série de quadros fortemente iluminados, que se sucediam sem pano de fundo e eram quase ininteligíveis.

O Ministério da Verdade - ou Miniver, em Novilíngua - era completamente diferente de qualquer outro objeto visível. Era uma enorme pirâmide de alvíssimo cimento branco, erguendo-se, terraço sôbre terraço, trezentos metros sôbre o solo. De onde estava Winston conseguia ler, em letras elegantes colocadas na fachada, os três lemas do Partido:

GUERRA É PAZ. LIBERDADE É ESCRAVIDÃO. IGNORANCIA É FORÇA.

Constava que o Ministério da Verdade continha três mil aposentos sôbre o nível do solo, e correspondentes ramificações no sub-solo. Espalhados por Londres havia outros três edifícios de aspecto e tamanho semelhantes. Dominavam de tal maneira a arquitetura circunjacente que do telhado da Mansão Vitória era possível avistar os quatro ao mesmo tempo. Eram as sedes dos quatro Ministérios que entre si dividiam todas as funções do governo: o Ministério da Verdade, que se ocupava das notícias, diversões, instrução e belas artes; o Ministério da Paz, que se ocupava da guerra; o Ministério do Amor, que mantinha a lei e a ordem; e o Ministério da Fartura, que acudia às atividades econômicas.      Seus nomes, em Novilíngua: Miniver, Minipaz, Miniamo e Minifarto.

O Ministério do Amor era realmente atemorizante.  Não tinha janela alguma. Winston nunca estivera lá, nem a  menos de um quilômetro daquele edifício. Era um prédio impossível de entrar, excepto em função oficial, e assim mesmo atravessando um labirinto de rolos de arame farpado, portas de aço e ninhos de metralhadoras. Até as ruas que conduziam às suas barreiras externas eram percorridas por guardas de cara de gorila e fardas negras, armados de porretes articulados.

Winston voltou-se abruptamente. Afivelara no rosto a expressão de tranquilo otimismo que era aconselhável usar quando de frente para a teletela. Atravessou o cômodo e entrou na cozinha minúscula. Saindo do Ministério àquela hora, sacrificara o almoço na cantina, e sabia que não havia na casa mais alimento que uma côdea de pão escuro, que seria a sua refeição matinal, no dia seguinte. Tirou da prateleira uma garrafa de líquido incolor com um rótulo branco em que se lia GIN VITóRIA. Tinha um cheiro enjoado, oleoso, como de vinho de arroz chinês. Winston serviu-se de quase uma xícara de gin, contraiu-se para o choque e enguliu-a de vez, como uma dose de remédio.

Instantâneamente, ficou com o rosto rubro, e os olhos começaram a lacrimejar. A bebida sabia a ácido nítrico, e ao bebê-la tinha-se a impressão exata de ter levado na nuca uma pancada com um tubo de borracha. No momento seguinte, porém, a queimação na barriga amainou e o mundo lhe pareceu mais ameno. Tirou um cigarro da carteira de CIGARROS VITóRIA e imprudentemente segurou-o na vertical, com que todo o fumo caiu ao chão. Puxou outro cigarro, com mais cuidado. Voltou à sala de estar e sentou-se a uma pequena mesa à esquerda da teletela. Da gaveta da mesa tirou uma caneta, um tinteiro, e um livro em branco, de lombo vermelho e capa de cartolina mármore.

Por um motivo qualquer, a teletela da sala fôra colocada em posição fóra do comum. Em vez de ser colocada, como era normal, na parede do fundo, donde poderia dominar todo o aposento, fôra posta na parede mais longa, diante da janela. A um dos seus lados ficava a pequena reentrância onde Winston estava agora sentado, e que, na construção do edifício, fôra provàvelmente destinada a uma estante de livros. Sentando-se nessa alcova, e mantendo-se junto à parede, Winston conseguia ficar fora do alcance da teletela, pelo menos no que respeitava à vista. Naturalmente, podia ser ouvido mas, contanto que permanecesse naquela posição, não podia ser visto. Em parte, fôra a extraordinária topografia do cômodo que lhe sugerira o que agora se dispunha a fazer, Mas fôra também sugerido pelo caderno que acabara de tirar da gaveta. Era um livro lindo. O papel macio, côr de creme, ligeiramente amarelado pelo tempo, era de um tipo que não se fabricava havia pelo menos quarenta anos. Era de ver, entretanto, que devia ser muito mais antigo. Vira-o na vitrina de um triste bricabraque num bairro pobre da cidade (não se lembrava direito do bairro) e fôra acometido imediatamente do invencível desêjo de possui-lo. Os membros do Partido não deviam entrar em lojas comuns ("transacionar no mercado livre," dizia-se), mas o regulamento não era estritamente obedecido, porque havia várias coisas, como cordões de sapatos e giletes, impossíveis de conseguir de outra forma. Relanceara o olhar pela rua e depois entrara, comprando o caderno por dois dólares e cinquenta. Na ocasião, não tinha consciência de querê-lo para nenhum propósito definido. Levara-o para casa, às escondidas, na sua pasta. Mesmo sendo em branco, o papel era propriedade comprometedora.

O que agora se dispunha a fazer era abrir um diário. Não era um ato ilegal (nada mais era ilegal, pois não havia mais leis), porém, se descoberto, havia razoável certeza de que seria punido por pena de morte, ou no minimo vinte e cinco anos num campo de trabalhos forçados. Winston meteu a pena na caneta e chupou-a para tirar a graxa. A pena era um instrumento arcaico, raramente usada, mesmo em assinaturas, e êle conseguira uma, furtivamente, com alguma dificuldade, apenas por sentir que o belo papel creme merecia uma pena de verdade em vez de ser riscado por um lapis-tinta. Na verdade, não estava habituado a escrever a mão. Exceto recados curtíssimos, o normal era ditar tudo ao falascreve, o que naturalmente era impossível no caso. Molhou a pena na tinta e hesitou por um segundo. Um trernor lhe agitara as tripas. Marcar o papel era um ato decisivo. Com letra miuda e desajeitada escreveu:

4 de abril de 1984

Encostou-se ao espaldar. Descera sôbre êle uma sensação de completo desespêro. Para começar, não sabia com a menor certeza se o ano era mesmo 1984. Devia ser mais ou menos isso, pois estava convencido de que tinha trinta e nove anos, e acreditava ter nascido em 1944 ou 45; hoje em dia, porém, não era nunca possível fixar uma data num ou dois anos.

De repente ocorreu-lhe uma pergunta. Para quem estava escrevendo aquele diário? Para o futuro, os que não haviam nascido. Sua mente pairou um momento sôbre a data duvidosa que escrevera e de repente se chocou contra a palavra duplipensar em Novilíngua. Pela primeira vez percebeu de todo a magnitude do que empreendera. Como poderia se comunicar com o futuro? Era impossivel, pela própria natureza. Ou o futuro seria parecido com o presente, caso em que não lhe daria ouvidos, ou seria diferente, e nesse caso a sua situação não teria sentido.

Por algum tempo ficou olhando o papel estúpidamente. A teletela agora tocava estridente música militar. O curioso era que êle parecia não só ter perdido o poder de se exprimir como esquecido o que tinha em mente. Havia semanas que se preparava para aquele momento, e nunca lhe passara pela cabeça a idéia de precisar de mais que coragem. Escrever seria fácil. Tudo que tinha a fazer era transferir para o papel o intérmino e inquieto monólogo que se desenrolava na sua mente, fazia anos. Naquele momento, todavia, até o monólogo secara. Além disso, a variz comichava danadamente. E não ousava coçá-la, pois quando o fazia sempre inflamava. Os segundos passavam. De nada tinha consciência excepto da brancura do papel à sua frente, a coceira acima do tornozelo, o berreiro da música e uma leve bebedeira causada pelo gin.

De repente, pôs-se a escrever por puro pânico, mal percebendo o que estava registrando. A letra miúda e infantil traçou linhas tortas pelo papel, abandonando primeiro as maiúsculas e depois até os pontos:

4 de abril de 1984. Ontem à noite ao cinema. Tudo fitas de guerra. Uma muito boa dum navio cheio de refugiados bombardeado no Mediterrâneo. Público muito divertido com cenas de um homenzarrão gordo tentando fugir nadando dum helicóptero. primeiro se via êle subindo descendo nágua que nem golfinho, depois pelas miras do helicóptero, e daí ficava cheio de buracos o mar perto ficava rosa e de repente afundava como se os furos tivessem deixado entrar água. público dando gargalhadas quando afundou. então viu-se um escaler cheio de crianças com um helicóptero por cima. havia uma mulher de meia idade talvez judia sentada na proa com um menininho duns três anos nos braços. garotinho gritando de medo e escondendo a cabeça nos seios dela como querendo se refugiar e mulher pondo os braços em torno dele e consolando apesar de tambem estar roxa de medo. todo tempo cobrindo êle o mais possível como se os braços pudessem protegê-lo das balas. então o helicóptero soltou uma bomba de 20 quilos em cima dêles clarão espantoso e o bote virou cisco. daí uma ótima fotografia dum braço de criança subindo subindo subindo um helicóptero com a câmara no nariz deve ter acompanhado e houve muito aplauso no lugar do partido mas uma mulher da parte dos proles de repente armou barulho e começou gritar que não deviam exibir fita assim pras crianças não é direito na frente de crianças não e daí e tal até que a,polícia a botou na rua não acho que aconteceu nada para ela ninguém se importa com o que os proles dizem reação prole típica eles nunca...

Winston parou de escrever, em parte por sentir câibras na mão. Não sabia o que o levara a soltar aquela torrente de bobagem. O curioso, porém, é que, ao fazê-lo, uma recordação inteiramente diferente se esclarecera em sua memória, ao ponto de quase se sentir capaz de narrá-la. Percebia agora que fôra por causa do outro incidente que de súbito resolvera ir para casa e iniciar o seu diário aquele dia.

Sucedera aquela manhã no Ministério, se é possível dizer, que sucede algo tão nebuloso.

Eram quase onze horas e no Departamento de Registro, onde Winston trabalhava, já arrastavam cadeiras dos cubículos e as arrumavam no centro do salão, diante da grande teletela, preparando-se para os Dois Minutos de ódio. Winston ia ocupando seu lugar numa das filas do meio quando entraram inesperadamente na sala duas pessoas que conhecia de vista, mas com quem nunca falara. Uma delas era uma moça com quem se encontrara muitas vezes nos corredores. Não sabia como se chamava, mas sabia que trabalhava no Departamento de Ficção. Era de presumir - pois a vira levando uma chave inglêsa nas mãos sujas de graxa - que fosse mecânica de uma das máquinas de novelizar. Devia ter uns vinte e sete anos, e era de aparência audaciosa, com cabelo negro e espesso, rosto sardento e movimentos rápidos, atléticos. Uma estreita faixa escarlate, emblema da Liga Juvenil Anti-Sexo, dava várias voltas à sua cintura, o suficiente para realçar as curvas das ancas. Winston antipatizara com ela desde o primeiro momento. E sabia porquê. Era por causa da atmosfera de campos de hóquei, chuveiro frio, piqueniques e grande linha moral que conseguia inspirar. Êle antipatizava com tÔdas as mulheres, principalmente com as moças e bonitas. Eram sempre as mulheres, e principalmente as moças, os militantes mais fervorosos do Partido, os devoradores de palavras de ordem, os espiões amadores e os espiculas dos desvios. Esta jovem lhe dava a impressão de ser mais perigosa que a maioria. Uma vez que se haviam cruzado no corredor, ela lhe lançara um rápido olhar de esguelha que parecia tê-lo penetrado até o imo, e o enchera de terror. Até lhe ocorrera a idéia de que talvez fosse da Polícia do Pensamento. Na verdade, isso era pouco provável. Entretanto, continuava sentindo um estranho mal-estar, em cuja composição havia medo e hostilidade, e que sobrevinha sempre que ela sempre se aproximava.

A outra pessoa era um homem chamado O'Brien, membro do Partido Interno e ocupante de um posto tão remoto e de tamanha importância que Winston dêle só tinha uma vaga idéia. Um silêncio momentâneo calou o grupo reunido em torno das cadeiras quando viu o macacão negro do Partido Interno. O'Brien era um homem grande, troncudo, de pescoço taurino e rosto grosseiro, engraçado, brutal. Apesar da sua aparência temível tinha maneiras até distintas. Seu tique de re-arranjar os óculos no nariz, um gesto curioso, desarmava e - de certo modo indefinivel - parecia civilizado. Era um gesto que, se alguém ainda pensasse em velharias tais, poderia recordar um fidalgo do século dezoito oferecendo a caixa de rapé. Winston vira O'Brien talvez meia dúzia de vezes em outros tantos anos. Sentia-se fundamente atraido por êle, e não apenas por se sentir intrigado pelo contraste entre a urbanidade de O'Brien e o seu físico de pugilista. Era muito mais por causa de uma crença secreta     ou talvez não chegasse a crença, fosse mera esperança     de que não era perfeita a ortodoxia política de O'Brien. Havia em sua fisionomia algo que dava essa impressão. Ou ainda, talvez não fosse ortodoxia o que estava escrito em seu rosto, mas apenas inteligência. De qualquer forma, tinha o aspecto de ser pessoa com que se podia conversar, se fosse possível fraudar a teletela e falar-lhe a sós. Winston jamais fizera o menor esforço de verificar sua posição; na verdade, não havia maneira de o fazer. Naquele momento O'Brien olhou o relógio-pulseira, viu que eram quase onze horas e evidentemente resolveu ficar no Departamento de Registro até acabarem os Dois Minutos de ódio. sentou-se numa cadeira da mesma fila que Winston, a dois passos dêle. Entre os dois encontrava-se uma mulherzinha de cabelo côr de areia, que trabalhava no cubículo contíguo. A moça do cabelo escuro ocupou uma cadeira logo atrás.

Mais um instante, e um guincho horrendo, áspero, como de uma máquina monstruosa funcionando sem óleo, saiu da grande teletela. Era um barulho de fazer ranger os dentes e arrepiar os cabelos da nuca. O ódio começara.

Como de hábito, a face de Emmanuel Goldstein, o Inimigo do Povo, surgira na tela. Aqui e ali houve assovios entre o público. A mulherzinha de cabelo côr de areia emitiu um uivo misto de medo e repugnância. Goldstein era o renegado e traidor que um dia, muitos anos atrás (exatamente quantos ninguém se lembrava) fôra uma das figuras de proa do Partido, quase no mesmo plano que o próprio Grande Irmão, tendo depois se dedicado a atividades contrarevolucionárias, sendo por isso condenado à morte, da qual escapara, desaparecendo misteriosamente. O programa dos Dois Minutos de ódio variava de dia a dia, sem que porém Goldstein deixasse de ser o personagem central cotidiano. Era o traidor original, o primeiro a conspurcar a pureza do Partido.   Todos os subsequentes crimes contra o Partido, tôdas as traições, atos de sabotagem, heresias, desvios, provinham diretamente dos seus ensinamentos. Nalguma parte do mundo êle continuava vivo e tramando suas conspirações: talvez no além-mar, sob proteção dos seus patrões estrangeiros; talvez até mesmo - de vez em quando corria o boato - nalgum esconderijo na própria Oceania.

Winston sentiu contrair-se o diafragma. Nunca podia ver a face de Goldstein sem uma dolorosa mistura de emoções. Era um rosto judaico, magro, com um grande halo de cabelo branco esgrouviado e um pequeno cavanhaque - um rosto arguto e no entanto, de certo modo, intrinsecamente desprezível, com um ar de tolice senil no nariz comprido e fino no qual se equilibravam os óculos. Parecia a cara duma ovelha, e a voz também recordava um balido. Goldstein lançava o costumeiro ataque peçonhento às doutrinas do Partido - um ataque tão exagerado e perverso que uma criança poderia refutá-lo, e no entanto suficientemente plausível para encher o cidadão de alarme, de receio que outras pessoas menos equilibradas o pudessem aceitar. Insultava o Grande Irmão, denunciava a ditadura do Partido, exigia a imediata conclusão da paz com a Eurásia, advogava a liberdade de palavra, a liberdade de imprensa, a liberdade de reunião, a liberdade de pensamento, gritava histèricamente que a revolução fôra traída - e tudo numa linguagem rápida, polissilábica, que era uma espécie de paródia do estilo habitual dos oradores do Partido, e até continha palavras em Novilíngua: maior número dessas palavras, com efeito, do que qualquer membro do Partido usaría na vida diária. E todo o tempo, para que não persistissem dúvidas quanto à realidade oculta pela lenga-lenga especiosa de Goldstein, marchavam por trás de sua cabeça, na teletela, infindas colunas do exército eurasiano - fileiras após fileiras de homens sólidos com rostos asiáticos, sem expressão, que vinham até a superfície da placa e sumiam, para ser seguidos por outros exatamente idênticos. O ritmo cavo e monótono das botas dos soldados formava uma cortina sonora para os balidos de Goldstein.

Antes do ódio se haver desenrolado por trinta segundos, metade dos presentes soltava incontroláveis exclamações de fúria. Era demais, suportar a vista daquela cara de ovelha satisfeita e do poderio terrífico do exército eurasiano, mostrado na tela: além disso, ver ou mesmo pensar em Goldstein produzia automàticamente medo e raiva. Era objeto de ódio mais constante que a Eurásia ou a Lestásia porquanto, quando a Oceania estava em guerra com uma dessas potencias, em geral estava em paz com a outra. O estranho, todavia, é que embora Goldstein fosse odiado e desprezado por todo mundo, embora todos os dias, e milhares de vezes por dia, nas tribunas, teletelas, jornais, livros, suas teorias fossem refutadas, esmagadas, ridicularizadas, apresentadas aos olhos de todos como lixo atoa... e apesar de tudo isso, sua influência nunca parecia diminuir. Havia sempre novos bocós esperando para ser seduzidos. Não se passava dia sem que espiões e sabotadores, obedientes a ordens dêle, não fossem desmascarados pela Polícia do Pensamento. Era comandante de um vasto exército de sombras, uma rede subterrânea de conspiradores dedicados à derrocada do Estado. Supunha-se que se chamava a Fraternidade. Murmurava-se também a respeito de um livro terrível, um compêndio de tôdas as heresias, escrito por Goldstein, e que circulava clandestinamente aqui e ali. Era um livro sem título. Referiam-se a êle, simplesmente, por o livro. Mas só se sabia dessas coisas através de vagos boatos. Nem a Fraternidade nem o livro eram assuntos que um militante comum do Partido mencionasse.

No segundo minuto o ódio chegou ao frenesi. Os presentes pulavam nas cadeiras, e berravam a plenos pulmões, esforçando-se para abafar a voz alucinante que saía da tela. A mulherzinha do cabelo de areia ficara tôda rosa, e abria e fechava a bôca como peixe jogado à terra. Até o rosto másculo de O'Brien estava corado. Estava sentado muito teso na sua cadeira, o peito largo se alteando e agitando como se resistisse ao embate duma vaga. A morena atrás de Winston pusera-se a berrar "Porco! Porco! Porco!" De repente, apanhou um pesado dicionário de Novilíngua e atirou-o à tela. O livro atingiu o nariz de Goldstein e ricochetou; a voz continuou, inexorável. Num momento de lucidez, Winston percebeu que êle também estava gritando com os outros e batendo os calcanhares violentamente contra a travessa da cadeira. O horrível dos Dois Minutos de ódio era que embora ninguém fosse obrigado a participar, era impossível deixar de se reunir aos outros. Em trinta segundos deixava de ser preciso fingir. Parecia percorrer todo o grupo, como uma corrente elétrica, um horrível êxtase de medo e vindita, um desêjo de matar, de torturar, de amassar rostos com um malho, transformando o indivíduo, contra a sua vontade, num lunático a uivar e fazer caretas. E no entanto, a fúria que se sentia era uma emoção abstrata, não dirigida, que podia passar de um alvo a outro como a chama dum maçarico. Assim, havia momentos em que o ódio de Winston não se dirigia contra Goldstein mas, ao invés, contra o Grande Irmão, o Partido e a Polícia do Pensamento; e nesses momentos o seu coração se aproximava do solitário e ridicularizado herege da tela, o único guardião da verdade e da sanidade num mundo de mentiras. No entanto, no instante seguinte se irmanava com os circunstantes, e tudo quanto se dizia de Goldstein lhe parecia verdadeiro. Nesses momentos, o seu ódio secreto pelo Grande Irmão se transformava em adoração, e o Grande Irmão parecia crescer, protetor destemido e invencível, firme como uma rocha contra as hordes da Ásia, e Goldstein, apesar do seu isolamento, sua fraqueza e da dúvida que cercava a sua própria existência, lhe parecia um hipnotizador sinistro, capaz de destruir a estrutura da civilização pelo mero poder da voz.

Nesses momentos era até possível dirigir o ódio neste ou naquele rumo, por ato voluntário. De repente, por uma espécie desse esforço violento com que, num pesadelo, se arranca a cabeça do travesseiro, Winston conseguiu transfe-

rir para a moça de cabelo escuro, sentada atrás dêle, o ódio que antes dedicava à figura da telâ. Belas e vívidas alucinações lhe atravessaram o cérebro. Haveria de matá-la a golpes de um cajado de borracha. Amarrá-la-ia nua a um poste e a crivaria de flechas como São Sebastião. Possui-la-ia e a degolaria no momento do gôzo. Além disso, percebeu mais claro que antes porque a odiava. Odiava-a porque era jovem, bonita e assexuada, porque desejava ir para a cama com ela, e porque nunca o faria, porque na cinturinha fina e convidativa, que parecia pedir que a segurassem com o braço, só havia a odiosa faixa escarlate, o agressivo símbolo de castidade.

O ódio chegou ao clímax. A voz de Goldstein transformara-se de fato num balido de ovelha, e por um instante o rosto se transformou numa cara de carneiro. Depois a cara de carneiro se fundiu na de um soldado eurasiano que parecia avançar, enorme e terrível, com a metralhadora de mão rugindo, parecendo saltar da superfície da tela, de modo tão real que alguns da primeira fileira se inclinaram para trás. No mesmo momento, porém, arrancando um fundo suspiro de alívio de todos, a figura hostil fundiu-se na fisionomia do Grande Irmão, de cabelos e bigodes negros, cheio de força e de misteriosa calma, e tão vasta que tomava quase toda a tela. Ninguém ouviu o que o Grande Irmão disse. Eram apenas palavras de incitamento, o tipo das palavras que se pronunciam no vivo do combate, palavras que não se distinguem individualmente mas que restauram a confiança pelo fato de serem ditas. Então o rosto do Grande Irmão sumiu de novo e no seu lugar apareceram as três divisas do Partido, em maiúsculas, em negrito:

GUERRA É PAZ LIBERDADE É ESCRAVIDÃO IGNORÂNCIA É FORÇA

Mas o rosto do Grande Irmão pareceu persistir por vários segundos na tela, como se o seu impacto nas pupilas fosse forte demais para se esmaecer tão rápido. A mulherzinha do cabelo côr de areia atirara-se sôbre o espaldar da cadeira que tinha à frente. Com um murmurio trêmulo que parecia dizer "Meu Salvador", extendeu os braços para a tela. Depois ocultou a face nas mãos. Era claro que orava.

Nesse momento, todo o grupo se pÔs a entoar um cantochão ritmado "G.I.!...G.I.! ... G.I.!" repetido inúmeras vezes, com uma longa pausa entre o G e o I - um som cavo e surdo, curiosamente selvagem, no fundo do qual se parecia ouvir batidas de pés nús e o rufo dos atabaques. Durou meio minuto talvez. Era um estribilho que se ouvia com frequência nos momentos de emoção dominadora. Era em parte um hino à sapiência e majestade do Grande Irmão porém, mais que isso, era auto-hipnotismo, o afogar deliberado da consciência por meio do barulho rítmico. As entranhas de Winston pareceram esfriar. Durante os Dois Minutos de ódio, não era possível deixar de participar do delírio geral, mas aquele cântico sub-humano "G.I.! ... G.I.!" sempre o enchia de pavor. Naturalmente, cantava com os outros: seria impossível proceder doutra forma. Dominar os sentimentos, controlar as feições, fazer o que todo mundo fazia, era uma reação instintiva. Havia porém um lapso de dois segundos em que a expressão de seus olhos poderia trai-lo. E foi exatamente nesse lapso que   a coisa sucedera - se é que de fato sucedera.

Momentâneamente, seu     olhar encontrara o de O'Brien, que se erguera. Tirara os    óculos e ia colocá-los no lugar, com um gesto característico. Mas houve uma fração de segundo em que os olhares se   encontraram e, enquanto durou, Winston viu - sim, viu! -     que O'Brien estava pensando o mesmo que êle. Completara-se uma inequívoca comunicação. Fôra como se os dois espíritos se abrissem e os pensamentos de um passassem ao outro, pelos olhos. "Estou contigo," pareceu dizer-lhe O'Brien. "Sei exatamente o que sentes. Sei tudo de teu desprezo, teu ódio, teu nojo. Mas não te aflijas, estou a teu lado!" E daí sumira-se a faísca de inteligência e a face de O'Brien se tornara inescrutável como a de todos.

Fôra tudo, e êle já nem tinha a certeza de que de fato acontecera. Tais incidentes jamais tinham seqüela. Tudo que faziam era manter viva, dentro dele, a fé, ou a esperança, de que houvesse outros inimigos do Partido. Afinal de contas, talvez fossem verdadeiros os boatos de vastas conspirações subterrâneas - quiçá existisse mesmo a Fraternidade! Era impossível, não obstante as infindas prisões, confissões e execuções, ter a certeza de que a Fraternidade não passava de invencionice. Alguns dias êle acreditava, outros não. Não havia provas, apenas visões fugidias que podiamsignificar algo ou nada: trechos de conversa entreouvida, rabiscos apagados nas paredes das privadas - e uma vez, até, no encontro de dois desconhecidos, um pequeno movimento de mãos que talvez fosse um sinal identificador. Era tudo palpite: provàvelmente imaginara a coisa. Voltou ao cubículo sem tornar a olhar para O'Brien. Mal lhe passara pela cabeça a idéia de aprofundar o contacto momentâneo. Seria inconcebivelmente perigoso, mesmo que soubesse como agir. Durante um segundo, dois, haviam trocado um olhar equívoco, e era o fim da história. Mas até aquilo era um acontecimento memorável, na   solidão amuralhada em que se era obrigado a viver.

Winston levantou-se   e acomodou-se melhor na cadeira. Soltou um arroto. Era o   gin que lhe subia do estômago.

Seus olhos tornaram a focar a página. Descobriu que estivera escrevendo, num  gesto automático, ao mesmo tempo que a memória divagava. E não era mais a letra desajeitada e miuda de antes. A pena correra voluptuosamente sôbre o papel macio, escrevendo em grandes letras de imprensa:

ABAIXO o GRANDE IRMÃO

ABAIXO o GRANDE IRMÃO

ABAIXO o GRANDE IRMÃO

ABAIXO o GRANDE IRMÃO

ABAIXO o GRANDE IRMÃO

muitíssimas vezes, enchendo meia página.

Não pôde deixar de sentir um laivo de pânico. Era absurdo, pois escrever aquelas palavras não era mais perigoso que o ato inicial de abrir o diário, mas,por um momento se sentiu tentado a rasgar as páginas usadas e abandonar por completo a empresa.

Não o fez, contudo, porque sabia ser inútil. Quer escrevesse ABAIXO O GRANDE IRMÃO ou não, não fazia diferença. Quer continuasse o diário, quer parasse, não fazia diferença. A Polícia do Pensamento o apanharia do mesmo modo. Cometera - e teria cometido, nem que não levasse a pena ao papel - o crime essencial, que em si continha todos os outros. Crimidéia, chamava-se. O crimidéia não era coisa que pudesse ocultar. Podia-se escapar com êxito algum tempo, anos até, porém mais cedo ou mais tarde pegavam o criminoso.

E era sempre à noite - as prisões eram sempre à noite.

O súbito arranco ao sono, a mão rude sacudindo o ombro, as luzes ferindo os olhos, o círculo de caras implacáveis em torno da cama. Na vasta maioria dos casos não havia julgamento, nem notícia da prisão. As pessoas simplesmente desapareciam, sempre durante a noite. O nome do cidadão era removido dos registros, suprimida tôda menção dele, negada sua existência anterior, e depois esquecido.      Era-se abolido, aniquilado; vaporizado era o termo corriqueiro.

Winston foi dominado por breve ataque de histeria. Pôsse a escrever em garranchos apressados:

me darão um tiro que mimporta me darão um tiro na nuca não mimporta abaixo o grande irmão eles sempre dão tiro na nuca que mimporta abaixo o grande irmão

Ergueu-se um pouco na cadeira, ligeiramente envergonhado de si próprio, e largou a caneta. Dali a um segundo levou um susto enorme. Batiam à porta.

Já?!  Deixou-se ficar, quieto como um camondongo, na esperança vã de que a pessoa se fosse sem insistir. Mas não, a batida repetiu-se. Seria pior atrasar-se. Com o coração batendo como um tambor - mas com a face provavelmente sem expressão, graças ao velho hábito - êle se levantou e encaminhou-se para a porta a passos tardos.

2

Quando pôs a mão no trinco viu que deixara o diário aberto na mesa. ABAIXO O GRANDE IRMÃO lia-se em tôda a página, em letras quase visíveis da porta, de tão grandes. Cometera um erro incrivelmente estupido. Percebeu, entretanto, que mesmo no seu pânico não quisera sujar o belo papel creme fechando o caderno sôbre a tinta fresca.

Respirou fundo e abriu a porta. Instantâneamente, uma vaga de alívio o dominou. Uma mulher incolor, insignificante, de cabelo ralo e pele encarquilhada, surgiu no vão.

Oh, camarada - disse, num gemido soturno - ouvi tua chegada. Achas que podes vir dar uma olhada na minha pia da cozinha? Entupiu...

Era a sra. Parsons, esposa de um vizinho do mesmo andar. ("Sra. era termo um tanto antipatizado pelo Partido - o correto era chamar todo mundo de "camarada" - mas com certas mulheres era usado instintivamente.) Teria uns trinta anos, mas parecia muito mais velha. Dava a impressão de ter poeira nas rugas. Winston seguiu-a pelo corredor. Êsses consertos amadores eram uma chatice quase diária. A Mansão Vitória era um prédio antigo, construido por volta de 1930, e estava caindo aos pedaços. O reboco vivia caindo às placas das paredes e do forro, os canos arrebentavam com qualquer geada, havía goteiras sempre que nevava um pouco, o sistema de aquecimento em geral funcionava a meio-vapor quando não o fechavam de vez, para economizar combustível. Os concertos, excepto os que os próprios inquilinos pudessem executar, dependiam da sanção de remotos comités, capazes de adiar dois anos a substituição duma vidraça quebrada.

- É só porque o Tom não está - explicou a sra. Parsons vagamente.

O apartamento dos Parsons era maior que o de Winston, e lúgubre de outra maneira. Tudo tinha um aspecto pisado, amassado, como se a casa acabasse de ser visitada por um animal violento. Acessórios esportivos - tacos de hóquei, luvas de boxe, uma bola furada, um par de shorts suados virados pelo avesso - jaziam no soalho, e sôbre a mesa havia uma pilha de pratos sujos e de cadernos de exercício, sebentos e orelhudos. Nas paredes viam-se bandeiras escarlates da Liga da Juventude e dos Espiões, e um cartaz tamanho natural do Grande Irmão. Pairava no ar o costumeiro cheiro de repolho cozido, comum a todo o edifício, mas ali misturado com a catinga mais pronunciada de suor - percebia-se isto à primeira cheirada, embora fosse difícil explicar como- de suor de uma pessoa ausente. Noutra sala alguém, com um pente e um pedaço de papel higiênico, estava tentando acompanhar a música militar que ainda saía da teletela.

- São as crianças - disse a sra. Parsons, lançando uma olhada apreensiva para a porta. - Não sairam hoje. E naturalmente...

Tinha o hábito de interromper as frases no meio. A pia da cozinha estava cheia até quase em cima duma água esverdeada, imunda, que fedia a repolho, mais que nunca. Winston ajoelhou-se e examinou o sifão. Tinha raiva de usar as mãos, e detestava abaixar-se, o que em geral lhe provocava tosse. A sra. Parsons ficou olhando, sem préstimo.

- Naturalmente, se Tom estivesse em casa, consertaria num momento - disse ela. - Êle gosta desses serviços. É tão jeitoso, Tom.

Parsons era colega de Winston no Ministério da Verdade. Era um homem gorducho mas ativo, de estupidez paralisante, uma massa de entusiasmo imbecil - um dêsses servos dedicados e absolutamente fiéis dos quais dependia a estabilidade do Partido, mais do que da Polícia do Pensamento. Aos trinta e cinco fôra a contragosto desligado da Liga da Juventude e antes de entrar para ela conseguira ficar nos Espiões um ano além da idade limite. No Ministério, trabalhava num serviço subordinado, para o que não precisava de inteligência, mas por outro lado era figura de proa no Comité Esportivo e em todos os outros comités empenhados na organização de piqueniques e passeatas comunais, demonstrações espontâneas, campanhas de economia e atividades voluntárias em geral. Informava ao interlocutor, com tranquilo orgulho, soltando baforadas do cachimbo, que compa-

recera ao Centro Comunal tôdas as noites, nos últimos quatro anos. Um tremendo cheiro de suor, uma espécie de testemunho inconsciente da dureza de sua vida, seguia-o por tÔda parte, e permanecia no ambiente mesmo depois dêle sair.

- Tens uma chave inglesa? - indagou Winston, apalpando a porca do sifão.

- Chave? - exclamou a sra. Parson, tornando-se invertebrada outra vez. - Não sei não. Quem sabe as crianças...

Houve um estrondo de botinas e outro guincho no pente, recordando a presença das crianças na sala de estar. A sra. Parsons trouxe a chave inglesa. Winston soltou a água e com nojo retirou 'o bolo de cabelo humano que entupira o cano. Lavou os dedos da melhor maneira possível na água fria da pia e voltou para a sala.

- Mãos ao ar! - urrou uma voz selvagem. Um menino bonito, de uns nove anos e cara de brigão, surgira por trás da mesa e o ameaçava com uma pistola automática de brinquedo, imitado por sua irmãzinha, de sete, e que empunhava um pedaço de madeira. Ambos vestiam calções azuis, camisas cinzentas e o lenço vermelho que compunham o uniforme dos Espiões. Winston levantou as mãos sôbre a cabeça, mas com mal-estar, tão viciosa era a atitude do garoto, que não lhe parecia pilhéria.  - És um traidor! - berrou o menino. - És um ideocriminoso! És um espião eurasiano. Eu te mato, te vaporizo, te mando para as minas de sal!

De repente, puseram-se os dois a saltar em torno dêle, berrando "traidor!" e "ideocriminoso!", a menininha imitando todos os movimentos do irmão. Era um tanto arrepiante, como um brinquedo de filhotes de tigre, que breve serão devoradores de homens. Havia nos olhos do menino uma espécie de ferocidade calculadora, um desejo bastante evidente de esmurrar ou dar um pontapé em Winston, e a consciência de ter quase o tamanho necessário para a agressão. Ainda bem que não brandia uma pistola de verdade, pensou Winston.

Os olhos da vizinha saltaram nervosamente de Winston às crianças, e vice-versa. Sob a luz mais forte da sala de estar êle notou com interêsse que de fato havia pó nas rugas do seu rosto.

- Ficam tão barulhentos, - disse ela. - Estão desapontados porque não puderam assistir ao enforcamento, é isso.

Não tenho tempo para levá-los, e Tom não voltará do serviço a tempo.

- Por que não podemos ir ver o enforcamento? - indagou o menino, num vozeirão.

- Quero vê o forcamento! Quero vê o forcamento! -

cantarolou a garota, saltitando pelo cômodo.

Deviam ser enforcados aquela noite, no Parque, uns prisioneiros eurasianos, criminosos de guerra. Isso acontecia uma vez por mês e era um grande espetáculo popular. As crianças sempre exigiam que as levassem. Winston despediu-se da sra. Parsons e encaminhou'-se para a porta. Mas ainda não dera seis passos pelo corredor quando um projétil o acertou na nuca, numa pancada muito dolorosa. Foi como se um arame em brasa o tivesse atingido. Girou nos calcanhares a tempo de ver a sra. Parsons arrastando o filho para a sala de estar, enquanto o menino metia no bolso um estilingue.

- Goldstein! - estertorou o menino quando a porta se fechou.  O que mais impressionou Winston, contudo, foi o olhar de terror inerme da mulherzinha de cara gris.

De volta ao apartamento, passou rápido diante da teletela e tornou a sentar-se à mesa, ainda esfregando o pescoço. Cessara a música. Substituira-a uma voz militar, que em tom stacccato lia, com gôzo brutal, uma descrição dos armamentos da nova Fortaleza Flutuante que acabava de ser ancorada entre a Islândia e as Ilhas Faroe.

Com aquelas horrendas crianças, pensou, essa pobre mulher deve levar uma vida de terror. Dali a um ano, ou dois, começarão a observá-la dia e noite, à cata de sintomas de heterodoxia. Quase tôdas as crianças eram horríveis. O pior de tudo é que, com auxílio de organizações tais como os Espiões, eram sistemàticamente transformadas em pequenos selvagens incontroláveis, e no entanto nelas não se produzia qualquer tendência de se rebelar contra a disciplina do Partido. Ao contrário, adoravam o Partido, e tudo quanto tinha ligação com êle. As canções, as procissões, as bandeiras, as caminhadas. a ordem unida com fusis de madeira, berrar palavras de ordem, adorar o Grande Irmão - era para elas uma espécie de jogo formidável. Toda sua ferocidade era posta para fora, dirigida contra os inimigos do Estado, contra os forasteiros, traidores, sabotadores, ideocriminosos. Era quase normal que as pessoas de mais de trinta tivessem medo aos próprios filhos. E com fartos motivos, pois rara era a

semana em que o Times não publicasse um tópico contando Como um pequeno salafrário - "herói infantil" era a expressão usada - ouvira alguma observação comprometedora e denunciara os pais à Polícia do Pensamento.

A picada do estilingue não doía mais. Winston segurou a caneta, desanimado, indagando de seus botões se encontraria mais o que registrar no diário. De repente, começou a pensar outra vez em O'Brien.

Anos atrás - quantos anos? Devia ser uns sete - sonhara estar caminhando num quarto escuro como breu. E alguém, sentado ao seu lado, dissera ao senti-lo passar: "Tornaremos a nos encontrar onde não há treva." Fôra dito baixinho, sem ênfase - uma declaração, não uma ordem. E êle continuara, sem parar. O curioso é que, na ocasião, no sonho, as palavras não o haviam impressionado maiormente. Sómente mais tarde, e aos poucos, é que tinham ganho em significação. Não podia lembrar agora se fôra antes ou depois do sonho que vira O'Brien pela primeira vez; nem se lembrava de quando identificara aquela voz como a de O'Brien. Fosse como fosse, existia a identificação. O'Brien lhe falara na escuridão.

Winston nunca conseguira ter certeza - mesmo depois do cintilar de olhares daquela manhã ainda era impossível ter certeza - da amizade ou inimizade de O'Brién. Nem lhe parecera ter muita importância. Entre êles havia um laço de compreensão mais importante do que o afeto ou a ideologia. "Tornaremos a nos encontrar onde não há treva", dissera êle. Winston não sabia o que significava, apenas acreditava que, de um modo ou outro, seria realidade.

A voz da teletela fez uma pausa. Um toque de clarim, belo e límpido, flutuou no ar estagnado. A voz continuou, áspera:

- Atenção! Atenção, por favor! Acaba de chegar uma notícia da frente de Malabar. Nossas forças do Sul da índia lograram uma gloriosa vitória. Estou autorizado a dizer que essa batalha poderá aproximar a guerra do seu fim. Eis a notícia...

Más notícias, pensou Winston. E com efeito, depois de uma sanguinolenta descrição do aniquilamento de um exército eurasiano, com formidáveis cifras de mortos e prisioneiros, divulgou-se a notícia de que, a partir da semana próxima, a ração de chocolate seria reduzida de trinta a vinte gramas.

Winston tornou a arrotar. O gin estava-se gastando, deixando uma sensação de vazio. A teletela - talvez para celebrar a vitória, talvez para afogar a lembrança do chocolate perdido - atacou "Oceania, nossa terra." Era dever de todos ouvirem o hino de pé. Todavia, na posição em que estava, não podiam vê-lo.

A "Oceania, nossa terra," seguiu-se música mais leve, Winston foi até a janela, sempre de costas para a tela. O dia continuava claro e despejado. Nalgum lugar distante uma bomba-foguete explodiu com um estrondo surdo, ecoante. Atualmente, caíam em Londres, vinte ou trinta bombas por semana.

Lá embaixo, na rua, o vento ainda fustigava o cartaz rasgado, e a palavra INGSOC ora aparecia ora desaparecia. Ingsoc. Os princípios sagrados do Ingsoc. Novilíngua, duplepensar, a mutabilidade do passado. Sentiu-se como quem vagueia nas florestas do fundo do mar, perdido num mundo monstruoso onde êle próprio era o monstro. Estava só. O passado morto, o futuro inimaginável. Que certeza haveria de estar ao seu lado uma única criatura humana viva? E de que maneira saber que o domínio do Partido não duraria para sempre?     Como resposta, os três lemas da fachada branca do Ministério da Verdade lhe voltaram à mente:

GUERRA É PAZ LIBERDADE É ESCRAVIDÃO IGNORÂNCIA É FORÇA

Tirou do bolso uma moeda de vinte e cinco centavos. Ali também, em letras minúsculas porém nítidas, liam-se as mesmas frases; do outro lado a cabeça do Grande Irmão. Até do dinheiro aqueles olhos o perseguiam. Moedas, selos, capas de livros, faixas, cartazes, maços de cigarro - em tôda parte. Sempre os olhos fitando o indivíduo, a voz a envolvê-lo.   Adormecido ou desperto, trabalhando ou comendo, dentro e fóra de casa, no banheiro ou na cama - não havia fuga. Nada pertencia ao indivíduo, com exceção de alguns centímetros cúbicos dentro do crânio.

O sol deslocara-se no céu e, na sombra, as miríades de janelas do Ministério da Verdade pareciam as sinistras seteiras de uma fortaleza. O coração de Winston tremeu ante a pirâmide enorme. Era forte demais -não podia ser tomada de assalto. Mil bombas-foguetes não a deitariam por terra.

Tornou a indagar de si próprio: para quem estaria escrevendo o diário? Para o futuro, para o passado - para uma época que talvez fosse imaginária- E diante dêle abria-se não a morte, mas o aniquilamento. O diário seria reduzido a cinzas e êle a vapor. Sómente a Polícia do Pensamento leria o seu escrito, antes de suprimi-lo e eliminá-lo da lembrança. Como poderia apelar para o futuro sendo impossível a sobrevivência física de um vestígio do indivíduo, e até mesmo de uma palavra anônima rabiscada num pedaço de papel?

A teletela assinalou catorze horas. Precisava sair dali a dez minutos. Tinha de estar de volta ao serviço às catorze e trinta. Curiosamente, o soar das horas pareceu dar-lhe novo ânimo. Êle não passava dum fantasma solitário exprimindo uma verdade que ninguém jamais ouviria. Mas enquanto a exprimisse, a continuidade não seria interrompida. Não é fazendo ouvir a nossa voz mas permanecendo são de mente que preservamos a herança humana. Êle voltou à mesa, molhou a pena e escreveu: Ao futuro ou ao passado, a uma época em que o pensamento seja livre, em que os homens sejam diferentes uns dos outros e que não vivam sós - a uma época em que a verdade existir e o que foi feito não puder ser desfeito:

Cumprimentos da era de uniformidade, da era da solidão, da era do Grande Irmão, da era do duplipensar!

Êle já estava morto, refletiu. Pareceu-lhe que só agora, depois de começar á formular suas idéias, dera o passo decisivo. As consequencias de cada ato são incluidas no próprio ato. Escreveu:

Crimidéia não acarreta a morte: crimidéia É a morte.

Agora que se reconhecia como defunto, tornava-se importante ficar vivo o mais tempo possível. Tinha manchados de tinta dois dedos da mão direita. Era exatamente o tipo do pormenor que podia traí-lo. Algum enxerido do Ministério (mulher, provàvelmente; alguém como aquela zinha de cabelo côr de areia ou a morena do Departamento de Ficção) poderia querer saber por que andara escrevendo na hora do almôço, por que usara uma pena antiga, o que escrevera - e então soltar um palpite no local competente. Winston foi ao banheiro e cuidadosamente lavou a tinta, com o sabão áspero, arenoso e escuro, que arranhava como lixa e que portanto era ótimo para o que tinha em vista.

Guardou o diário na gaveta. Era absolutamente inútil pensar em escondê-lo, mas poderia ao menos certificar-se de que sua existência fôra ou não descoberta. Um cabelo deposto na margem da página daria na vista. Com a ponta do dedo recolheu um grão identificável de pó esbranquieçado e depositou-o no canto da capa, donde certamente cairia se o livro fosse mexido.

3

Winston sonhava com sua mãe.

Devia ter uns dez ou onze anos quando sua mãe desaparecera. E  'ra alta, estatuesca, meio calada, de movimentos vagarosos e magnífico cabelo claro. Do pai lembrava-se mais vagamente. Era moreno e magro, vestia sempre roupas escuras, bem postas (Winston lembrava-se vivamente das solas finas dos sapatos do pai), e usava óculos. Os dois deviam, evidentemente, ter sido tragados num dos grandes expurgos de 1950-60.

Naquele momento porém sua mãe estava sentada à frente dêle, num lugar fundo, com a filhinha nos braços. Êle não se lembrava da irmã senão como um nenêzinho fraco, sempre calado, de olhos grandes e vigilantes. Ambas o fitavam. Encontravam-se nalgum subterrâneo - no fundo de um poço, ou numa tumba muito profunda - mas era um lugar que, apesar de já ser muito mais baixo, submergia ainda e cada vez mais. Estavam no salão de um navio que naufragava, e olhavam para êle através da água que escurecia. Ainda havia ar no salão; elas podiam vê-lo e êle a elas, mas todo tempo as duas continuavam afundando, baixando nas águas verdes que dentro de alguns momentos as ocultariam para sempre. Êle se encontrava no claro, e com ar, enquanto elas eram absorvidas pela morte, e estavam no fundo por causa dêle estar ali. Êle sabia disso, elas sabiam, e era visível que sabiam. Mas não havia censura nem na fisionomia nem no coração das duas, apenas a certeza de que deviam morrer para que êle continuasse vivo, e que aquilo era parte da ordem inevitável das coisas.

Não podia lembrar-se do quê sucedera, mas sabia no sonho que, dum modo ou doutro, a vida de sua mãe e de sua irmã tinham sido sacrificadas pela dêle. Era um dêsses sonhos que, embora retenham o cenário onírico característico, são a continuação da vida intelectual do indivíduo, e no qual toma conhecimento de fatos e idéias que mesmo depois de acordar ainda parecem novos e valiosos. A coisa que agora impressionava Winston de repente era que a morte de sua mãe, quase trinta anos atrás, fôra trágica e tristonha, de um modo que não seria mais possível. Êle percebia que a tragédia pertencia ao tempo antigo, a uma época em que havia ainda vida privada, amor e amizade, e em que os membros duma família amparavam uns aos outros sem indagar razões. A lembrança de sua mãe maguava-lhe o coração porque ela morrera amando-o, numa época em que êle era criança e egoista demais para corresponder-lhe e porque, de certo modo, que êle não recordava, ela se sacrificara a uma concepção de lealdade particular e inalterável. Êle via que tais coisas não mais podiam acontecer. Hoje o que havia era medo, ódio, dor, porém nenhuma dignidade de emoção, nenhuma mágua profunda ou complexa. Tudo isto lhe pareceu ver nos grandes olhos de sua mãe e sua irmã, olhando-o através da água verde em que afundavam, centenas de braças abaixo donde êle estava.

De repente encontrou-se num relvado fofo e curto, numa noite estival, em que os raios oblíquos do sol ainda douravam o chão. A paisagem que contemplava aparecia tanto em seus sonhos que nunca podia ter certeza de a ter visto ou não no mundo real. Desperto, chamava-a de Terra Dourada. Era um velho pasto estragado pelos coelhos, com uma picada que serpeava de um lado a outro, e pontilhado de cupins. Na sebe maltratada, do outro lado do campo, os ramos dos ulmeiros balouçavam de leve na brisa, e suas folhas palpitavam em densas massas, como cabelo de mulher. Por ali perto, embora invisível, havia um regato límpido e lento, em que nadavam os mugens, nos espraiados à sombra dos chorões.

A moça do cabelo escuro vinha ao encontro dêle, atravessando o campo. Com o que pareceu a Winston um único movimento, ela arrancou as roupas e atirou-as desdenhosamente para o lado. Tinha o corpo alvo e macio, mas não lhe despertou desejo; na verdade, mal o olhou. O que o possuia naquele instante era admiração pelo gesto com que atirara as roupas de lado. Com sua graça e displicência parecia aniquilar uma cultura inteira, todo um sistema de pensa-

mento, como se o Grande Irmão, o Partido e a Polícia do Pensamento pudessem ser lançados ao nada por um gesto símples e esplêndido. Aquele também era um gesto que Pertencia aos tempos antigos. E Winston despertou com a palavra "Shakespeare" nos lábios.

A teletela estava soltando Um apito ensurdecedor, que continuou no mesmo tom durante uns trinta segundos. Eram sete e quinze, hora de se levantarem os empregados de escritórios. Winston arrancou o corpo da cama - nú, porquanto um membro do Partido Externo só recebia três mil cupões do racionamento de roupas por ano, e as duas peças de um pijama exigiam seiscentos - e apanhou uma camiseta suja e um par de cuecas que colocara numa cadeira próxima. A Educação Física começaria dentro de três minutos. No momento seguinte foi presa de violento acesso de tosse, que quase sempre o atacava pouco depois de levantar. Esvaziava-lhe os pulmões de tal forma que só podia recomeçar a respirar deitando-se de costas e aspirando fundo uma porção de vezes. As veias tinham inchado com o esfôrço da tosse, e a variz ulcerada começou a coçar.

- Grupo de trinta a quarenta! - bradou uma aguda voz feminina. - Grupo de trinta a quarenta! Tomai vossos lugares, por favor. De trinta a quarenta!

Winston ficou em posição de sentido diante do aparelho, onde já aparecera a imagem de uma moça magricela porém musculosa, metida em uniforme e sapatos de ginástica.

- Dobrar e esticar os braços! - ordenou. - Acompanhai o meu ritmo. Um, dois, três, quatro! Um, dois, três, quatro! Vamos, camaradas, um pouco de vida nisso! Um, dois, três, quatro! Um, dois, três, quatro!...

A dor do acesso de tosse não afugentara inteiramente do espírito de Winston a impressão produzida pelo sonho, e de certo modo os movimentos rítmicos do exercício a reavivaram. Enquanto atirava mecanicamente os braços para frente e para trás, afivelando no rosto o ar de carrancudo prazer que se considerava recomendável durante a Educação Física, lutava para recordar-se do período obscuro da infância. Era extraordinàriamente difícil. Do acontecido antes de 1960, tudo desbotara. Não havia anais a que fazer referência, e portanto até o fio da vida pessoal perdia nitidez. Lembrava-se de momentosos acontecimentos que com tôda probabilidade não tinham tido lugar, recordava-se dos pormenores de incidentes sem conseguir recapturar-lhes a atmosfera, e havia longos períodos em branco, aos quais nada podia atribuir. Tudo então fôra diferente. Tinham sido diferentes até os nomes de países, e suas formas no mapa. A Pista N.º 1 não tinha êsse nome naquela época: chamava-se Inglaterra, ou Grã-Bretanha, embora Londres - disso tinha certeza quase absoluta - sempre tivesse sido Londres.

Winston não podia lembrar definitivamente uma época em que o país não estivesse em guerra, mas era evidente um intervalo de paz bastante longo durante a sua infância, porque uma das suas mais longínqüas recordações era de um bombardeio aéreo que parecera a todos surpreender. Fôra talvez quando a bomba atômica caira em Colchester. Não se lembrava do bombardeio em si, mas lembrava-se do pai a segurar-lhe a mão com força, enquanto corriam para um lugar nas profundezas da terra, dando voltas e voltas numa escada espiral que fazia ruido sob seus pés e que por fim lhe cansou tanto as pernas que êle começou a choramingar e pararam para descansar. Sua mãe, com modos lentos e sonhadores, seguia-os a grande distância. Levava nos braços a menina - ou talvez fossem apenas cobertores: Winston não tinha certeza da garota já ser nascida. Por fim tinham ido dar num lugar atulhado e barulhento, que verificou ser uma estação do trem subterrâneo.

Havia gente sentada no chão de lagedo, e outros, muito apertadinhos, sentavam-se em catres metálicos, arrumados como beliches. Winston, mãe e pai, encontraram um lugar, perto dum velho e duma velha sentados num catre. O velho vestia um terno escuro, de boa qualidade e boné de pano preto na cabeça tôda branca. Tinha o rosto escarlate, e os olhos azuis cheios de lágrimas. Fedia a gin. Parecia porejá-lo pela pele, em vez de suor, e podia-se imaginar fossem puro álcool as lágrimas que lhe cresciam nos olhos. Entretanto, apesar de ligeiramente bêbedo, sofria uma dor genuina e insuportável. Com sua percepção infantil, Winston viu que algo terrível, que não tinha perdão nem remédio, acabara de suceder. Pareceu-lhe também saber do que se tratava. Morrera no bombardeio alguém que o velho amava; uma netinha talvez. A curtos intervalos, o velho repetia:

- Não deviamo tê comfiança neles. Eu te disse, Mãe, não disse? Foi nisso que deu tê confiança neles. Foi o que eu sempre disse. Não deviamo tê confiança nos sacana.

Mas quais sacanas não mereciam confiança, Winston já não se lembrava.

Desde mais ou menos aquela época, a guerra fôra literalmente contínua, embora, a rigor, não fosse sempre a mesma guerra. Durante vários meses, durante sua meninice, houvera confusas lutas de rua na própria Londres, e de algumas êle se recordava vivamente. Mas seguir a história de todo o período, dizer quem lutava, contra quem, em determinado momento, seria absolutamente impossível, já que nenhum registro escrito, nem palavra oral, jamais faziam menção de outro alinhamento de forças, diferente do atual. Naquele momento, por exemplo, em 1984 (se é que era 1984), a Oceania estava em guerra com a Eurásia e era aliada da Lestásia. Em nenhuma manifestação pública ou particular se admitia jamais que as três potências se tivessem agrupado diferentemente. Na verdade, como Winston se recordava muito bem, fazia apenas quatro anos a Oceania estivera em guerra com a Lestásia e em aliança com a Eurásia. Isso, porém, não passava de um naco de conhecimento furtivo, que êle possuía porque a sua memória não era satisfatoriamente controlada. Oficialmente, a mudança de aliados jamais tivera lugar. A Oceania estava em guerra com a Eurásia: portanto, a Oceania sempre estivera em guerra com a Eurásia. O inimigo do momento representava sempre o mal absoluto, daí decorrendo a impossibilidade de qualquer acordo passado ou futuro com êle.

O espantoso, refletiu pela décima milésima vez, ao forçar os ombros dolorosamente para trás (mãos nas cadeiras, fazia girar o corpo pela cintura, exercício que se acreditava fazer bem aos músculos dorsais) - o espantoso é que pode mesmo ser verdade. Se o Partido tem o poder de agarrar o passado e dizer que êste ou aquele acontecimento nunca se verificou - não é mais aterrorizante do que a simples tortura e a morte?

O Partido dizia que a Oceania jamais fôra aliada da Eurásia. Êle, Winston Smith, sabia que a Oceania fôra aliada da Eurásia não havia senão quatro anos. Onde, porém, existia êsse conhecimento? Apenas em sua consciência, o que em todo caso devia ser logo aniquilada. E se todos os outros aceitassem a mentira imposta pelo Partido - se todos os anais dissessem a mesma coisa - então a mentira se transformava em história, em verdade. "Quem controla o passado," dizia o lema do Partido, "controla o futuro: quem controla o presente controla o passado." E no entanto o passado, conquanto de natureza alterável, nunca fôra alterado. O que agora era verdade era verdade do sempre ao sempre. Era bem simples. Bastava apenas uma série infinda de vitórias sôbre a memória. "Controle da realidade," chamava-se. Ou, em Novilíngua, "duplipensar."

- Descansar! - latiu a instrutora, um pouco mais benévola.

Winston deixou cair os braços e lentamente tornou a encher os pulmões de ar. Seu espírito mergulhou no mundo labiríntico do duplipensar. Saber e não saber, ter consciência de completa veracidade ao exprimir mentiras cuidadosamente arquitetadas, defender simultâneamente duas opiniões opostas, sabendo-as contraditórias e ainda assim acreditando em ambas; usar a lógica contra a lógica, repudiar a moralidade em nome da moralidade, crer na impossibilidade da democracia e que o Partido era o guardião da democracia; esquecer tudo quanto fosse necessário esquecer, trazê-lo à memória prontamente no momento preciso, e depois torná-lo a esquecer; e acima de tudo, aplicar o próprio processo ao processo. Essa era a sutileza derradeira: induzir conscientemente a inconsciência, e então, tornar-se inconsciente do ato de hipnose que se acabava de realizar. Até para compreender a palavra "duplipensar" era necessário usar o duplipensar.

Nesse momento a instrutora chamou-os de nova à ginástica.

- Vamos ver quem de nós é capaz de tocar a ponta dos pés! - disse, com entusiasmo - Sem dobrar os joelhos, camaradas, só a cintura. Um-dois! Um-dois!

Winston odiava êsse exercício, que lhe produzia dores nas pernas, desde os tornozelos até as nádegas e não raro lhe provocava acessos de tosse. O ar semi-agradável sumiu de suas meditações. O passado, refletiu, não apenas fôra alterado, fôra efetivamente destruido. Por que, como estabelecer até mesmo o fato mais patente, se não havia dêle registro, além do da memória? Tentou recordar-se do ano em que ouvira pela primeira vez falar do Grande Irmão. Achou que deveria ter sido na década de 1960 a 70, mas era impossível ter certeza. Nas histórias do Partido, o Grande Irmão naturalmente figurava como chefe e guardião da Revolução, desde o princípio. Suas elocubrações tinham aos poucos recuado no tempo até atingir o mundo fabuloso de 1930 a 50, éPoca em que os capitalistas, com estranhos chapéus cilíndricos, ainda rodavam pelas ruas de Londres em grandes e

brilhantes automóveis ou carruagens com janelas de vidro. Não era Possível saber até onde essa lenda era verdade e até onde era invenção. Winston não podia lembrar-se nem da data em que o Partido viera à luz. Não acreditava ter ouvido a palavra Ingsoc antes de 1960, mas era provável que na sua forma antiga, em Antilíngua - "Socialismo inglês"

- fosse corrente antes daquele ano. Tudo se fundia na névoa. As vezes, porém, podia colocar o dedo numa mentira definida. Não era verdade, por exemplo, como afirmavam os livros de história do Partido, que o Partido tivesse inventado o aeroplano. Lembrava-se de aviões desde a mais tenra idade. Mas não podia provar nada. Nunca havia prova. Apenas uma vez, em tôda sua vida, tinha tido em mãos prova documental inconfundível da falsificação de um fato histórico. E naquela ocasião...

- Smith! - gritou da teletela a voz da megera.             -

6079 Smith W! Tu, tu mesmo! Inclina-te mais, por favor. Podes fazer mais que isso. Não, não estás te esforçando. Mais baixo! Assim está melhor, camarada. Agora, todo mundo, descansar! Olhai   para mim.

Um calor quente e súbito dominou todo o corpo de Winston. O rosto continuou inescrutável. Jamais revelar desânimo! Jamais revelar ressentimento! Um simples olhar podia denunciá-lo. Ficou olhando a instrutora levantar os braços acima da cabeça e - não se podia dizer com graça mas com notável decisão e eficiência - inclinar-se e meter a falangeta sob os artelhos.

- Pronto, camaradas! É isto que vos quero ver fazer. Olhai de novo. Estou com trinta e nove anos e tive quatro filhos. Olhai. - Inclinou-se de novo - Vêde, que não dobro os joelhos! Todos podeis fazer, se quizerdes, - acrescentou, enquanto se levantava. - Com menos de quarenta e cinco, qualquer um pode tocar a ponta dos pés. Não temos todos o privilégio de lutar nas linhas da frente, mas pelo menos podemos conservar a linha e a saúde. Lembrai-vos dos rapazes da frente de Malabar! E dos marinheiros das Fortalezas Flutuantes! Pensai no que êles têm de suportar. Vamos tentar de novo. Agora está melhor, camarada, muito melhor! - ajuntou, animando-o, quando Winston, num tranco violento, conseguiu tocar os pés sem dobrar os joelhos, pela primeira vez em vários anos.

4

Com o suspiro profundo e inconsciente que nem mesmo a proximidade da teletela podia impedir, ao iniciar o dia de trabalho, Winston puxou para perto o falascreve, soprou a poeira do bocal e colocou os óculos. Depois desenrolou e grampeou quatro pequenos rolos de papel que haviam caido do tubo pneumático à direita da mesa.

Nas paredes do cubículo havia três orifícios. À direita do falascreve, um pequeno tubo pneumático para mensagens escritas; à esquerda, outro maior, para jornais; e no meio, bem ao alcance do braço de Winston, uma grande abertura retangular protegida por uma grade de arame. Destinava-se ao desembaraço de papéis servidos. Aberturas idênticas existiam aos milhares, ou às dezenas de milhares em todo o edifício, não apenas nas salas, como a pequenos intervalos, nos corredores. Por um motivo qualquer, haviam sido apelidados de buracos da memória. Quando se sabia que algum documento devia ser destruido, ou mesmo quando se via um pedaço de papel usado largado no chão, era gesto instintivo, automático, levantar a tampa do mais próximo buraco da memória e jogar o papel dentro dêle para que fosse sugado pela corrente de ar morno, até as caldeiras enormes, ocultas nalguma parte, nas entranhas do prédio.

Winston examinou as quatro tiras de papéis que havia desenrolado. Cada uma continha um recado de apenas uma ou duas linhas, na jíria abreviada - não se tratava só de Novilíngua, porém continha principalmente palavras nesse idioma - utilizada no Ministério para comunicações internas. Diziam:

times 17.3.84 gi disc malrepro africa retifica

times 19.12.83 previsão 3 ac 4.º trimestre 83 errata verifica número hoje

times 14.2.84 minifarto malnotícia chocolate retifica times 3.12.83 notícia ordemdia gi dupliplusimbom refs impessoas reescreve compl subsuper prearquivo.

Com um ligeiro sentimento de satisfação, Winston colocou de lado o quarto bilhete. Era um trabalho complexo e de responsabilidade, que seria melhor deixar por último. Os outros três eram simples questão de rotina, conquanto o segundo talvez exigisse uma tediosa pesquisa de cifras.

Winston discou "números atrasados" na teletela e pediu os exemplares correspondentes do Times, que escorregaram da bôca do tubo pneumático depois de uns minutos de espera. As mensagens recebidas referiam-se a artigos ou notícias que, por um motivo ou outro, deviam ser alterados ou, como se dizia oficialmente, retificados. Por exemplo, o Times de dezessete de março publicara que o Grande Irmão, discursando na véspera, predissera que a frente meridional indiana continuaria serena mas que seria lançada em breve uma ofensiva eurasiana no Norte da África. Entretanto, o Alto Comando Eurasíano desfechara sua ofensiva no sul da índia, deixando a África em paz. Tornava-se portanto necessário reescrever um parágrafo do discurso do Grande Irmão, de maneira a fazer com que predissesse exatamente o que sucedera. Ou ainda, o Times de dezenove de dezembro publicara as previsões oficiais da produção de vários artigos de consumo no quarto trimestre de 1983, correspondente ao sexto trimestre do Novo Plano Trienal. O jornal de hoje continha uma notícia sobre a produção real, pela qual se verificava que as profecias estavam redondamente erradas.

O serviço de Winston era retificar as cifras originais, fazendo com que concordassem com as posteriores. Quanto ao terceiro bilhete referia-se a simplíssimo erro, que poderia ser consertado num minuto. Recentemente, em fevereiro, o Ministério da Fartura dera a público uma promessa ("penhor categórico" eram as palavras oficiais) de que não haveria corte da ração de chocolate em 1984. Na verdade, como o

sabia Winston, a ração de chocolate deveria ser reduzida de trinta a vinte gramas no fim da semana. Bastava portanto substituir a promessa original por uma advertência de que provàvelmente seria necessário reduzir a ração por volta de abril.

Assim que Winston providenciou as correções ordenadas, prendeu com um grampo as correções falascritas aos exemplares correspondentes do Times e meteu-os no tubo pneumático. Daí, com um movimento tão inconsciente quanto possível, amassou o recado original e as notas que havia feito, e atirou-as no buraco da memória, para pasto das chamas.

O que sucedia no labirinto invisível a que levavam os tubos pneumáticos, êle não sabia em detalhe, mas apenas em termos gerais. Assim que fossem reunidas e classificadas todas as correções consideradas necessárias a um dado número do Times, aquela edição era reimpressa, destruido o número original, e o exemplar correto colocado no arquivo, em seu lugar. Êsse processo de alteração contínua aplicava-se não apenas a jornais, como também a livros, publicações periódicas, panfletos, cartazes, folhetos, filmes, bandas de som, caricaturas, fotografias - a toda espécie de literatura ou documentação que pudesse ter o menor significado político ou ideológico. Dia a dia e quase minuto a minuto o passado era atualizado. Desta forma, era possível demonstrar, com prova documental, a correção de tôdas as profecias do Partido; jamais continuava no arquivo uma notícia, artigo ou opinião que entrasse em conflito com as necessidades do momento. Tôda a história era um palimpsesto, raspado e reescrito tantas vezes quantas fosse necessário. Em nenhum caso seria possível, uma vez feita a operação, provar qualquer fraude. A maior secção do Departamento de Registro, muito maior do que a de Winston, consistia simplesmente de gente que tinha por obrigação procurar e separar todos os exemplares de livros, jornais e outros documentos superados e por isso destinados à eliminação. Continuava no arquivo, com a data original, uma porção de Times que talvez, por causa de modificações do alinhamento político, ou profecias erradas do Grande Irmão, haviam sido alterados uma dúzia de vezes, e não havia outros exemplares que pudessem contradizê-lo. Os livros também eram recolhidos e reescritos uma porção de vezes, e invariàvelmente entregues aos leitores sem admissão alguma da troca. Nem mesmo as instruções escritas que Winston recebia, e das quais invariàvelmente se desfazia assim que as cumpria, ordenavam ou insinuavam qualquer ato de falsificação: a referência era sempre a erros, enganos, equívocos, mal-interpretações que precisavam ser corrigidos, no interêsse da exatidão.

Na verdade, porém (êle filosofou, enquanto reajustava as cifras do ministério da Fartura), não chegava a falsificação. Era apenas a substituição de uma sandice por outra. A maior parte do material tratado não tinha relação alguma com coisas reais, nem mesmo o tipo da ligação que se contém numa mentira declarada. As estatisticas eram tão fantásticas na versão original como na retificada. Com efeito, era função do pessoal inventar estatísticas, tirando-as da própria cachola. Por exemplo, o cálculo do Ministério da Fartura, prevendo a produção trimestral de botinas num total de cento e quarenta e cinco milhões de pares. A produ ção real, dizia-se, fôra de sessenta e dois milhões. Todavia Winston, ao reescrever a previsão, reduzira a cifra a apenas cinquenta e sete milhões, de modo a poder protestar, como de hábito, que a cota fôra superada. Em qualquer caso, os sessenta e dois milhões estavam tão perto da verdade quanto cinquenta e sete, ou cento e quarenta e cinco. Com tôda probabilidade, não haviam fabricado botina alguma. Ou, mais certo ainda, ninguém tinha a menor idéia de quantos calçados tinham sido produzidos; nem ninguém se importava. Tudo o que se sabia é que, cada trimestre, quantidades astronômicas de botinas eram produzidas no papel, ao passo que talvez metade da população da Oceania andava descalça. E assim era com todos os fatos registrados, pequenos ou grandes. Tudo se fundia e confundia num mundo de sombras no qual, por fim, até a data do ano se tornara incerta.

Winston olhou para o outro lado do corredor. Num cubículo correspondente ao seu, um homenzinho de queixo escuro e cara de precisionista, trabalhava com afinco, um jornal dobrado sôbre os joelhos e a boca bem junto ao tubo do falascreve. Chamava-se Tillotson, e parecia querer manter o que dizia em segrêdo entre êle e a teletela. Levantou os olhos e seus óculos relampaguearam uma centelha hostil na direção de Winston.

Winston mal conhecia Tillotson, e não tinha idéia de qual seria o seu serviço. Os funcionários do Registro hesitavam em falar das suas atividades. No longo corredor sem janelas, com sua dupla fila de cubículos e o interminável roçar de papéis e jornais, e a zoeira das vozes murmurando dentro dos falascreve, havia cerca de uma dúzia de pessoas que Winston não conhecia nem de nome, embora as visse andar apressadas pelo pavimento ou gesticular frenéticas nos Dois Minutos de ódio. Sabia que no cubículo ao lado a mulherzinha do cabelo côr de areia labutava dia após dia, não fazendo outra coisa senão procurar e suprimir da imprensa os nomes de pessoas vaporizadas, e portanto consideradas inexistentes. Era justo que tivesse êsse emprêgo, pois seu marido fôra vaporizado havia alguns anos. A alguns cubículos adiante, uma criatura terna, ineficiente, sonhadora, um homem chamado Ãmpleforth, de orelhas muito peludas e surpreendente talento para manejar rimas e metros, empenhava-se na produção de versões modificadas - textos definitivos, chamavam-se - de poemas que se haviam tornado ideológicamente ofensivos mas que, por um motivo ou outro, tinham de ser conservados nas antologias. E aquele corredor, com cerca de cinquenta funcionários, era apenas uma subseção, uma simples célula, podia-se dizer, da enorme complexidade do Departamento de Registro. Para cima, para baixo, para os lados, havia outros enxames de servidores executando uma inimaginável multidão de tarefas. Havia as enormes oficinas gráficas, com os seus sub-redatores, seus peritos em tipografia, e seus estúdios, equipadíssimos para a falsificação de fotografias. Havia a seção de teleprogramas com os seus técnicos, seus produtores, e as equipes de atores escolhidos especialmente pelo talento na imitação de vozes. Havia batalhões de investigadores de referências, cujo trabalho era apenas organizar listas de livros e periódicos a recolher. Havia os vastos depósitos, onde os documentos corrigidos eram guardados, e os fornos ocultos onde os originais eram destruidos. E funcionando anônimamente não se sabia como, nem onde, ficava o cérebro orientador, que coordenava todo o trabalho e fixava diretrizes, mandando conservar êste ou aquele fragmento do passado, falsificar outro, e eliminar completamente aquele outro.

E o Departamento de Registro, afinal de contas, não passava de uma pequena parte do Ministério da Verdade, cuja missão básica era não reconstruir o passado mas fornecer aos cidadãos da Oceania jornais, filmes, livros escolares, programas de teletela, peças, romances - com tôdas as informações concebíveis, instruções ou entretenimento, desde uma estátua até uma palavra de ordem, desde um poema lírico até um tratado de biologia, desde um be-a-bá até um dicionário de Novilíngua. E o Ministério tinha que satisfazer não apenas as cOmplexas necessidades do Partido, como repetir a mesma operação, em nível inferior, para o proletariado. Havia tôda uma série de departamentos autônomos que tratavam de li-

teratura, música, teatro e divertimentos proletários em geral. Neles eram produzidos jornalecos ordinários que continham pouca coisa mais que notícias de esporte, polícia e astrologia, sensacionais noveletas de cinco centavos, filmes transbordando de sexo, e cançonetas sentimentais compostas inteiramente por meios mecânicos numa espécie de caleidoscópio especial denominado versificador. Havia até uma sub-seção inteira - a Pornosec, como a chamavam em Novilíngua - dedicada à produção da pornografia mais reles, embalada em envelopes fechados, e que nenhum membro do Partido, além dos que nela trabalhavam, tinha licença de ver.

Enquanto Winston trabalhava, três bilhetes haviam caido do tubo pneumático; mas eram coisas simples, e êle os liquidou antes dos Dois Minutos de ódio o interromperem. Depois de terminado o ódio, voltou ao cubículo, apanhou o dicionário de Novilíngua da prateleira, empurrou o falascreve para o lado, limpou os óculos, e dedicou-se à tarefa principal da manhã.

O trabalho era o maior prazer na vida de Winston. Em geral, não passava duma rotina aborrecida, mas incluía às vezes trabalhos tão difíceis e intrincados que neles se podia perder como nas profundidades de um problema matemático - falsificações delicadas, sem coisa alguma para servir de orientação, além do conhecimento dos princípios do Ingsoc e um cálculo do que o Partido desejava fosse dito. Winston destacava-se nesse tipo de trabalho. Em certas ocasiões lhe haviam confiado até a retificação de artigos de fundo do Times, escritos inteiramente em Novilíngua. Desenrolou o bilhete que pusera de lado antes. Dizia:

times 3.12.83 noticia ordemdia gi dupliplusimbom refs impessoas reescreve compl subsuper prearquivo.

Em Anticlíngua (ou inglês comum) se poderia traduzir: A notícia da Ordem do Dia do Grande Irmão no Times de 3 de dezembro de 1983 é extremamente insatisfatória e faz referência a pessoas não existentes. Reescreve por completo e submete a minuta à autoridade superior antes de arquivar.

Wínston leu o artigo ofensivo. Ao que parece, a Ordein do Dia do Grande Irmão ocupara-se principalmente de elogiar a obra de uma organização conhecida por CCFF, que fornecia cigarros e outras miudezas aos marinheiros das Fortalezas Flutuantes. Um certo Camarada Withers, eminente membro do Partido Interno, merecera menção especial e até uma condecoração, a Ordem do Mérito Evidente, Segunda Classe.

Três meses depois a CCFF fôra dissolvida de repente, sem que se explicassem as razões. Podia-se imaginar que Withers e seus auxiliares tivessem caido em desgraça, porém nada transpirara nem na imprensa nem na teletela. Era de esperar-se, aliás, pois era incomum que os contraventores políticos fossem julgados ou mesmo denunciados em público. Os grandes expurgos, envolvendo milhares de pessoas, com julgamentos públicos de traidores e ideocriminosos que confessavam abjetamente os seus crimes, sendo depois executados, eram espetáculos especiais, que não ocorriam senão de dois em dois anos.  O mais comum era as pessoas caídas na antipatia do Partido sumirem simplesmente, e nunca mais se ouvir falar delas. Nunca se tinha a mínima idéia do que lhes sucedera. Em alguns casos, era até possível que não tivessem morrido.  Sem contar seus pais, Winston conhecia pessoalmente umas   trinta pessoas que haviam desaparecido.

Winston arranhou o nariz, de leve, com um grampo de papel. No cubículo do outro lado o Camarada Tillotson ainda se inclinava furtivo sôbre o falascreve. Levantou a cabeça por um momento: de novo o lampejo hostil dos óculos. Winston indagou de si próprio se acaso o Camarada Tillotson estava fazendo o mesmo que êle. Era perfeitamente possível. Trabalho tão delicado não devia nunca ser confiado a uma só pessoa; por outro lado, entregá-lo a um comité seria admitir abertamente a falsificação. O mais provável era que umas doze pessoas estivessem trabalhando em versões rivais do que na verdade dissera o Grande Irmão. Mais tarde, algum cérebro privilegiado do Partido Interno escolheria esta ou aquela versão, retocá-la-ia nalguns pontos e daria início aos complicados processos de referência cruzada necessários, e daí a mentira selecionada passaria aos anais permanentes, tornando-se verdade.

Winston não sabia porque Withers se desgraçara. Talvez por incompetência ou corrupção. Talvez o Grande Irmão apenas desejasse se livrar de um subordinado demasiado Popular. Ou quem sabe Withers, ou alguém ligado a êle tivesse sido suspeito de tendencias heréticas. Ou quiçá -era o mais provável - a coisa tivesse sucedido apenas porque Os expurgos e as vaporizações eram parte necessária da mecânica do govêrno. A única revelação positiva estava nas palavras "refs impessoas", que indicavam que Withers já

morrera. Não se devia imaginar isso, automàticamente, quando as pessoas eram detidas. As vezes eram postas em liberdade e assim continuavam um ano ou dois, antes de executadas. Muito raramente, pessoas que se acreditavam mortas havia muito tempo, -reapareciam como fantasmas num julgamento público, implicavam centenas de outras com seu testemunho e tornavam a desaparecer, então para sempre. Withers, todavia, já era uma impessoa. Não existia; nunca existira. Winston resolveu que não bastaria inverter a tendência do discurso do Grande Irmão, Seria melhor focalizar um assunto completamente desligado do tema original.

Poderia transformar a oração na denúncia costumeira dos traidores e ideocriminosos, porém isso daria um pouco na vista, enquanto que inventar uma vitória na frente, ou algum triunfo de superprodução no Nono Plano Trienal, poderia complicar demais os registros. Era preciso uma peça de pura fantasia. De repente, brotou-lhe na mente, sob rnedida, a imagem de um tal Camarada Ogilvy, recém-falecido em combate, em circunstâncias heróicas. Ocasiões havia em que o Grande Irmão dedicava a sua Ordem do Dia ao tributo de um humilde membro do Partido, um soldado raso, cuja vida e morte podiam ser apontadas como exemplos dignos de ser seguidos. Hoje, êle homenagearia o Camarada Ogilvy. Bem verdade, não existira essa pessoa, porém umas linhas de tipo e um par de fotos falsificadas logo lhe dariam vida.

Winston pensou um momento, puxou o falascreve para perto e começou a ditar no estilo familiar do Grande Irmão: estilo ao mesmo tempo militar e pedante, e muito fácil de imitar, por causa da abundância de perguntas retóricas, que êle fazia e êle próprio respondia ("Que lições devemos tirar dêste fato, camaradas? A lição - que é também um dos princípios fundamentais do Ingsoc - de que," etc., etc.).

Aos três anos de idade o Camarada Ogilvy recusava todos os brinquedos, além dum tambor, uma sub-metralhadora e um modêlo de helicóptero. Aos seis anos, - um ano antes do normal, por especial concessão - matriculara-se nos Espiões; aos nove já era chefe da tropa. Aos onze, denunciara o tio à Polícia do Pensamento, depois de entreouvir uma conversa que lhe parecera revelar tendencias criminosas. Aos dezessete tornara-se organizador distrital da Liga Juvenil Anti-Sexo. Aos dezenove, desenhara uma granada de mão adotada pelo Ministério da Paz e que, na sua primeira experiência, matara numa só explosão trinta e um prisioneiros eurasianos. Aos vinte e três perecera em ação. Perseguido por jatos inimigos ao sobrevoar o oceano índico com importantes despachos, amarrara ao corpo como contrapeso a sua metralhadora e saltara do helicóptero ao mar, com despachos e tudo - um fim que, segundo o Grande Irmão, não se podia contemplar sem sentir inveja. O Grande Irmão acrescentou alguns comentários sôbre a pureza e a unidade de propósito da vida do Camarada Ogilvy. Era abstinente total, não fumava, não se entregava a recreações além de uma hora no ginásio; fizera voto de celibato, por acreditar que o casamento e o cuidado da família eram incompatíveis com a devoção de vinte e quatro horas ao dever. Não tinha na conversação outros assuntos além dos princípios do Ingsoc, e nenhum objetivo na vida excepto a derrota do inimigo eurasiano e a perseguição de espiões, sabotadores, ideocriminosos e traidores em geral.

Winston debateu consigo mesmo se devia ou não conferir ao Camarada Ogilvy a Ordem do Mérito Evidente; por fim resolveu-se contra, em vista das desnecessárias referências cruzadas que envolveria.

De novo tornou a relancear a vista para o rival no cubículo defronte. Algo parecia dizer-lhe, com certeza, que Tillotson estava empenhado no mesmo trabalho que êle. Não havia meio de saber qual das versões por fim seria adotada, mas tinha a profunda convicção de que seria a sua. O Camarada Ogilvy, inexistente uma hora atrás, era agora um fato. Pareceu-lhe curioso ter a faculdade de criar homens mortos, mas não vivos. O Camarada Ogilvy, que jamais existira no presente, agora existia no passado, e existia com a mesma autenticidade, e as mesmas provas, que Carlos Magno ou Júlio César.

5

Na cantina de baixo pé direito, metida nas entranhas do solo, arrastava-se devagarinho a fila do almoço. A sala já estava atulhada, e o barulho era ensurdecedor. Da grade do balcão vinha uma nuvem de vapor de guisado, um cheiro metálico, azedo, que não chegava a dominar o odor do gin Vitória. Do outro lado da sala havia um pequeno bar,     um simples nicho na parede, onde se podia comprar gin a     dez centavos a dose grande.

- Exatamente quem eu procurava - disse uma  voz atrás de Winston.

Voltou-se. Era o seu amigo Syme, que trabalhava no Departamento de Pesquisa. "Amigo" talvez não fosse a palavra correta. Não se tinham mais amigos, tinham-se camaradas; mas havia alguns camaradas cuja companhia era mais agradável que outros. Syme era filólogo, especialista em Novilíngua. Com efeito, fazia parte da enorme equipe de peritos empenhada na compilação da Décima Primeira Edição do dicionário da Novilíngua. Era um sujeito mirrado, menor que Winston, de cabelo escuro e olhos grandes, saltados, que eram ao mesmo tempo zombeteiros e tristonhos, e que pareciam examinar atentamemte a face do interlocutor.

- Queria te perguntar se tens uma gilete - disse êle.

- Nenhuma! - respondeu Winston, apressado, como quem se sente culpado. - Procurei em tôda parte. Não existem.

Todo mundo vivia procurando gilete. Na verdade tinha duas lâminas, que estava escondendo. Havia meses que faltavam na praça. Em determinado momento, havia sempre algum artigo necessário que as lojas do Partido não tinham para fornecer. As vezes eram botões, outras linha para serzir meias, outras atacadores para sapatos; no momento, eram lâminas de barba. Só podiam ser encontradas, com um pouco de sorte, numa busca furtiva no mercado "livre."

- Há seis semanas que uso a mesma lâmina - acrescentou, mentindo.

A fila deu mais um salto à frente. Quando pararam, êle se voltou e encarou Syme outra vez. Os dois apanharam bandejas de metal, engorduradas, de uma pilha na ponta do balcão.

- Foste ver os enforcamentos, a noite passada? - indagou Syme.

- Estava trabalhando - disse Winston, com indiferença.

- Com certeza verei no cinema.

- Pobre substituição - comentou Syme. Seus olhos galhofeiros examinaram o rosto de Winston. Pareciam dizer: "Eu te conheço. Vejo através de ti, sei muito bem porque não foste ver os prisioneiros enforcados." Intelectualmente, Syme era venenoso de tão ortodoxo. Falava com satisfação e júbilo, muito desagradáveis, de ataques de helicópteros a aldeias inimigas, julgamento e confissão de ideocriminosos, execuções no subsolo do Ministério do Amor. Para se conversar direito com êle era essencial afastá-lo dêsses assuntos, enredando-o, se possível, nas tecnicalidades da Novilíngua, a respeito do que era interessante e bem informado. Winston virou a cabeça um pouco para o lado, para fugir ao exame dos grandes olhos escuros.

- Foi um bom enforcamento - prosseguiu Syme, recordando. - Mas creio que estragam o espetáculo quando, amarram os pés do cara. Gosto de vê-los esperneando. Mas acima de tudo, no fim, a língua saltando da bôca, azulzinha - azul brilhante. É o detalhe que mais me interessa.

- Outro! - berrou o prole de avental branco, que empunhava a concha de sopa.

Winston e Syme empurraram as bandejas por baixo da grade. E cada um recebeu, em segundos, o almoço regulamentar - marmita de metal com um guisado rosa-cinza, um pedaço de pão, um cubo de queijo, uma xícara de Café Vitória, preto, uma tablete de sacarina.

- Vamos para aquela mesa debaixo da teletela, - disse Syme. - E no caminho pegamos um gin.

O gin foi servido em xícaras de louça sem asa. Atravessaram em ziguezague o salão cheio e largaram as bandejas numa mesa de tampo de metal, no canto da qual alguém

deixara um lago de cozido, um líquido nojento que parecia vômito. Winston apanhou -a xícara de gin, fez uma pausa para ganhar coragem e enguliu a beberagem de gosto oleoso. Ao limpar as lágrimas dos olhos, descobriu de repente que estava com fome. Pôs-se a engulir colheradas do cozido que, entre outros ingredientes, tinha cubos de uma massa rosada, esponjosa, que devia ser úma carne qualquer. Nenhum dos dois falou enquanto não esvaziaram as marmitas. Na mesa à esquerda de Winston, um pouco para trás, alguém falava rápido, sem parar, uma cantilena áspera que parecia o grasnar de um pato, e que conseguia romper o falatório da cantina.

- Como vai o dicionário? - perguntou Winston, levantando a voz para se fazer ouvir.

- Devagar - respondeu Syme. - Estou nos adjetivos. É fascinante.

O rosto se lhe iluminara imediatamente com a menção da Novilíngua. Empurrou a marmita para o lado, apanhou com a mão delicada o cubo de queijo, o pedaço de pão com a outra, e ínclinou-se sôbre a mesa, para poder falar sem gritar.

- A Décima Primeira Edição será definitiva - disse êle. - Estamos dando à língua a sua forma final - a forma que terá quando ninguém mais falar outra coisa. Quando tivermos terminado, gente como tu terá que aprendê-la de novo. Tenho a impressão de que imaginas que o nosso trabalho consiste principalmente em inventar novas palavras. Nada disso! Estamos é destruindo palavras - às dezenas, às centenas, todos os dias. Estamos reduzindo a língua à expressão mais simples. A Décima Primeira Edição não conterá uma única palavra que possa se tornar obsoleta antes de 2050.

Mordeu famintamente o pão e enguliu dois bocados. Depois continuou a falar, com uma espécie de paixão pedante. O rosto magro e moreno animara-se, os olhos haviam perdido a expressão de chacota e tinham-se tornado quase sonhadores.

- É lindo, destruir palavras. Naturalmente, o maior desperdício é nos verbos e adjetivos, mas há centenas de substantivos que podem perfeitamente ser eliminados. Não apenas os sinônimos; os antônimos também. Afinal de contas, que justificação existe para a existência de uma palavra que é apenas o contrário de outra? Cada palavra contém em si o contrário. "Bom", por exemplo. Se temos a palavra "bom," para que precisamos de "mau"? "Imbom" faz o mesmo efeito - e melhor, porque é exatamente oposta, enquanto que mau não é. Ou ainda, se queres uma palavra mais forte para dizer "bom", para que dispôr de tôda uma série de vagas e inúteis palavras como "excelente" e "esplêndido" etc. e tal? "Plusbom" corresponde à necessidade, ou "dupliplusbom" se queres algo inda mais forte. Naturalmente, já usamos essas formas, mas na versão final da Novilíngua não haverá outras. No fim, todo o conceito de bondade e maldade será descrito por seis palavras - ou melhor, uma única. Não vês que beleza, Winston? Naturalmente, foi idéia do Grande Irmão, - acrescentou, à guisa de conclusão.

Uma tênue ansiedade perpassou pelo rosto de Winston à menção do Grande Irmão. Isso não obstante, Syme imediatamente percebeu nele uma certa falta de entusiasmo.

- Não aprecias realmente a Novilíngua, Winston -disse, quase com tristeza. - Mesmo quando escreves em Novilíngua, pensas na antiga. Tenho lido artigos teus no Times. São bons, mas são traduções. No teu coração, havias de preferir a Anticlíngua, com tôda a sua imprecisão e suas inúteis gradações de sentido. Não percebes a beleza que é destruir palavras. Sabes que Novilíngua é o único idioma do mundo cujo vocabulário se reduz de ano para ano?

Winston naturalmente não sabia. Sorriu, com ar de simpatia (ao que esperava), não confíando em suas próprias palavras. Syme mordiscou outro fragmento do pão escuro, mastigou-o um pouco e continuou: -Não vês que todo o objetivo da Novilíngua é estreitar a gama do pensamento? No fim, tornaremos a crimidéia literalmente impossível, porque não haverá palavras para expressá-la. Todos os conceitos necessários serão expressos exatamente por uma palavra, de sentido rigidamente definido, e cada significado subsidiário eliminado, esquecido. Já, na Décima Primeira Edição, não estamos longe disso. Mas o processo continuará muito tempo depois de estarmos mortos. Cada ano, menos e menos palavras, e a gama da consciência sempre um pouco menor. Naturalmente, mesmo em nosso tempo, não há motivo nem desculpa para cometer uma crimidéia. É apenas uma questão de disciplina, controle da realidade. Mas no futuro não será preciso nem isso. A Revolução se completará quando a língua for perfeita. Novilíngua é Ingsoc e Ingsoc é Novilíngua, - agregou com uma

espécie de satisfação mística. - Nunca te ocorreu, Winston, que por volta do ano de 2050, o mais tardar, não viverá um único ser humano capaz de compreender esta nossa palestra?

- Excepto... - começou Winston, em tom de dúvida, mas parou de repente.

Estivera a pique de dizer "Excepto os proles", mas controlou-se, sem ter plena certeza de que essa observação fosse ortodoxa. Syme, todavia, adivinhara o que êle quisera dizer.

- Os proles não são seres humanos, - disse êle, descuidado. - Por volta de 2050, ou talvez mais cêdo, todo verdadeiro conhecimento da Anticlíngua terá desaparecido. A literatura do passado terá sido destruida, inteirinha. Chaucer, Shakespeare, Milton, Byron - só existirão em versões Novilíngua, não apenas transformados em algo diferente, como transformados em obras contraditórias do que eram. Até a literatura do Partido mudará. Mudarão as palavras de ordem. Como será possível dizer "liberdade é escravidão se for abolido o conceito de liberdade? Todo o mecanismo do pensamento será diferente. Com efeito, não haverá pensamento, como hoje o entendemos. Ortodoxia quer dizer não pensar... não precisar pensar. Ortodoxia é inconsciência.

Qualquer dia, refletiu Winston, com convicção profunda e repentina, Syme será vaporizado. É inteligente demais. Vê demasiado claro e fala sém subterfúgios. O Partido não gosta de gente assim. Um dia êle desaparecerá. Está na cara.

Winston liquidara o pão e queijo. Virou um pouco de lado na cadeira para beber a xícara de café. Na mesa à esquerda o homem da voz estridente continuava falando sem parar, sem dó dos ouvintes. Uma jovem, talvez su'a secretária, sentada de costas para Winston, escutava com atenção e parecia ansiosa em concordar com tudo quanto êle dizia, De vez em quando Winston apanhava uma observação como "Eu acho que tens tanta razão, concordo tanto contigo," dita numa voz feminina, juvenil e um tanto tola. Mas a outra voz não parava por um instante sequer, nem mesmo quando a moça falava. Winston conhecia o homem de vista, embora a seu respeito não soubesse senão que ocupava cargo importante no Departamento de Ficção. Teria uns trinta anos, e ostentava pescoço musculoso, e bôca grande, muito agitada. Como estava com a cabeça um pouco inclinada para trás, seus óculos captavam a luz e apresentavam a Winston dois discos brancos, em vez de olhos. O horrível era que daquela catadupa de som que borbotava de sua bôca, mal se podia distinguir uma palavra solta. Apenas uma vez Winston apanhou uma frase - "eliminação completa e final do goldsteinismo" - grasnada tôda de uma vez, numa peça só, como se fosse uma linha de linotipo. O resto não passava de barulho, quá-quá-quá. Embora não se pudesse ouvir o que o homem dizia, não podia haver dúvida quanto à natureza geral da litania. Talvez estivesse denunciando Goldstein e exigindo medidas mais severas contra os ideocriminosos e sabotadores, tálvez fulminando as atrocidades do exército eurasiano; podia estar louvando Grande Irmão ou os heróis da frente de Malabar - não fazia diferença. Fosse o que fosse, podia-se ter a certeza de que cada palavra era pura ortodoxia, puro Ingsoc. Olhando a cara sem olhos, a mandíbula mexendo sem parar, Winston teve a sensação curiosa de não se tratar de um legitimo ente humano, mas de uma espécie de manequim. Não era o cérebro do homem que falava, era a laringe. O que saía da bôca era constituido de palavras, mas não era fala genuina: era um barulho inconsciente, como o grasnido dum pato.

Syme calara-se por um momento, e com o cabo da colher desenhava arabescos de caldo sôbre a mesa. A voz da outra mesa continuou grasnando rápido, fácil de ouvir apesar da barulheira ambiente.

- Em Novilíngua há uma palavra que não sei se conheces. É patofalar - disse Syme. - Grasnar como pato. É uma dessas palavras interessantes que têm dois sentidos contraditórios. Aplicada a um adversário, é insulto; aplicada a um correligionário, é elogio.

Sem dúvida alguma Syme será vaporizado, Winston tornou a pensar. Pensou-o com um laivo de tristeza, embora soubesse muito bem que Syme o desprezava e hostilizava ligeiramente, e que era perfeitamente capaz de denunciá-lo como ideocriminoso se enxergasse algum motivo para assim Proceder. Havia algo de errado, de sutilmente errado, em Syme. Carecia de discreção, indiferença, e de estupidez salvadora. Não se podia dizer que fosse ortodoxo. Acreditava nos princípios do Ingsoc, venerava o Grande Irmão, rejubilava-se com as vitórias, odiava os hereges, não apenas com sinceridade como com zêlo incansável e informação recente, de que os militantes comuns não se aproximavam. Todavia, um ligeiro ar de má fama estava sempre presente nele. Dizia coisas que era melhor calar, lia livros demais, frequentava o

Café Castanheira, santuário de pintores e músicos. Não havia lei, nem implícita, contra a frequência do Café Castanheira; ainda assim, a casa era de maus preságios. Os antigos e desacreditados líderes do Partido costumavam reunirse lá, antes de serem expurgados. Dizia-se que o próprio Goldstein fôra visto algumas vezes lá, anos e décadas passadas. Não era difícil prever o fim de Syme. No entanto era fato que se Syme percebesse, por três segundos que fosse, a natureza das opiniões secretas de Winston, instantâneamente o denunciaria à Polícia do Pensamento. Aliás, era o que faria qualquer um: Syme mais que os outros, porém.

O zelo não bastava. Ortodoxia era inconsciência.

Syme ergueu o olhar.

- Aí vem Parsons, - anunciou. - E alguma coisa no seu tom de voz pareceu acrescentar: "aquele pobre idiota." De fato Parsons, vizinho de apartamento de Winston na Mansão Vitória, vinha se encaminhando para o lado dêles - um homenzinho atarracado, de estatura média, com cabelo claro e cara de rã. Aos trinta e cinco de idade, já criava rolos de gordura no pescoço e na barriga, mas seus movimentos eram alerta e infantis. Tôda a sua aparência era a de um menininho crescido, tanto que, embora usasse o macacão costumeiro,  era quase obrigatório imaginá-lo como um garoto de calças curtas azuis, camisa cinza e lenço vermelho dos Espiões. Visualizando Parsons, via-se sempre uma figura de joelhos gordos e covinhas, mangas arregaçadas sôbre braços cheios. Com efeito, Parsons invariàvelmente voltava aos shorts quando uma passeata comunal ou qualquer outra atividade física lhe dava pretexto. Cumprimentou-os com um quérulo "Alô, alô!" e sentou-se à mesa, cheirando intensamente a suor. Gotinhas de transpiração brilhavam-lhe no rosto rosado. Era extraordinária sua capacidade de exsudação. No Centro Comunal era sempre possível dizer quando êle estivera jogando pingue-pongue, pela molhadeira do cabo da raquete. Syme produzira uma tira de papel na qual havia uma longa coluna de palavras, e as estudava com um lapis-tinta na mão.

- Olha só êle trabalhando na hora do almôço - disse Parsons, dando uma cotovelada em Winston. - Puxa, hein? Que é isso aí, velhinho? Vai ver que é algo difícil para mim. Smith, meu velho, já te digo porque te procuro. É aquela conta que te esqueceste de me dar.

_. Que conta é essa? - indagou Winston, procurando dinheiro automàticamente. Cerca de quarta parte do salário de cada um tinha de ser destinada a contribuições voluntárias, que eram tantas que se tornava difícil se lembrar de tôdas.

- Para a Semana do ódio. Sabes... coleta domiciliar. Sou o tesoureiro de nosso quarteirão. Estamos dando uma virada grande. .. vamos dar um bruto show. Te digo que não será minha culpa se a Mansão Vitória não ostentar mais bandeiras que a rua tôda. Me prometeste dois dólares.

Winston achou e entregou duas notas amassadas e imundas, que Parsons anotou num pequeno canhenho, com a letrinha caprichada do analfabeto.

-Por falar nisso, meu velho - continuou - eu soube que o malandrinho do meu garoto te deu uma estilingada ontem. - Passei-lhe uma boa raspança por causa disso. Sim, até disse que lhe tomaria o estilingue se repetisse a proeza.

- Creio que ficou um Pouco chateado de não assistir à execução - disse Winston.

- Ah, bom... quero dizer, é o que deve esperar, não? São dois patifetes, e peraltas, mas tão esforçados! Só pensam nos Espiões, e na guerra, naturalmente. Sabes o que a minha filhinha fez sábado passado, quando a tropa saiu a passeio para as bandas de Berkhamsted? Convenceu duas meninas a acompanhá-la, afastou-se do grupo e passou a tarde tôda acompanhando um desconhecido. Estiveram duas horas no encalço dêle, pelos bosques a fora, e depois, quando chegaram a Amersham, entregaram-no às patrulhas.

- Por que fizeram isso? - indagou Winston, um tanto chocado. Parsons continuou, triunfante:

- Minha pirralha convenceu-se de que devia ser um agente estrangeiro... talvez tivesse saltado de paraquedas, por exemplo. Mas aqui é que está o busilis, velho. Sabes o que a levou a segui-lo? Descobriu que êle usava uns sapatos muito esquisitos - disse que antes nunca tinha visto ninguém com sapatos daqueles. Era portanto provável que fosse estrangeiro. Bem espertinha para um espirro de gente, de sete anos, hein?

- Que aconteceu ao homem? - perguntou Winston.

- Ah, isso não sei, naturalmente. Mas não ficaria nada surpreendido de que... - e Parsons imitou um soldado fazendo mira com o fusil, e com a língua estalou um tiro.

- Bom - fez Syme, distraido, sem nem ao menos levantar os olhos do papel.

- Naturalmente, não podemos nos arriscar - comentou Winston, lealmente.

- Quero dizer, estamos em guerra - disse Parsons. Como se para confirmar essas palavras, um toque de clarim soou da teletela, bem por cima da cabeça do trio. Não se tratava, contudo, da proclamação de uma vitória militar, mas apenas um anúncio do Ministério da Fartura.

- Camaradas! - gritou uma voz juvenil. - Atenção, camaradas! Temos gloriosas notícias! Ganhamos a batalha da produção! Os totais completos da produção de todos os artigos de consumo demonstram que o padrão de vida aumentou de nada menos que vinte por cento sÔbre o ano passado. Em tôda a Oceania houve esta manhã incontroláveis demonstrações espontâneas, com os trabalhadores marchando das fábricas e escritórios, e desfilando pelas ruas, com estandartes exprimindo sua gratidão ao Grande Irmão, pela nova vida feliz que a sua sábia liderança nos deu. Eis alguns dos totais finais. Gêneros alimentícios...

A expressão "nova vida feliz" correu várias vezes. últimamente, caira no gôto do Ministério da Fartura. Parsons, a atenção presa pelo toque marcial, escutava com ar solene e boca aberta, mistura de aborrecimento e enlevo. Não podia acompanhar as cifras, mas tinha a certeza de que deviam causar satisfação. Tirara do bolso um cachimbão imundo, já meio cheio de fumo chamuscado. Com cem gramas de tabaco por semana, raramente era possível encher o cachimbo até em cima. Winston fumava um cigarro Vitória, que mantinha cuidadosamente na horizontal. A nova ração só começava no dia seguinte e lhe restavam apenas quatro cigarros. Conseguira tapar os ouvidos aos barulhos mais distantes e estava escutando a parlapatice da teletela. Aparentemente, houvera até demonstrações de agradecimento ao Grande Irmão por aumentar para vinte gramas a ração semanal de chocolate. No entanto, apenas na véspera, fôra anunciada a redução para vinte gramas. Seria possível que engulissem aquilo, vinte e quatro horas depois? Pois enguliam. Parsons enguliu fàcilmente, com estupidez de animal. A criatura sem olhos, da outra mesa, enguliu fanàticamente, apaixonadamente, com um desêjo furioso de descobrir, denunciar e vaporizar quem quer que ousasse sugerir que na semana anterior fôra trinta gramas. Syme também - de modo mais complexo, com duplipensar de permeio - Syme enguliu. Então era êle o único de posse da lembrança?

Fabulosas estatísticas continuaram saindo da teletela. Em comparação com o ano anterior havia mais comida, mais roupa, mais casas, mais móveis, mais panelas, mais combustível, mais navios, mais helicópteros, mais livros, mais recémnascidos - tudo aumentara, excepto a doença, o crime e a loucura. Ano após ano, minuto após minuto, todo mundo, tudo, tudo o mais ganhava as alturas. Como fizera Syme antes, Winston tomou a colher e com o caldo se pôs a desenhar calungas sôbre a mesa. Meditava, ressentido, na textura física da vida. Teria sido sempre assim? Teria a comida tido sempre o mesmo gôsto? Olhou em tôrno da cantina. Um salão de teto baixo, paredes sujas do contacto de inúmeros corpos; maltratadas cadeiras e mesas de metal, tão juntinhas que os cotovelos se tocavam. Colheres arcadas, bandejas trincadas, rústicas xícaras brancas; gordurentas tôdas as superfícies, sujeira em cada frincha; e um cheiro azedo, composto de gin ordinário, café ruim, guisado metálico e roupa suja. Havia sempre, no estômago e na pele, uma espécie de protesto, a sensação de que se perdera, para um gatuno, algo a que se tinha direito. Era fato que não tinha recordação de nada muito diferente. Em tôdas as épocas que lembrava com precisão, nunca houvera suficiente para comer, nunca tivera meias ou roupa branca que não fossem esburacadas, mobília que não fosse capenga e gasta; e cômodos mal aquecidos, trêns subterrâneos atulhados, casas caindo aos pedaços, pão escuro, chá raro, café nojento, cigarros insuficientes - nada barato e abundante, excepto gin sintético. E conquanto as coisas piorassem com o envelhecimento do corpo, não era isto um sinal de ser diferente a ordem natural das coisas, quando o coração se confrangia ante o desconfôrto, a sujeira e a escassez, os invernos intermináveis, as meias pegajosas, os elevadores que nunca funcionavam, a água fria, o sabão áspero, os cigarros que se desfaziam, a comida de sabor mau e estranho? Por que achar tudo isso intolerável, a menos que se tivesse uma esPécie de lembrança ancestral de coisas outrora diferentes?

Tornou a olhar em volta da cantina. Quase todo mundo era feio, e seria feio ainda que se vestisse direito, em vez de usar o macacão do Partido. Do outro lado do salão, sózinho

numa mesa, um homem mirrado, que parecia um besouro, tomava uma xícara de café, os olhinhos atirando dardos suspicazes para um lado e outro. Como era fácil, pensou Winston, acreditar que o tipo físico considerado ideal pelo Partido - rapazes altos e musculosos, donzelas de grandes seios, louras, viçosas, queimadas de sol, alegres - existisse e mesmo predominasse. Na verdade, até onde podia julgar, a maioria, na Pista N.º 1, era de gente miuda, morena, mal favorecida. Era curioso que aquele tipo de escaravelho proliferasse nos Ministérios: homenzinhos tronchos, ainda moços e já obesos, de perninhas curtas, movimentos rápidos, assustados, faces gordas e inescrutáveis, de olhos minúsculos. Era o tipo que parecia florescer melhor sob o domínio do Partido.

O anúncio do Ministério da Fartura terminou com outra fanfarra e foi seguido de música metálica. Parsons, movido a um vago entusiasmo pelo bombardeio dos números, tirou o cachimbo da bôca.

- O Ministério da Fartura fez excelente trabalho êste ano - disse, abanando a cabeça com ar de quem sabe o que fala. - Por falar nisso, meu velho Smith, não tens uma giletinha que possas ceder?

- Nenhuma - replicou Winston. - Há seis semanas que estou usando a mesma lâmina.

- Ah, bom... achei que não fazia mal perguntar.

- Sinto muito.

O grasnido da mesa próxima, provisòriamente calado pelo aviso do Ministério, recomeçara, mais forte que nunca. Por algum motivo obscuro Winston de repente se surpreendeu pensando na sra. Parsons, com o cabelo ralo e poeira nas rugas. Dentro de dois anos aquelas crianças a denunciariam à Polícia do Pensamento. A sra. Parsons seria vaporizada. Syme seria vaporizado. Winston seria vaporizado. O'Brien seria vaporizado. Por outro lado, Parsons jamais seria vaporizado. A criatura sem olhos, da voz grasnante, jamais seria vaporizada. Os homenzinhos escaravelhais que tão de manso palmilhavam os labirintos dos Ministérios - êsses tampouco seriam vaporizados. E a moça do cabelo escuro, a guria do Departamento de Ficção: jamais seria vaporizada. Parecia-lhe saber por instinto quais sobreviveriam e quais pereceriam, embora não fosse fácil dizer o que dava direito à sobrevivência.

Naquele momento, foi arrancado das suas meditações por um violento golpe. A moça da mesa vizinha voltara-se de lado e estava olhando para êle. Era a rapariga do cabelo escuro. Olhava-o com o rabo dos olhos, mas com intensa curiosidade. No momento em que percebeu que êle também a fitava, desviou a vista.

O suor escorreu pela espinha de Winston. Um horrível arrepio de terror perpassou por êle. Sumiu quase imediatamente, mas deixou um ressaibo de mal-estar. Por que o fitaria daquele modo? Por que vivia a segui-lo? Infelizmente, não podia se lembrar se ela já estava na mesa quando êle chegara, ou se viera depois. A questão era que na véspera, durante os Dois Minutos de ódio, sentara atrás dêle sem haver necessidade visível de o fazer. Com tôda a certeza o seu óbjetivo real fôra escutá-lo e verificar se gritava bem alto contra Goldstein.

O pensamento anterior voltou à mente de Winston: provàvelmente não era da Polícia do Pensamento, devia ser o tipo do espião amador, que é a pior praga de tÔdas. Não sabia quanto tempo ela o estivera olhando, talvez uns cinco minutos, e era possível que não tivesse a fisionomia perfeitamente controlada. Era terrivelmente perigoso deixar os pensamentos vaguearem num lugar público, ou no campo de visão duma teletela. A menor coisa poderia denunciá-lo. Um tique nervoso, um olhar inconsciente de ansiedade, o hábito de falar sózinho - tudo que sugerisse anormalidade, ou algo de oculto. De qualquer forma, uma expressão facial imprópria (ar de incredulidade quando anunciavam uma vitória, por exemplo) era em si uma infração punível. Em Novilíngua havia até uma palavra para caracterizá-la: chamava-se facecrime.

A moça tornara a dar-lhe as costas. Afinal de contas, talvez não o estivesse seguindo. Talvez fosse coincidência sentar-se perto dêle dois dias seguidos. Êle depôs cuidadosamente na beira da mesa o cigarro que se apagara. Haveria de acabar de fumá-lo depois do trabalho, se pudesse evitar que o fumo caísse. Com tôda a probabilidade a pessoa da mesa vizinha era espiã da Polícia do Pensamento, e êle provàvelmente acabaria nos porões do Ministério do Amor, dali a três dias, mas uma ponta de cigarro não podia ser desperdiçada. Syme dobrara o papel em tira e metera-o no bolso. Parsons pusera-se a falar de novo.

- Já te contei, velho - perguntou, rindo e mordendo o cachimbo - uma vez que os meus dois pirralhos puseram fogo na saia duma velha, na feira, porque a viram embrulhar salsichas num cartaz do G.I.? De mansinho entraram atrás dela e puseram fogo no pano com uma caixa de fósforos. Queimaram-na um pedaço, creio. Safadinhos, hein? Vivos como azougue! Hoje em dia dão um treinamento de primeira nos Espiões -, melhor do que no meu tempo. Que é que achas, que forneceram aos garotos, agora? Estetoscópios para escutar pelas fechaduras! A menina trouxe um para casa a outra noite - experimentou na porta de nossa sala de estar, e calculou que podia ouvir o dôbro do que antes, quando colava a orelha na porta. Sim, naturalmente não passa dum brinquedo, mas já vai lhes dando a idéia, não é?

Nesse momento, a teletela soltou um apito contundente. Era o sinal de volta ao trabalho. Os três homens se levantaram num pincho, para correr aos elevadores, e o fumo restante deslisou do cigarro de Winston.

6

Winston escrevia no diário:

Faz três anos. Era uma noite escura, numa ruela sem luz, perto duma grande estação ferroviária. Ela estava parada perto duma porta, sob um lampeão que mal iluminava o lugar. Tinha rosto jovem, com pintura espessa. Foi realmente a pintura que me chamou a atenção, pois era branca como uma máscara, e os lábios muito vermelhos, brilhantes. As mulheres do Partido nunca se pintam. Não havia ninguém mais na rua, nem teletela. Ela disse dois dólares e eu...

Por um minuto foi difícil continuar. Fechou os olhos e apertou com os dedos, tentando afastar a visão que insistia em voltar. Tinha uma tentação quase indomável de berrar um bando de palavras indecentes a pleno pulmão. Ou bater a cabeça na parede, dar um pontapé na mesa ou atirar o tinteiro pela janela - fazer algo violento, doloroso ou ruidoso que pudesse apagar a lembrança-que o atormentava.

Nosso pior inimigo, refletiu, é o sistema nervoso. A qualquer momento a tensão que há dentro da gente pode-se traduzir num sintoma visível. Pensou num homem com quem cruzara na rua, havia algumas semanas: um sujeito de aspecto comum, membro do Partido, de trinta e cinco ou quarenta anos, alto e magro, levando uma pasta. Estavam a apenas alguns metros de distância quando o lado esquerdo do rosto do homem se contorceu súbitamente num espasmo. Tornou a acontecer quando cruzaram: era apenas um tremor, um arrepio, rápido como o clique do obturador duma máquina fotográfica, mas evidentemente habitual. Lembrou-se de ter pensado na ocasião: êsse pobre diabo está danado. O mais aterrorizante era o ato talvez ser inconsciente. O pior de

todos os perigos era falar dormindo. Não havia meio de se proteger contra aquilo.

Êle suspirou e continuou escrevendo: Entrei com ela pela porta e atravessamos um quintal, chegando à cozinha dum porão. Contra a parede havia uma cama, e sôbre a mesa uma lâmpada, muito fraquinha. Ela.. Rílhou os dentes. Gostaria de cuspir. Ao mesmo tempo que na mulher da cozinha do porão pensou em Katharine, sua esposa. Winston era casado - ou fÔra casado; com certeza ainda era casado, pois, tanto quanto sabia, a espôsa não morrera. Pareceu inalar de novo o odor morno da cozinha do porão, um cheiro misto de percevejos, roupa suja e perfume ordinário, e no entanto atraente, porque nenhuma mulher do Partido usava perfume, nem se podia imaginar que fizesse tal coisa. Só os proles usavam perfume. Para êle, aquele cheiro trazia à mente o ato sexual.

A escapada com aquela mulher fôra a primeira, em dois anos ou mais. Andar com prostitutas era proibido, naturalmente, mas era dessas regras que às vezes os militantes tinham coragem de quebrar. Era perigoso, mas não era caso de vida ou morte. Ser apanhado com uma marafona poderia significar cinco anos num acampamento de trabalhos forçados; apenas isso, se não houvesse outra infração. E era fácil, contanto que se evitasse ser surpreendido no ato. Os bairros pobres pululavam de mulheres prontas a se entregarem. Algumas podiam ser compradas até por uma garrafa de gin, que os proles não tinham direito de beber. Tàcitamente, o Partido se inclinava até a incentivar a prostituição, para dar saída a instintos que não podiam ser totalmente suprimidos. Mera luxúria não tinha maior importância, contanto que fosse furtiva e sem alegria, e só envolvesse mulheres de uma classe submersa e desprezada. O crime imperdoável era a promiscuidade entre membros do Partido. Mas - embora êste crime fosse invariàvelmente confessado pelos acusados, nos grandes expurgos - era difícil imaginar que acontecesse.

O objetivo do Partido- não era simplesmente impedir que homens e mulheres criassem lealdades difíceis de controlar. Seu propósito real, não declarado, era roubar todo o prazer ao ato sexual. Não tanto o amor como o erotismo era o inimigo, tanto dentro como fora do casamento. Todos os casamentos entre membros do Partido tinham de ser aprovados por um comité nomeado para êsse fim e - embora o princípio jamais fosse claramente declarado - a permissão era sempre recusada se o casal desse a impressão de haver qualquer atração física. O único fim reconhecido do casamento era procriar filhos para o serviço do Partido. A cópula devia ser considerada uma pequena operação ligeiramente repugnante, como um clister. Isto tampouco era dito em voz alta, mas de modo indireto era ensinado a cada membro do Partido, desde a infância. Havia até organizações como a Liga Juvenil Anti-Sexo, que advogava completo celibato para ambos os sexos. Tôdas as crianças deveriam nascer por inseminação artificial (insemart) e educadas em instituições públicas. Isto, Winston sabia, não era para se levar de todo a sério, mas de certo modo se encaixava na ideologia geral do Partido. O Partido estava procurando matar o instinto sexual, ou, se não fosse possível matá-lo, torcê-lo e torná-lo indecente. Êle não sabia o porque dessa conduta, mas assim era, e lhe parecia natural que assim fosse. E, no que se referia às mulheres, os esforços do Partido haviam logrado considerável êxito.

Êle tornou a pensar em Katharine. Devia fazer nove, dez - quase onze anos que se haviam separado. Era curioso que pensasse nela tão raramente. Às vezes, passava dias e dias sem se lembrar de que fôra casado. Tinham vivido juntos apenas quinze meses. O Partido não permitia o divórcio, mas até incentivava a separação quando não havia filhos.

Katharine era uma moça alta, de cabelos claros, muito erecta, de esplêndidos movimentos. Tinha rosto ousado, aquilino, que se poderia chamar nobre até se descobrir não haver Pràticamente nada por trás dêle. Logo no comêço da vida conjugal descobrira que Katharine possuía, sem exceção, a mente mais estúpida, vulgar e vazia que já conhecera - embora fosse talvez por conhecê-la mais intimamente que à maioria das pessoas. Não tinha na cabeça um pensamento que não fosse uma palavra de ordem, e não havia imbecilidade, absolutamente nenhuma, que ela não engulisse se o Partido a impingisse. Dera-lhe, para uso interno, o apelido de "banda sonora humana". Todavia, aguentaria viver com ela se não fosse uma coisa - sexo.

Assim que a tocava, a esposa parecia se encolher e enrijar. Abraçá-la era o mesmo que cingir uma imagem de madeira articulada. E o estranho era que, mesmo quando ela o apertava contra o seu corpo, êle tinha a impressão de

que o repelia com tôdas as suas fôrças. Era a rigidez dos seus músculos que dava aquela impressão. Deixava-se ficar de olhos fechados, sem resistir nem cooperar, apenas- se submetendo. Embaraçava extraordinàriamente, e tornava-se horrível depois de algum tempo. Entretanto, êle suportaria viver com ela, se pudessem combinar manter o celibato Mas foi a própria Katharine quem recusou êsse arranjo. Dísse que deviam produzir um filho, se possível. De modo que o exercício continuou a ter lugar, uma vez por semana, regularmente, sempre que não fosse impossível. Ela chegava a lembrá-lo pela manhã, como uma tarefa que deve ser feita à noite e que não pode ser esquecida. Referia-se ao ato com duas expressões. Uma era "fazer um filho," e a outra era "nosso dever ante o Partido" (sim, palavras textuais). Muito breve êle adquiriu verdadeiro horror da aproximação do dia convencionado. Por sorte, não houve filho, e por fim ela concordou em suspender as experiências. Pouco depois, separaram-se.

Winston suspirou alto. Tornou a apanhar a caneta e escreveu:

Ela atirou-se na cama, e imediatamente, sem qualquer preliminar, da maneira mais grosseira e horrível que se pode imaginar, levantei-lhe a saia. Eu.. .Tornou a ver-se, à luz débil do abajur, as narinas cheias do odor de percevejo e perfume barato, e no coração uma sensação de derrota e ressentimento que, mesmo naquele momento, vinha de cambulhada com a recordação do corpo branco de Katharine, congelado para sempre pelo poder hipnótico do Partido. Por que teria de ser sempre assim? Por que não poderia ter uma mulher própria, em vez de recorrer a essas aventuras sórdidas, com intervalos de vários anos? Um amor genuíno, porém, era quase impossível de imaginar. Tôdas as mulheres do Partido eram iguais. Nelas a castidade era tão profunda quanto a lealdade ao Partido. Por meio de cuidadoso condicionamento, em tenra idade, por meio de jogos e água fria, pelo lixo que lhes impingiam na escola, nos Espiões e na Liga Juvenil, por meio de conferências, paradas, canções, lemas e música marcial, tinham expulso o sentimento natural. A razão dizia-lhe que devia haver exceções, mas no fundo do coração não acreditava nisso. Eram tôdas inexpugnáveis, como desejava o Partido. E o que êle queria, mais do que ser amado, era deitar abaixo aquela muralha de virtude, mesmo que fosse apenas uma vez na vida inteira. Executado com êxito, o ato sexual era rebelião. O desêjo era crimidéia. Despertar o instinto de Katharine, se o tivesse conseguido, seria como que seduzi-la, embora fosse sua esposa.

Mas era preciso escrever o resto da história. E êle escreveu:

Levantei o abajur. Quando a vi sob a luz... Depois da treva, a luzinha fraca do candieiro de querosene lhe parecera muito clara. Pela primeira vez, pôde ver a mulher direito. Dera um passo para ela e    se detivera, cheio de luxúria e terror. Tinha dolorosa consciência do risco que corria entrando ali. Era perfeitamente possivel que as patrulhas o apanhassem na saída: podiam até estar esperando na porta, naquele momento. E se êle fosse embora sem realizar o que fôra fazer!

Era preciso escrevê-lo, era preciso confessá-lo. O que vira de repente, sob a luz da lâmpada, era que se tratava duma velha. A pintura do rosto era tão grossa que dava a impressão de que ia rachar como uma máscara de cartão. Havia fios brancos no cabelo; mas o detalhe verdadeiramente revoltante era a bôca, que se entreabria, revelando nada mais que uma caverna negra. A mulher não tinha dente algum.

Êle escreveu com pressa, aos garranchos: Quando a vi sob a luz, percebi que se tratava duma velha, de uns cinqüenta anos pelo menos. Mas fui em frente e fiz o que fôra fazer.

Tornou a apertar as pálpebras com os dedos. Escrevera tudo, por fim, mas não fazia diferença. A terapia não dera resultado. Continuava, mais forte que nunca, o desêjo de berrar obscenidades a plenos pulmões.

7

Se há esperança, escreveu Winston, está nos proles. Se esperança houvesse, devia estar nos proles, porque só neles, naquela massa desdenhada, formigante, 85% da população da Oceania, podia se gerar fôrça suficiente para destruir o Partido. O Partido não poderia ser derribado de dentro. Seus inimigos, se é que tinha inimigos, não tinham modo de se reunir, nem mesmo de se identificar. Mesmo que existisse a legendária Fraternidade, como era possível que existisse, era inconcebível que os seus membros pudessem jamais se reunir em grupos maiores que dois ou três. A rebelião revelava-se num olhar, numa inflexão da voz; no máximo, num cochicho ocasional. Mas os proles, se de algum modo adquirissem consciência do seu poderio, não precisariam conspirar. Bastava-lhes levantarem-se e sacudirse, como um cavalo sacode as moscas. Se o quisessem, poderiam demolir o Partido no dia seguinte. Mais cedo ou mais tarde, isso lhes haveria de ocorrer. No entanto... !

Lembrou-se de uma vez em que ia passando por uma rua cheia de gente quando um tremendo grito de centenas de vozes - vozes de mulher - se fizera ouvir num beco lateral, pouco adiante. Era um formidável brado de ira e desespêro, um "Oh-o-o-o-oh!" forte e grave, que continuou como a reverberação de um sino. Seu coração dera um pinote. Começou! pensara. Um conflito! Por fim os proles se libertam! Quando chegou ao local, viu um bando de duzentas ou trezentas mulheres, cercando as barracas de uma feira, faces trágicas como se fossem passageiros condenados num navio a soçobrar. Naquele momento exato, porém, o desespêro geral se subdividiu numa multidão de briguinhas. Ao que parece uma das barracas tinha caçarolas estanhadas à venda. Eram de folha fina, horrorosas, mas era dificílimo arranjar panelas. O estoque não durara muito, portanto. As mulheres que tinham conseguido comprar tentavam se afastar com as caçarolas em punho, pisadas e acotoveladas pelo resto, enquanto dúzias de outras clamavam, em tôrno da barraca, acusando o feirante de favoritismo e de ter mais caçarolas escondidas. Houve nova série de uivos. Duas mulheres gordalhufas, uma delas com o cabelo caindo sôbre os olhos, tinham agarrado a mesma caçarola e estavam tentando se apossar dela. Por um momento, houve empate. Depois o cabo se desprendeu. Winston observou-as enojado. E no entanto, por um momento, que poderio aterrorizante se fizera ouvir naquele grito de algumas centenas de gargantas! Por que não poderiam gritar dessa forma quando acontecesse algo de fato importante?

Escreveu: Não se revoltarão enquanto não se tornarem conscientes, e não se tornarão conscientes enquanto não se rebelarem.

Refletiu que a frase poderia ser quase a transposição de um dos textos básicos do Partido. O Partido proclamava, naturalmente, ter libertado os proles da servidão. Antes da Revolução eram oprimidos pelos capitalistas, tinham sido chicoteados e submetidos à fome, as mulheres forçadas a trabalhar nas minas de carvão (na verdade, as mulheres ainda trabalhavam nas minas), as crianças vendidas às fábricas com a idade de seis anos. Simultâneamente, fiel aos princípios do duplipensar, o Partido ensinara que os proles eram naturalmente inferiores, que deviam ficar em sujeição, como animais, pela aplicação de algumas regras simples. Pouquíssimo se sabia a respeito dos proles. Não era necessário saber muito. Contanto que continuassem a trabalhar e se reproduzir, não tinham importância suas outras atividades. Abandonados a si mesmos, como gado solto nas planuras argentinas, haviam regressado a um modo de vida que lhes parecia natural, uma espécie de tradição ancestral. Nasciam, cresciam nas sargetas, iam para o trabalho aos doze, atravessavam um breve período de floração da beleza e do desêjo sexual, casavam-se aos vinte, atingiam a maturidade aos trinta, e em geral morriam aos sessenta. O trabalho físico pesado, o trato da casa e dos filhos, as briguinhas com a vizinhança, o cinema, o futebol, a cerveja e, acima de tudo, o jôgo, enchiam-lhes os horizontes.  Mantê-los sob contrôle não era difícil. Alguns agentes da Polícia do Pensamento

estavam sempre entre êles, soltando boatos, marcando e eliminando os poucos individuos julgados capazes de se tornar perigosos; mas não se tentava doutriná-los com a ideologia do partido. Não era desejável que os proles tivessem sentimentos políticos definidos. Tudo que se lhes exigia era uma espécie de patriotismo primitivo ao qual se podia apelar sempre que fosse necessário levá-los a aceitar rações menores ou maior expediente de trabalho. E mesmo quando ficavam descontentes, como às vezes acontecia, o descontentamento não os conduzia a parte alguma porque, não tendo idéias gerais, só podiam focalizar a animosidade em ridículas reivindicações específicas. Os males maiores geralmente lhes fugiam à observação. A grande maioria dos proles nem tinha teletelas em casa. Até a polícia civil interferia pouquíssimo com êles. Havia enorme criminalidade em Londres! todo um mundo subterrâneo de ladrões, bandidos, prostitutas, vendedores de narcóticos e contraventores de todo tipo; mas como tudo se passava entre os próprios proles, não tinha importância. Em tôdas as questões morais, permitia-se-lhes obedecerem ao código ancestral. O puritanismo sexual do Partido não lhes era imposto. A promiscuidade não era punida, e o divórcio era permitido. Nesse particular, até a adoração religiosa teria sido permitida se os proles demonstrassem algum sintoma de desejá-la ou dela carecerem. Ninguém desconfiava dêles. Como dizia o lema do Partido: "Os proles e os animais são livres."

Winston esticou o braço e coçou cautelosamente a variz ulcerada. Começara a comichar de novo. O que sobrevinha invariàvelmente era a impossibilidade de saber como de fato fôra a vida antes da Revolução. Tirou da gaveta um livro escolar de história, que tomara emprestado à sra. Parsons, e pôs-se a copiar um trecho no diário:

Antigamente (dizia), antes da gloriosa Revolução, Londres não era a bela cidade que hoje conhecemos. Era um lugar escuro, sujo, miserável, onde pouca gente tinha bastante que comer e onde centenas e milhares de pobres não tinham calçado nem abrigo onde dormir. Crianças de mais ou menos a tua idade tinham de trabalhar doze horas por dia, para patrões cruéis, que as castigavam com chicotes quando trabalhavam muito devagar e não lhes davam senão côdeas de pão velho e água. Mas no meio dessa terrível pobreza havia umas poucas casas belíssimas habitadas pelos ricos, que tinham até trinta criados para cuidar dêles. Êsses homens ricos chamavam-se capitalistas. Eram gordos, feios, de caras perversas, como a que vês na página ao lado. Repara que veste um grande casaco negro, chamado fraque, e um chapéu estranho, brilhante, como uma chaminé truncada, e que se chamava cartola. Era êsse o uniforme dos capitalistas e ninguém mais podia usá-lo.  Os capitalistas eram donos de tudo no mundo, e tôdas as outras pessoas eram escravas dêles. Eram donos de tôda a terra, tôdas as casas, tôdas as fábricas, todo o dinheiro. Se alguém lhes desobedecesse, podiam jogá-lo na prisão, ou podiam tomar-lhe o emprego e matá-lo lentamente, pela fome. Quando um cidadão comum falava com um capitalista, tinha de se encolher e se inclinar, tirar o boné e chamá-lo de "Senhor." O chefe de todos os capitalistas denominava-se Rei, e...

Mas êle conhecia o resto do catálogo. Vinhàm as referências aos bispos com suas vestes opulentas, os juizes e os mantos de arminho, o pelourinho, o cepo, a roda de castigo, o gato de nove caudas, o Banquete do Lord Maior e a prática de beijar o artelho do Papa. Haveria também o chamado jus primae noctis, que provàvelmente não seria citado num livro para crianças. Era o direito de todo capitalista de dormir com qualquer operária de suas fábricas.

Como era possível dizer onde acabava a verdade e começava a mentira? Podia ser verdade que o ser humano comum agora vivesse melhor do que antes da Revolução. A única prova em contrário era o protesto mudo nos ossos, o sentimento instintivo de que as condições em que vivia eram intoleráveis e que deviam ter sido diferentes. De repente achou que as únicas coisas verdadeiramente típicas da vida moderna não eram nem a crueldade nem a insegurança, mas apenas a nudez, a miséria, o desânimo. Olhando-se em tôrno, verificava-se que a vida não apenas diferia das mentíras que Provinham das teletelas, como também dos ideais que o Partido buscava atingir. Muitas atividades cotidianas, mesmo para um membro do Partido, eram neutras e não políticas, questão de cumprir tarefas tediosas, lutar por um lugar no trem subterrâneo, remendar uma meia gasta, esmolar uma pastilha de sacarina, guardar uma ponta de cigarro. O ideal criado pelo Partido era enorme, terrível, luzidio - um mundo de aço e concreto, de monstruosas máquinas e armas aterrorizantes - uma nação de guerreiros e fanáticos, marchando

avante em perfeita unidade, todos tendo os mesmos pensamentos e gritando as mesmas divisas - trezentos milhões comm a mesma cara - trabalhando perpètuamente, lutando, triunfando, perseguindo. A realidade eram cidades caindo em ruinas, escuras, onde o populacho subnutrido perambulava com sapatos furados, vivendo em remendadas casas do século dezenove que sempre cheiravam a repolho e latrinas de mau funcionamento. Parecia ter uma visão de Londres, vasta e arruinada, uma cidade de um milhão de latas de lixo, e misturada com ela a figura da sra. Parsons, mulher de cara enrugada e cabelo ralo, lidando sem esperança com um cano de esgôto.

Tornou a esticar o braço e a coçar o tornozelo. Dia e noite as teletelas feriam os ouvidos com estatísticas provando que hoje o povo tinha mais alimento, mais roupa, melhores casas, melhor divertimento - que vivia mais, trabalhava menos, era mais alto, mais saudável, mais forte, mais feliz, mais inteligente, mais bem educado, do que o povo de cinquenta anos atrás. Nenhuma palavra podia ser provada ou negada. O Partido proclamava, por exemplo, que hoje 40% dos proles eram alfabetizados; e dizia que antes da Revolução o total não chegava a 15%. O Partido afirmava que a mortalidade infantil era agora de apenas 160 por mil, enquanto que antes fôra trezentos por mil - e assim por diante. Era uma equação única com duas incógnitas. Podia muito bem dar-se que cada palavra, literalmente, dos livros de história, mesmo quando aceite sem dúvida, fosse pura fantasia. Tanto quanto sabia, podia muito bem ser que nunca tivesse havido o jus primae noctis, nem capitalistas, nem cartola.

Tudo se fundia na névoa. O passado era raspado, esquecida a raspagem, e a mentira tornava-se verdade. Apenas uma vez na vida possuira - depois do acontecimento: era o que importava - prova concreta, inegável de uma falsificação. Tivera-a entre os dedos durante uns trinta segundos. Devia ter sido em 1973 - isto é, mais ou menos na ocasião em que se havia separado de Katharine. O acontecimento, porém, tivera lugar sete ou oito anos antes.

Com efeito, a história começara por volta de 1965, o período dos grandes expurgos em que os chefes originais da Revolução tinham sido liquidados duma vez por tôdas. Aí por 1970 não sobrava ninguém, excepto o Grande Irmão. A essa altura todos os restantes haviam sido acusados de traição e atividades contra-revolucionárias. Goldstein fugira e escondera-se em lugar não sabido, e dos outros alguns tinham desaparecido, enquanto que a maioria fôra justiçada, após espetaculares julgamentos públicos em que confessara amplamente seus crimes. Entre os últimos sobreviventes, contavam-se três homens chamados Jones, Aaronson e Rutherford. O trio devia ter sido preso em 1965. Como acontecia com frequência, tinham sumido durante um ano ou mais, de modo que ninguém sabia se estavam vivos ou mortos; de repente tinham aparecido para se incriminar da maneira habitual. Confessaram entendimentos com o inimigo (que naquela data era a Eurásia), desfalque de dinheiros públicos, assassínios de vários dignos membros do Partido, intrigas contra a liderança do Grande Irmão que se tinham iniciado muito antes da Revolução, e atos de sabotagem causadores da morte de centenas de milhares de inocentes. Depois de confessar, tinham sido perdoados, reestabelecidos no Partido e nomeados para cargos que pareciam importantes mas que não passavam de sinecuras. Os três haviam escrito longos e abjetos artigos no Times, analisando as razões da sua defecção e prometendo emendar-se.

Algum tempo depois, Winston vira os três no Café Castanheira. Lembrava-se do fascínio com que os examinara, com o rabo dos olhos. Eram bem mais velhos que êle, relíquias de um mundo antigo, quase que as últimas grandes figuras remanescentes do passado heróico do Partido. O encanto da luta clandestina e da guerra civil ainda pairava ligeiramente sôbre êles. Winston teve a impressão, embora já os fatos e datas se fossem confundindo, que lhes soubera os nomes muito antes de conhecer o do Grande Irmão. Mas eram também fora-da-lei, inimigos, intocáveis, condenados à extinção com absoluta certeza, dali a um ano ou dois. Ninguém que tivesse caido uma vez em mãos da Polícia do Pensamento conseguia escapar. Eram cadáveres esperando que os devolvessem ao sepulcro.

Não havia ninguém nas mesas próximas. Não era prudente ser visto nas proximidades dos três. Estavam sentados, mudos, diante de copos de gin com cravo que era a especialidade do café. Dos três, o que mais impressionara Winston pela aparência fôra Rutherford. Havia sido um famoso caricaturista, e seus desenhos brutais tinham concorrido para inflamar a opinião pública antes e durante a RevOluÇão. Mesmo agora, a longos intervalos, suas caricaturas apareciam no Times. Eram simplesmente uma imitação do

antigo estilo, e curiosamente inertes, sem convicção. Eram sempre um recozido de antigos temas - cortiços, crianças esfomeadas, batalhas de rua, capitalistas de cartola (até nas barricadas os capitalistas pareciam conservar as cartolas) - um esfôrço infindo, frouxo, de voltar ao passado. Era um homem monstruoso, com uma juba de cabelo grisalho e gorduroso, rosto inchado e cortado de cicatrizes, grossos lábios negróides. Devia ter sido imensamente forte; agora o corpanzil era apenas balofo, mole, caído, banhas sobrando em tôdas as direções. Parecia ruir diante dos olhos dos circunstantes, como alui uma montanha.

Eram quinze horas, hora solitáría. Winston já não conseguia lembrar-se do que fôra fazer no café àquela hora. Estava quase deserto. Das teletelas se desprendia uma música de latas. Os três estavam sentados no seu canto, sem falar, quase imóveis. Sem que lhe pedissem, o garçon trazia novos copos de gin. Na mesa, ao lado dêles havia um tabuleiro de xadrez, com as peças arrumadas, mas o jôgo não começara. E então, durante talvez meio minuto, algo sucedeu às teletelas. A música que tocavam mudou,' como também mudou o tom. Ouviu-se... era algo muito difícil de descrever. Uma nota peculiar, partida, um zurro, uma chacota, que Winston, para seu uso pessoal, considerou amarela. E da tela uma voz cantou:

Sob a frondosa castanheira Eu te vendi e tu me vendeste: Lá estão êles, e aqui estamos nós, Sob a frondosa castanheira.

Os homens nem se mexeram. Mas quando Winston tornou a fitar o rosto arruinado de Rutherford, notou que tinha os olhos rasos dágua. E pela primeira vez observou, com uma espécie de arrepio por dentro, sem que no entanto soubesse o que lhe dava arrepios, que tanto Aaronson como Rutherford tinham nariz quebrado.

Pouco depois os três tinham sido presos de novo. Ao que parece, haviam-se metido em novas conspirações no mesmo momento em que tinham ganho a liberdade. No segundo julgamento, confessaram de novo todos os velhos crimes acrescentando uma porção de outros. Foram executados e sua sina registrada nas  histórias do Partido, como advertência à posteridade. Cerca de cinco anos depois, em 1973, Winston desenrolava um maço de documentos que acabava de cair do tubo pneumático quando deu com um fragmento de papel que evidentemente fôra colocado entre os outros e esquecido. No instante em que o desenrolou percebeu-lhe o valor. Era meia página arrancada do Times de uns dez anos antes - a parte superior, e incluia a data - e continha uma foto dos delegados numa função do Partido em Nova York. No meio-do grupo destacavam-se Jones, Aaronson e Rutherford. Impossível confundi-los; ademais, seus nomes constavam da legenda.

Isso não obstante, os homens tinham confessado, em ambos os julgamentos, que naquela data tinham estado em sólo eurasiano. Tinham voado de um aeroporto secreto no Canadá a um ponto da Sibéria, onde conferenciaram com membros do Estado Maior Eurasiano, a quem haviam traido importantes segredos militares. A data gravara-se na mente de Winston porque era o dia do equinócio do verão; mas a históría tôda deveria estar registada numa porção de outros lugares.  Só havia uma conclusão possível: as confissões eram falsas.

Naturalmente, isto em si não era nenhum descobrimento. Nem Winston imaginara que as pessoas suprimidas nos expurgos houvessem de fato cometido os crimes de que eram acusadas. Mas ali estava prova concreta; era um fragmento do passado abolido, como um ôsso de fóssil que surge numa camada errada e destrói uma teoria geológica. Seria suficiente para fazer o Partido se esbarrendar, se fosse possível Publicá-la e tornar conhecida do mundo a sua significação.

Êle continuara trabalhando. Assim que vira a fotografia, e o que queria dizer, cobrira-a com uma folha de paPel. Por sorte, ao desenrolá-la, estava de cabeça para baixo, em relação à teletela.

Colocou no joelho o bloco de rascunho e empurrou a cadeira para trás, de modo a se afastar o mais possível da teletela. Manter o rosto sem expressão não era difícil, e com esfôrço se podia até controlar a respiração: mas não era Possível controlar o bater do coração, e a teletela era bastante sensível para captá-lo. Êle se quedou por dez minutos, atormentado pelo terror de que algum acidente - um pé de vento que de repente lhe limpasse a mesa - o traisse. Então, sem tornar a descobri-la, jogou a fotografia no buraco da memória, com outros papéis servidos. Dali a um minuto, talvez, não passaria de cinzas.

Isso fôra dez, onze anos atrás.     Hoje, talvez, tivesse guardado o recorte. Era curioso que o fato de tê-lo entre os dedos lhe parecesse fazer tanta diferença, agora que a fotografia própriamente dita, e o acontecimento que registrava, não passavam de recordações. Seria menos forte o domínio do Partido sôbre o passado, indagou êle, porque existira um dia uma prova que deixara de existir?

Mas hoje, supondo, que fosse possível recuperá-la das cinzas, a fotografia talvez não fizesse prova alguma. Na ocasião em que descobrira o caso a Oceania não estava mais em guerra com a Eurásia, e devia ter sido aos agentes da Lestásia que os três haviam traido a pátria. Depois disso tinha havido outras reviravoltas - duas, três, não lembrava quantas.  Com tôda a certeza as confissões tinham sido escritas e reescritas, a ponto dos fatos e datas originais não terem a mínima importância. O passado não podia apenas ser modificado, podia ser mudado continuamente. O que mais o afligia, com uma sensação de pesadêlo, era nunca compreender com clareza por que se iniciara a tremenda ímpostura. Eram óbvias as vantagens imediatas da falsificação do passado, mas os motivos finais eram misteriosos. Êle tornou a pegar a caneta e escreveu:

Compreendo COMO: não compreendo PORQUE. Indagou de seus botões, como fizera muitas vezes, se não era lunático êle próprio. Talvez um lunático seja apenas uma minoria de um. Antigamente, fôra sinal de loucura acreditar que a terra gira em tôrno do sol; hoje, crer que o passado é inalterável. Podia ser o único a ter aquela crença, e sendo sózinho, lunático. A idéia de ser lunático, porém, não o perturbava grandemente. O horror era estar enganado.

Tomou o livro escolar e olhou o retrato do Grande Irmão que formava o frontispício. O olhar hipnótico fixou o de Winston. Era uma fôrça enorme, fazendo pressão - algo que penetrava o crânio, se chocava contra o cérebro, amedrontava e fazia perder a fé, persuadia quase a negar a evidência dos sentidos. No fim, o Partido anunciaria que dois e dois são cinco, e todos teriam que acreditar. Era inevitável que o proclamasse mais cedo ou mais tarde: exigia-o a lógica de sua posição. Sua filosofia negava tàcitamente não apenas a validez da experiência como a própria existência da realidade externa. O bom senso era a heresia das heresias. E o que mais aterrorizava não era que matassem o cidadão por pensar diferente, mas a possibilidade de terem razão. Por que, afinal de contas, como sabemos que dois e dois são quatro? Ou que existe a lei da gravidade? Ou que o passado é inalterável? Se tanto o passado como o mundo externo só existem na mente, e se a mente em si é controlável... então? Mas não! De repente a coragem de Winston pareceu fortalecer-se. O rosto de O'Brien, sem ser recordado por nenhuma evidente associação de idéias, surgira-lhe no espírito. E soube, com mais certeza do que antes, que O'Brien estava do seu lado. Estava escrevendo o diário para O'Brien - a O'Brien; era uma espécie de carta interminável, que ninguém leria, mas que era dirigida a uma certa pessoa e por isso adquiria vibração.

O Partido ordenava que o indivíduo rejeitasse a prova visual e auditiva. Era a sua ordem final, essencial. O coração de Winston fraquejou quando pensou no enorme poderio que tinha pela frente, a facilidade com que qualquer intelectual do Partido o deitaria por terra num debate, os sutis argumentos que não conseguiria compreender, e muito menos responder. E no entanto, sentia ter razão! Êles estavam errados! O óbvio, o tolo, e o verdadeiro tinham que ser defendidos. Os truismos são verdadeiros, êsse é que é o fato! O mundo sólido existe, suas leis não mudam. As pedras são duras, a água é líquida, os objetos largados no ar caem sôbre a crosta da terra. Com a impressão de falar com O'Brien e também de estar fixando um importante axioma, êle escreveu:

A liberdade é a liberdade de dizer que dois e dois são quatro. Admitindo-se isto, tudo o mais decorre.

8

Do fundo de uma viela vinha um cheiro de café torrado, - café de verdade, e não café Vitória - que invadia a rua. Winston parou involuntàriamente. Durante talvez dois segundos perdeu-se no mundo semi-olvidado da infância. Daí uma porta bateu, parecendo cortar o aroma como se fosse  um ruido.

Caminhára vários quilômetros no leito da rua e a variz ulcerada estava pulsando. Era a segunda vez em três semanas que falhava a um sarau no Centro Comunal: gesto audacioso, pois podia ter a certeza de que era cuidadosamente verificado o número de presenças no Centro. Em princípio, um membro do Partido não tinha horas vagas, e não ficava nunca só, excepto na cama. Supunha-se que quando não estivesse trabalhando, comendo ou dormindo, devia participar de alguma recreação comunal; era sempre ligeiramente perigoso fazer qualquer coisa que sugerisse o gôsto pela solidão, mesmo que fosse apenas passear sózinho. Em Novilíngua havia uma palavra para isso: proprivida, e significava individualismo e excentricidade. Mas aquela noite, ao sair do Ministério, tentara-o a calidez do ar de abril. O azul do céu era o mais morno que havia visto aquele ano, e de súbito, pareceu-lhe intolerável a longa e ruidosa noitada no Centro, com os jogos aborrecidos e cansativos, as conferências, a camaradagem forçada, lubrificada pelo gin. Num impulso, afastara-se da parada do ônibus e vagueara pelo labirinto de Londres, primeiro para o sul, depois para o leste, depois para o norte, perdendo-se em ruas desconhecidas e pouco ligando à direção tomada. "Se há esperança," escreveu no diário, "está nos proles." As palavras tornavam-lhe à mente, expressão de uma verdade mística e de um palpável absurdo. Encontrava-se nas favelas de côr parda, que ficavam ao norte e a leste do que fôra um dia a estação de São Pancrácio. Subia uma rua calçada a lages, de casinhas de dois andares, com portas escalavradas que abriam sôbre a via pública, e que de certo modo sugeríam buracos de ratos. Entre as pedras da rua havia, aqui e ali, poças de água imunda. Entrando e saindo das casas escuras, e embarafustando, pelos becos estreitos que desembocavam dos dois lados da rua, o povo formigava numa quantidade incrível - moças em plena floração, os lábios grosseiramente pintados; rapazes que perseguiam as moças; mulheres inchadas e desgraciosas que eram imagem do que seriam as moças dali a dez anos, velhos arcados, arrastando os pés; crianças descalças e esfarrapadas que brincavam nas poças dágua e se dispersavam aos gritos furiosos das mães. Talvez a quarta parte das janelas da rua estavam quebradas e remendadas com papelão. A maioria não prestava atenção em Winston; alguns o fitavam com uma espécie de disfarçada curiosidade. Duas mulheres monstruosas, com braços côr de tijolo cruzados sôbre o avental, conversavam diante duma porta. Winston percebeu trechos de frase:

- Sim, eu disse prela. Tá muito bom, eu disse. Mas se tu tivesse no meu lugar tu fazia que nem eu fiz. É faci criticá, eu falei, mas não tens os mermo problema que eu.

- Ah - fez a outra - é isso mermo. Escritinho. As vozes estridentes calaram-se de súbito. As mulheres estudaram-no em silêncio hostil, quando êle passou. Mas não era exatamente hostilidade; era mais uma espécie de cautela, um enrijamento momentâneo, como à passagem de um animal raro. O macacão azul não podia ser comum numa rua como aquela. Na verdade, era imprudente ser visto em tais lugares, a não ser que se tivesse uma tarefa específica. As patrulhas poderiam detê-lo se o vissem. "Posso examinar teus papéis, camarada? Que estás fazendo aqui? A que hora saiste do   trabalho? É o teu caminho habitual para casa?" e assim por diante. Não que houvesse algum regulamento contra o regresso ao lar por um caminho diferente, mas bastava para chamar a atenção da Polícia do Pensamento.

De repente, a rua tôda se agitou. De todos os lados soaram gritos de advertência. Os populares se escondiam em casa como coelhos. Uma moça saltou de uma porta, pouco adiante de Winston, agarrou uma criancinha que brincava numa poça, embrulhou-a no avental e tornou à casa, num pulo. No mesmo instante um homem de terno preto, amassado como uma sanfona, e que surgira de um bêco lateral, correu para Winston, apontando o céu, muito nervoso:

- Vapor! - gritou. - Cuidado, patrão! Estoura já! Deita logo!

Não se sabia porque os proles tinham dado o apelido     de vapor" às bombas-foguete. Winston prontamente se jogou de bruços. Os proles raro se enganavam quando faziam essa advertência. Pareciam possuir uma espécie de instinto que lhes dízia, com vários segundos de antecedência, que um foguete estava chegando, embora voassem mais rápido que o som. Winston protegeu a cabeça com os antebraços. Houve um ribombo que pareceu fazer o chão ofegar. Uma chuva de detritos caiu-lhe nas costas. Quando se levantou viu que estava coberto de fragmentos de vidro da janela próxima.

Continuou andando. A bomba demolira um grupo de casas duzentos metros além, na mesma rua. Elevava-se para o céu uma nuvem negra de fumaça, e debaixo dela outra de pó de caliça, na qual já se formava a multidão, cercando os escombros. Diante dêle, no lagedo, havia um montículo de rebôco e estuque, e no meio uma faixa vermelho vivo. Quando chegou perto viu que era uma mão humana decepada pelo pulso. Fóra o corte sanguinolento, a mão esbranquiçara de tal modo que parecia um modêlo de gesso. Com um pontapé atirou a mão à sarjeta e depois, para evitar o povaréu, dobrou uma ruela à direita. Dali a três ou quatro minutos deixara a área afetada pela bomba, e o sórdido formigamento da vida das ruas continuava como se nada tivesse sucedido. Eram quase vinte horas, e as lojas de bebidas frequentadas pelos proles ("bares", eram chamados) estavam cheias de fregueses. Pelas emporcalhadas portas de vai-vem, que se abriam e fechavam sem cessar, vinha um cheiro de urina, serragem e cerveja azeda. Num ângulo formado pela fachada saliente de uma casa, três homens estavam parados, muito juntos, estudando um jornal seguro pelo do meio, e que os dois outros liam por cima do ombro dêle. Mesmo antes de chegar perto o suficiente para lhes distinguir as feições, Winston pôde ver como estavam absortos. Devia ser algo muito sério o que lhes prendia a atenção. Estava a alguns passos de distância quando de        ' repente o grupo se afastou e dois homens se puseram a altercar violentamente. Por um minuto, até pareceu que fossem às vias de fato.

- Não escutas o que t'digo? Pois se tou dizeno que nenhum número acabado em sete já ganhou há mais de um ano e dois meis!

- Ganhô sim!

- Ganhô nada! Lá na terra tomei nota de tudo, doizano, num pedaço de papé. Escrevi que nem relógio: direitinho. E 'tdigo que nenhum número acabado em sete...

- Ganhô sim! Espera aí que já me lembro do danado do número. Quatro, zero, sete, era a terminação. Foi em fevereiro... segunda semana de fevereiro.

- Fevereiro a vovózinha! Eu tomei nota preto no branco. E t'digo que nenhum número...

Ora, cala a bôca! - disse o terceiro homem. Estavam falando da Loteria. A uns trinta metros de distância, Winston olhou para trás. Ainda discutiam, rosto apaixonado, febril. A Loteria, com seus enormes premios semanais, era o acontecimento público a que os proles davam a maior atenção. Era provável que houvesse milhões de proles para quem a Loteria era o principal senão o único motivo de continuar a viver. Era o seu deleite, sua loucura, seu anódino, seu estimulante intelectual. Quando se tratava da Loteria, até gente que mal sabia ler e escrever fazia intrincados cálculos e fantásticas proezas de memória. Havia um exército de homens que ganhava a vida graças à simples venda de sistemas, previsões e amuletos. Winston nada tinha que ver com a exploração da Loteria, que era administrada pelo Ministério da Fartura, mas sabia (como sabiam todos do Partido) que em grande parte os premios eram imaginários. Na realidade, só eram pagas pequenas quantias, sendo pessoas inexistentes os ganhadores da sorte grande. Na ausência de qualquer intercomunicação real entre uma parte e outra da Oceania, não era difícil arranjar isso.

Mas se esperança havia, estava nos proles. Era preciso agarrar-se a isso com unhas e dentes. Quando se traduzia o pensamento em palavras, parecia razoável: mas quando se consideravam os seres humanos que passavam pela calçada a idéia se'transformava em ato de fé. A rua que tomara descia um declive. Teve a sensação de já ter andado pela vizinhança, e de haver por perto uma avenida principal. Dalguma parte chegou-lhe aos ouvidos uma gritaria geral. A rua fez uma curva brusca e acabou nuns degraus que con-

duziam a um beco em nivel inferior, onde alguns barraqueiros vendiam legumes murchos. Naquele momento, Winston recordou-se donde estava. O beco dava para a rua principal, e depois da próxima esquina, a menos de cinco minutos dali, ficava o bricabraque onde comprara o livro branco que era agora seu diário. E a pequena papelaria, onde comprara a caneta e o tinteiro.

Deteve-se um instante no alto da escada. Do outro lado do beco havia um barzinho miserável cujas janelas pareciam embaciadas mas na verdade estavam apenas cobertas de pó. Um ancião arcado mas ativo, com bigode branco eriçado como um camarão, empurrou a porta e entrou. Contemplando-o, Winston de repente imaginou que o velho, que devia ter no mínimo oitenta anos, já devia ser maduro ao tempo da Revolução. Êle e uns poucos outros eram os últimos elos vivos com o desaparecido mundo capitalista. No Partido não havia muita gente que tivesse idéia formada antes da Revolução. A geração mais antiga tinha sido, na sua maioria, liquidada nos grandes expurgos das décadas de 1950 a 70, e as sobras, aterrorizadas, se haviam refugiado na mais completa submissão intelectual. Se ainda restasse vivo alguem capaz de fazer uma descrição verídica das condições na primeira metade do século, só podia ser um prole. De repente, veio à mente de Winston o trecho do livro de história que copiara no seu diário, e um impulso lunático o dominou. Entraria no bar, travaria conhecimento com o velho e o interrogaria. Haveria de pedir-lhe: "Fale-me de sua vida quando o sr. era menino. Como era, naqueles dias? As coisas eram melhores que hoje, ou eram piores?"

Apressadamente, como se tivesse recêio de perder a coragem, desceu os degraus e atravessou a rua estreita.  Era loucura, evidentemente. Como de praxe, não havia regulamento contra a conversa com os proles nem a frequencia de seus bares, mas era ato muito fóra do comum para passar despercebido. Se as patrulhas aparecessem êle poderia desculpar-se dizendo que se sentira mal, porém era pouco provável que lhe dessem crédito. Empurrou a porta, e um horrendo cheiro de queijo e cerveja azeda, atingiu-o em cheio. Quando entrou o barulho das vozes diminuiu talvez a metade do volume. Por trás das costas podia sentir todo mundo a examinar-lhe o macacão. Um jôgo de flechinhas ao alvo, no outro extremo da sala, interrompeu-se por uns trinta segundos. O velho que êle seguira estava no balcão, altercando com o botequineiro, um rapaz corpulento, de nariz de gancho e braços enormes. Vários fregueses do bar, com os copos na mão, observavam a cena.

- Te pedi com educação, não foi? - insistiu o velho endireitando os ombros belicosamente. - Qué me dizê que não têm uma caneca de pinta nesta birosca?

- E que demônio de troço é uma pinta? - quis saber o botequineiro, inclinando-se para a frente e apoiando-se no balcão com as pontas dos dedos.

- Oia só êle! Botequineiro que nem sabe o que é pinta! Ué, uma pinta é a metade duma quarta, e tem quatro quartas no galão. Daqui a pouco tenho que te ensiná o abc!

-   Nunca escuitei falá nisso - disse o rapaz. - Litro e meio-litro... é só o que servimos. Aí estão as canecas na sua frente.

- Gosto de pinta - persistiu o velho. - Você bem que me podia servi uma pinta. Não tinha essas besteiras de litro quando eu era moço.

- Quando tu era moço nós todos morava trepado nas arve - disse o botequineiro, olhando de soslaio para os outros fregueses.

Houve uma gargalhada geral, e pareceu desaparecer o mal-estar causado pela entrada de Winston. Sob a barba branca que despontava, o velho corou violentamente. Voltou-se, falando sózinho, e tropeçou em Winston, que o segurou delicadamente pelo braço.

- Permites que te ofereça um gole?

- O sr. é um cavalheiro - disse o outro, tornando a endireitar os ombros. Não parecia ter notado o macacão azul de Winston. - Uma pinta! - acrescentou, agressivo, dirigindo-se ao botequineiro. - Uma pinta da boa!

O taverneiro serviu dois meios-litros de cerveja marron escura em canecas que enxaguara num balde debaixo do balcão. Nos bares dos proles só se podia tomar cerveja. Não lhes era permitido tomar gin, conquanto, na prática, fosse facílimo arranjá-lo. O jôgo das flechinhas se reanimara, e os homens encostados ao balcão, haviam reiniciado a conversa sôbre a Loteria. Por um momento, fôra esquecida a presença de Winston. Debaixo da janela havia uma mesa junto à qual podia conversar à vontade com o velho. Era um perigo horrível, mas pelo menos não havia teletela no salão, o que verificara logo ao entrar.

- Êle bem que podia me serví uma pinta, - queixou-se o velho, sentando. - Meio litro não chega. Não satisfais. E um litro é muito. Me faz a bixiga trabalhá. E o preço!?

- Deves ter visto muita coisa mudar, desde mocinho

- começou Winston, experimentando.

Os olhos azul pálido do homem percorreram o bar do alvo das flechas ao balcão, do balcão à porta dos "Homens" como se as mudanças tivessem ocorrido ali mesmo.

- A cerveja era mió - disse por fim. - E mais barata! Quando eu era moço, cerveja clara - da boa - custava quatro dinheiros a pinta. Isso antes da guerra, naturalmente.

- Que guerra? - indagou Winston.

- De tôdas as guerras - respondeu o velho, vagamente. Levantou o copo e tornou a endireitar os ombros. - Com os meus mió voto de saúde e filicidade.

No pescoço magro o pomo de Adão, muito pontudo, fez um rapidíssimo movimento de subir e descer, e a cerveja sumiu. Winston foi ao balcão e voltou com dois outros meios-litros. O velho parecia ter esquecido seus preconceitos.

- És muito mais velho que eu - disse Winston. -

Devias ser adulto antes de eu nascer. Deves lembrar como era a vida antigamente, antes da Revolução. Gente da minha idade não sabe nada daquela época. Só podemos ler nos livros, e o que dizem os livros pode não ser verdade. Gostaria de conhecer tua opinião a respeito. Os livros de história dizem que antes da Revolução a vida era completamente diferente do que é hoje. Reinava a mais terrível opressão, injustiça, pobreza - pior do que tudo que imaginamos. Aqui em Londres a maioria do povo nunca tinha bastante o que comer, do berço ao túmulo. Metade da população não tinha sapato. TrabalhaVa doze horas por dia, saía da escola aos nove anos, dormiam dez em cada quarto. Ao mesmo tempo havia um grupinho, de alguns milhares - os chamados capitalistas - ricos e poderosos. Eram donos de tudo quanto existia. Moravam em casarões lindos com trinta empregados, passeavam de automóvel e carruagem de quatro cavalos, bebiam champanha, usavam cartolas...

O rosto do velho se iluminou.

- Cartolas! - disse êle. - Engraçado que fale nisso. A mema coisa me veiu na  cabeça onte, não sei pruquê.

tava pensano, fais tanto tempo que não vejo uma cartola! Acabaro, parece. A última veis que usei uma foi no entêrro de minha cunhada. E isso foi...     Ah, bom, não sei mais a data, mas foi uns cinquenta anos atrais. Naturalmente aluguei ela prô entêrro, compreende, né?

- As cartolas não têm importância - disse Winston, com paciência. - A coisa é que êsses capitalistas, mais alguns advogados e padres, e outros que tais, que viviam no meio dêles, eram os donos da terra. Tudo existia para o gôzo dêles. O povinho comum, os trabalhadores, eram escravos dêles. Podiam fazer o que bem entendessem. Podiam mandar-vos como gado para o Canadá. Podiam dormir com vossas filhas, se quisessem. Podiam mandar bater-vos com uma coisa chamada gato de nove caudas. Tinhas que tirar o boné quando passavas por êles. Cada capitalista andava com um bando de lacaios que...

O rosto do velho tornou a iluminar-se.

- Lacaios! - disse êle. - Palavra que não escuito já fais tempão. Lacaios. Me fais vortá muito zano pra trais. Me lembro... chi, nem me alembro quanto tempo! ... que eu às veis ia pro Aide Parque escuitá os cara fazeno discurso. Exército da Sarvação, Católico, judeu, indiano... todo mundo. E havia um sojeito - não sei do nome dêle, mas era um faladô batuta, isso era. E metia o pau. "Lacaios!" gritava. "Lacaios da burguesia! Cupichas da classe dominante!" Parasita era outra palavra bonita. E hienas, êle falava muito em hiena. O sior compreende, né, êle tava falando contro Partido Trabalhista.

Winston teve a impressão de que as linhas se haviam cruzado.

- O que na verdade desejo saber é isto: achas que hoje há mais liberdade do que naquele tempo? És tratado mais como ser humano? No passado os ricaços, os que mandavam...

- A Câmara dos Lordes - completou o velho, reminiscente. - Vá lá, a Câmara dos Lordes. O que te pergunto é isto, essa gente te tratava como inferior, só porque era rica e tu eras pobre? Não é verdade que tinhas de chamar os ricos de "senhor" e tirar o boné quando passavas por êles?

O velho pareceu meditar profundamente. Bebeu talvez a quarta parte da caneca de chope antes de responder.

- Sim. Êles gostavo que a gente cumprimentasse êles co boné. Era siná de respeito, né? Eu não concordava, mais fazia. Tinha de fazê.

E era comum - apenas repito o que li, nos livros de história - que essa gente e sua criadagem empurrassem os outros para a sargeta?

- Uma vez um cara me empurrou - disse o velho. -

Me lembro como se fosse onte. Era a noite da Regata -

ficavam levado da breca em noite de Regata - e eu bumba num rapaz na avenida Shaftesbury. Todo impelicado, o zinho - camisa de peito duro, cartola, sobretudo preto. Ia indo em zigue-zague pela calçada e eu esbarrei nele sem querer. Êle disse "Por que não olha para onde vai?" disse. E eu disse "Cê pensa que comprou o raio da calçada?" Êle disse "Eu te torço êsse pescoço duma figa se você se mete a sebo ... .. Cê tá bebo, já te mando prendê," eu disse. E o sr. não acredita, mas êle botô as mãos no meu peito e me deu um empurrão que quaji me atira debaixo das roda dum ônibu. Daí eu, uai, eu era moço, e ia lhe largá uma daquelas...

Uma espécie de desespêro dominou Winston. A memória do velho não passava de um monturo de pormenores atoa. Poderia interrogá-lo o dia inteiro sem obter nenhum dado genuino. De certo modo, as histórias do Partido talvez fossem verdadeiras: podiam até ser completamente verídicas. Fez a última tentativa.

- Talvez não me expliquei bem, - disse. - O que quero dizer é o seguinte. Vives há muito tempo. Viveste metade da vida antes da Revolução. Em 1925, por exemplo já eras adulto. Pelo que recordas, podes dizer que a vida em 1925 era melhor que agora, ou pior? Qual escolherias, quando preferias viver, naquela época ou agora?

O homem fitou longamente o alvo das flechinhas. Terminou o chope, mais devagar que antes. Quando falou foi com um ar tolerante, filosófico, como se a cerveja o tivesse abrandado.

- Sei o que o sr. espera que eu diga. Espera que diga que preferia ser moço'tra veis. A maioria das pessoa diz que queria ser moça, se o sr. perguntá. A gente tem saúde e fôrça quando é mais novo. Quando se chega a esta idade não se tem mais saúde. Meus pé dói muito e minha bixiga então nem se fala. Seis a sete veis por noite tenho de levantá, Mais tem sua vantage, sê velho. Não tenho tanta dor de cabeça. Nada de muié, e é formidave. Há uns trinta ano que não ando com muié, se o sr. credita. Nem quis, posso jurá.

Winston encostou-se ao peitoril da janela. Não adiantava continuar. Ia comprar mais cerveja quando o velho de repente se levantou e se encaminhou rápido para o mictório fedorento, ao lado da sala. O segundo meio-litro estava funcionando. Winston ficou um minuto ou dois olhando a caneca vazia, e mal notou quando os pés o levaram de novo para a rua. Dali a vinte anos, no máximo, refletiu êle, a pergunta simples e momentosa "Antes da Revolução a vida era melhor que agora?" deixaria de ser respondível para todo o sempre. De fato, porém, já era irrespondível, pois alguns dispersos sobreviventes do mundo antigo eram incapazes de comparar uma época com outra. Lembravam-se de um milhão de coisas inúteis, duma briga com um colega, a busca de uma bomba de bicicleta, a expressão no rosto de uma irmã falecida, o rodopio da poeira numa manhã de vento, setenta anos atrás: mas todos os fatos relevantes já estavam fora do alcance da sua visão. Eram como a formiga, que pode ver pequenos objetos, mas não enxerga os grandes. E quando a memória falhava, e os registos escritos eram falsificados - era forçoso aceitar a assertiva do Partido de que tinham melhorado as condições da vida humana, porque não existia, nem jamais poderia existir, qualquer padrão de comparação.

Naquele momento o fio dos seus pensamentos se deteve de repente. Êle parou e levantou o olhar. Estava numa rua estreita, com algumas lojinhas escuras perdidas entre residencias. Bem por cima de sua cabeça pendiam três fanadas esferas de metal, que tinham jeito de haver sido douradas. Pareceu-lhe conhecer o lugar. Pois, claro! Estava diante da quinquilharia onde comprara o diário!

Um arrepio de medo o agitou. Já fôra bastante ousado comprar o livro, e jurara nunca mais se aproximar da casa. Entretanto, no momento em que deixava o pensamento vaguear, os pés o levavam para lá, por iniciativa própria. Era exatamente contra impulsos suicidas dessa natureza que esperara se defender, iniciando o diário. Observou ao mesmo tempo que embora fossem quase vinte e uma horas, a loja continuava aberta. Com a sensação de que daria menos na vista entrando do que ficando na calçada, entrou. Se perguntassem, responderia, plausivelmente, que procurava lâminas de barba.

O proprietário acabava de pendurar do teto um mal cheiroso candieiro de azeite. Era um homem de seus sessenta

anos , frágil e arcado, de nariz comprido, benévolo, olhos calmos deformados pelos óculos grossos, Tinha cabelo quase branco, mas as sobrancelhas eram bastas e pretas. Os óculos, e seus movimentos exageradamente gentis, e o fato de usar paletó de veludo negro, davam-lhe um ar indefinível de intelectualidade, como se fosse literato, ou músico talvez. A voz era suave, parecia desbotada e sua prosódia era menos dissonante do que a da maioria dos proles.

- Reconheci o sr. na calçada, - disse, imediatamente.

- Foi o senhor que me comprou aquele álbum de recordações. Papel lindo, um mimo para uma moça. Linho creme, chamava-se. Há uns... digamos cinquenta anos... que não se fabrica papel assim. - Contemplou Winston por cima das lentes. - Procura alguma coisa em partícular? Ou só quer uma olhada? Ia passando - respondeu Winston, aéreo. - Vim dar uma olhada. Não quero nada. Perfeitamente - concordou o homem. - Não creio que pudesse satisfazê-lo. - Fez um gesto de desculpas com a mão. - O sr. está vendo. Não tenho nada. Loja vazia. Cá entre nós, está morto o ramo de antiquário. Ninguém mais o quer. Nem há estoque. Móveis, porcelanas, cristais - tudo foi acabando. E naturalmente o que era de metal foi fundido.  Há muitos anos que não vejo um castiçal de latão.

Ao invés, a lojinha estava atulhada de mercadorias, mas coisa alguma  valia nada. Mal se podia andar, porque o chão estava tomado por pilhas de molduras empoeiradas. Na janela havia bandejas com porcas e parafuso, formões sem corte, canivetes de folha partida, relógios enegrecidos que nem fingiam poder funcionar, e uma variedade enorme de bricabraque. Apenas numa mesinha ao canto havia uma miscelânea - caixas de rapé, laqueadas, broches de ágate, coisas assim - que parecia incluir algo interessante. Quando Winston dela se aproximou, seú olhar foi atraído porum objeto liso, redondo, que brilhava suavemente, à luz do lampeão. Tomou-o na mão e examinou-o.

Era um pesado bloco de vidro, hçmisférico, e tanto a textura como o colorido do cristal ostentavam estranha suavidade, como a da água da chuva. Bem no centro, ampliado pela superfície convexa, havia um objeto côr de rosa, em voluta, que lembrava uma rosa ou uma anêmona dó mar.

- Que é isto? - perguntou Wihston, fascinado.

- É coral - informou o velho. - Deve ter vindo do oceano índico. Costumavam embuti-lo assim, em vidro. Isso foi feito no mínimo há cem anos. Quem sabe até mais.

- É lindo - suspirou Winston.

- é mesmo - concordou o velho, com ar de apreciador.

- Mas pouca gente o diria hoje. - Tossiu. - Se por acaso o sr. quiser comprar, são quatro dólares. Lembro-me duma época em que uma coisa dessas renderia oito libras esterlinas, e oito libras eram, .. bom, não sei mais calcular... mas era um bocado de dinheiro. Hoje porém, quem liga às antiguidades genuinas, as poucas que restam?

Winston pagou imediatamente os quatro dólares e meteu no bolso o cobiçado objeto. Atraía-o não tanto a sua beleza como o fato de pertencer a uma época muito diferente da atual. O vidro macio, límpido como água da chuva, não se parecia com vidro algum, dos que conhecia. A coisa era-lhe duplamente atraente por ser inútil, embora adivinhasse que fôra usada outrora como pêso de papéis; pesava muito no bolso, mas por sorte não fazia muito volume. Era um objeto estranho, comprometedor mesmo, para um membro do Partido possuir. Tudo quanto fosse antigo, e tudo quanto fosse belo, era sempre vagamente suspeito. O velho tornara-se bem mais loquaz depois de receber os quatro dólares. Winston percebeu que teria aceito três, ou mesmo dois.

- Lá em cima tenho um quarto, que o sr. talvez queira conhecer - disse. - Não há grande coisa, algumas peças apenas. Deixe-me acender o lampeão.

Acendeu outra lâmpada e, sempre arcado, tomou a dianteira, subindo os degraus altos e gastos. Ganharam um corredor minúsculo e entraram num cômodo que não dava para a rua, abrindo sôbre um pátio lageado e uma floresta de coifas de chaminé. Winston reparou que o quarto estava mobiliado como se alguém ainda o habitasse. Havia um pedaço de tapete no soalho, um ou dois quadros na parede, e uma poltrona funda, mal conservada, junto à lareira. Um carrilhão antigo, com mostrador de doze horas, tiquetaqueava na escarpa. Sob a janela, ocupando quase a quarta parte do cômodo, uma cama enorme, de casal, ainda com o colchão.

- Usei o quarto até minha mulher morrer - disse o velho, em tom de meia desculpa. - Estou -vendendo a mobília aos pouquinhos. Essa cama de mogno é linda, ou seria, se fosse possível livrá-la dos percevejos. Creio porém que o sr. julga um pouco sem jeito.

Levantou o lampeão, para iluminar todo o quarto, e sob luz morna e amarelada, o lugar parecia curiosamente convidativo. Pela cabeça de Winston perpassou a idéia de que seria facílimo alugar o quarto por alguns dólares semanais, se tivesse coragem de se arriscar. Era uma idéia louca, impossível, a ser abandonada imediatamente. Mas o quarto despertara nele uma espécie de nostalgia, de saudade ancestral. Parecia-lhe saber exatamente que impressão dava sentar-se num quarto assim, numa poltrona ao pé do fogo, com os pés na guarda e a chaleira no gancho: completamente só, em completa segurança, sem ninguém a fitá-lo, sem voz a persegui-lo, sem ruido algum além do tiquetaque do relógio e o chilrear da chaleira.

- Não há teletela! - murmurou, embevecido.

- Nunca tive dinheiro para comprar uma - disse o velho. - E não sinto falta. Ali tenho uma bonita mesa de abrir, naquele canto. Só que se o sr. quiser usá-la tem de trocar as dobradiças.

No outro canto havia uma pequena estante de livros e Winston já se encaminhara para ela. Só continha porcaria. A busca e destruição de livros fôra realizada no bairro dos proles com o mesmo método que nos outros. Era pouco provável que ainda existisse na Oceania algum livro impresso antes de 1960. O velho, ainda empunhando a lâmpada, estava parado na frente de um quadro emoldurado em paurosa, prêso à parede diante da lareira.

- Se o sr. estiver interessado em gravuras antigas...

- começou, delicadamente.

Winston atravessou o quarto para examinar o quadro. Era uma gravura em aço de um edifício oval, de janelas retangulares, e uma pequena tôrre na frente. Havia uma grade de ferro em tôrno do prédio, e atrás algo semelhante a uma estátua. Winston fitou-o alguns momentos. Parecialhe vagamente familiar, embora não se lembrasse da estátua.

- A moldura está fixa na parede - explicou o velho.

- Se quiser, posso desaparafusá-la.

- Conheço êsse prédio - anunciou Winston por fim.

- Está em ruinas, agora. Fica no meio da rua do Palácio da Justiça.

- É isso, perto do Fôro. Foi bombardeado em... há muitos anos. Era uma igreja, antigamente. Chamava-se S. Clemente dos Dinamarqueses. - Sorriu, com ar de desculpa, como quem dissesse algo ligeiramente ridículo e acrescentou: - Laranjas e limões, dizem os sinos de S. Clemente!

- Como é?

- Ah... Laranjas e limões, dizem os sinos de S. Clemente. Uma modinha que havia quando eu era menino. Não me lembro como é que continuava, mas sei que acabava assim: Aí vem uma luz para te levar para a cama, Aí vem um machado para te cortar a cabeça. Era uma espécie de dança. Faziam um corredor de mãos dadas e braços erguidos e a gente passava por baixo. Quando chegava em "para te cortar a cabeça," desciam os braços e prendiam a pessoa. Era tudo com o nome das igrejas. Tôdas as igrejas de Londres - isto é, as principais.

Winston indagou vagamente de si mesmo a que século pertenceria a igreja. Era sempre difícil determinar a idade de um prédio londrino. Tudo quanto fosse grande e imponente, e de aparência relativamente nova, era automàticamente declarado post-revolucionário, enquanto que tudo mais, evidentemente antigo, era atribuido a um período obscuro denominado Idade Média. Afirmava-se que séculos e séculos de capitalismo não haviam produzido nada de valor. Da arquitetura não se podia aprender mais história do que dos livros. Ruas, pedras comemorativas, estátuas, nomes de ruas - tudo quanto pudesse lançar luz sôbre o passado fôra sistemàticamente alterado.

- Nunca soube que foi uma igreja.

- Ainda há uma porção delas em pé - disse o velho

- embora as utilizem para outros fins. Como era mesmo a cantiga? Ah, já sei: "Laranjas e limões, dizem os sinos de S. Clemente, Me deves três vintens, dizem os sinos de S. Martinho" É o que lembro. O vintém era uma moedinha de cobre, meio parecida com um centavo.

- E S. Martinho, onde ficava?

- S. Martinho? Ainda está no lugar. Fica na praça da Vitória, ao lado da pinacoteca. Um edifício com fachada triangular, colunata, egrande escadaria.

Winston conhecia  bem o prédio. Era um museu destinado a diversas exposições de propaganda - miniaturas de bombas-foguetes e Fortalezas Flutuantes, modelos de cera representando atrocidades do inimigo e assim por diante.

- Chamava-se S. Martinho dos Campos - acrescentou o velho - mas não me lembro de nenhum campo naquelas paragens.

Winston não comprou a gravura. Teria sido uma propriedade ainda mais incongruente do que o pêso de papéis, e impossível de levar para casa, a não ser que a tirasse da moldura. Mas se deixou ficar alguns minutos com o velho, cujo nome, descobriu, não era Weeks - como se poderia concluir do letreiro na fachada - mas Charrington. Ao que parecia, o sr. Charrington era um viuvo de sessenta e três anos e residia na loja havia trinta. Todo êsse tempo tencionara mudar o nome da placa, mas nunca tomara a decisão final. Durante a palestra, a cantiga meio esquecida ecoou na cabeça de Winston. Laranjas e limões, dizem os sinos de S. Clemente. Me deves três víntens, dizem os sinos de S. Martinho! Era curioso, mas repetindo a letra tinha a ilusão exata de ouvir sinos, os sinos de uma Londres perdida que ainda existia nalguma parte, disfarçada e ,esquecida. De suas tôrres fantasmais êle parecia ouvi-los bimbalhando. Entretanto, até onde podia recordar, nunca na vida ouvira um sino.

Despediu-se do sr. Charrington e desceu a escada sózinho, para que o velho não o visse examinando a rua antes de sair. Já resolvera que, depois de um intervalo apropriado - um mês, por exemplo, - correria de novo o risco de visitar a loja. Talvez não fosse mais perigoso do que falhar a um sarau no Centro. A grande tolíce fôra voltar ali, depois de comprar o diário, sem saber se o dono da loja merecia confiança. Contudo... ! Sim, pensou, haveria de voltar. Compraria novas amostras de linda bobagem. Compraria a gravura de S. Clemente dos Dinamarqueses, desemoldurando-a e levando-a para casa escondida dentro do macacão. Arrancaria da memória do sr. Charrington o resto da cançoneta. Até o projeto'lunático de alugar o quarto de cima tornou a cintilar no seu juizo. Durante uns cinco segundos talvez a exaltação o tornou descuidado e êle pisou a calçada sem dar uma única espiadela preliminar. Ia até trauteando, com melodia improvisada Laranjas e limões, dizem os sinos de S. Clemente, Me deves três vinténs, dizem os... De repente o coração pareceu-lhe gelar no peito, e as tripas derreterem. Uma pessoa de macacão azul vinha na direção oposta, a menos de dez metros. Era a morena do Departamento de Ficção. A luz crepuscular era pouca, mas suficiente para reconhecê-la. Ela olhou-o bem no rosto- e continuou como se não o tivesse visto.

Durante uns segundos, Winston sentiu-se tão paralisado que não pôde se mexer. Depois virou para a direita e saiu com passos tardos, sem notar que tomara a direção errada. De qualquer maneira, uma questão se esclarecera. Não podia mais haver dúvida de que a moça o estava espionando. Devia tê-lo seguido até lá, porque não era crível que por puro acaso fosse passear a mesma noite pela mesma ruinha obscura, a quilômetros de distância de qualquer bairro habitado por membros do Partido. Era demasiada coincidência. Pouco importava que pertencesse à Polícia do Pensamento, ou que fosse mera espiã amadora, impelida pelo desejo de fazer média. Provàvelmente, vira-o também entrar no bar.

Andar era um esfôrço. A cada passo, o pêso de cristal no bolso lhe batia na coxa, e êIe teve ganas de jogá-lo fora.

O pior de tudo era a dor de barriga. Durante uns dois minutos, teve a impressão de que morreria se não fosse logo à privada. Mas não devia haver gabinetes públicos num bairro daqueles. Felizmente, o espasmo passou, deixando em seu lugar uma dor surda.

A rua era um beco sem saída. Winston parou, ficou uns segundos pensando no que fazer, depois deu meia-volta e regressou. Ao se voltar, ocorreu-lhe que como a moça cruzara por êle uns três minutos antes, haveria de alcançá-la, provàvelmente. Poderia segui-la até um lugar ermo, e então esmagalhar-lhe o crânio com um paralelepípedo. O pêso de papel seria suficiente para isso. Mas êle abandonou imediatamente o plano, porque era insuportável a simples idéia do esfôrço físico. Não podia correr, não podia desferir uma Pancada. Além disso, ela era jovem e vigorosa e certamente se defenderia. Pensou também em correr ao Centro Comunal e ficar lá até fechar, de modo a estabelecer um álibi parcial para a noite. Mas também isso era impossível. Uma tremenda lassitude o dominava. O que queria era ir logo para casa, sentar-se e descansar.

Passava das vinte e duas quando chegou ao apartamento. As luzes seriam desligadas na chave geral às vinte e três e trinta. Foi à cozinha e enguliu uma xícara quase cheia de Gin Vitória. Foi então à mesa, no nicho da sala, sentou-se

e tirou o diário da gaveta. Mas não o abriu imediatamente. Na teletela uma mulher com voz de lata berrava uma canção patriótica. Êle ficou contemplando o papel mármore da capa do caderno, tentando sem êxito banir dos sentidos aquela voz.

Era à noite que vinham buscar a gente, sempre à noite.

O melhor era matar-se antes de ser apanhado. Sem dúvida havia gente capaz disso. Com efeito, muitos dos desaparecidos eram suicidas. Mas era preciso coragem desesperada para se matar num mundo em que era impossível obter armas de fogo, ou veneno rápido e certo. Pensou, com uma espécie de assombro, na inutilidade biológica da dor e do medo, na traição do corpo humano que sempre se congela na inércia, no momento exato em que dêle se exige esfôrço especial. Poderia ter silenciado a moça morena se conseguisse agir com rapidez, mas precisamente por causa do perigo extremo que corria perdera a capacidade de agir. Ocorreu-lhe que, em momentos de crise, nunca se luta com um inimigo externo, mas com o próprio organismo. Mesmo agora, apesar do gin, a dor surda do ventre tornava impossível dois pensamentos consecutivos. E é o mesmo em tôdas as situações aparentemente heróicas ou trágicas. No campo de batalha, na câmara de tortura, num navio que naufraga, as causas por que lutamos são sempre secundárias, esquecidas, porque o corpo incha,e se infla até ocupar todo o universo, e mesmo quando não nos paralisa o mêdo, nem gritamos de dor, a vida é uma luta, minuto a minuto, contra a fome, o frio, a insônia, contra uma dor de estômago ou de dentes.

Abriu o diário. Era importante escrever alguma coisa. A mulher da teletela atacara nova canção. Sua voz parecia ferir-lhe os miolos como estilhaços irregulares de vidro. Êle procurou pensar em O'Brien, para quem, ou a quem, estava escrevendo o diário, mas ao invés se pôs a pensar no que lhe aconteceria quando a Polícia do Pensamento o levasse. Não fazia diferença, se o matassem logo. Ser morto era o que esperava. Mas antes da morte (ninguém falava de tais coisas, mas todo mundo sabia) havia a rotina da confissão: rastejar no chão e implorar misericórdia, o estalo de ossos partidos, os dedos quebrados e o cabelo com coágulos de sangue. Por que passar por tudo isso, se o fim era sempre o mesmo? Por que não encurtar de alguns dias ou algumas semanas a vida do sujeito? Ninguém jamais escapava ao descobrimento, nem ninguém deixava de confessar. Quando se sucumbia à crimidéia era certo que em determinada data se estava morto. Por que então aquele terror fatal do futuro, que nada alterava?

Êle tornou a tentar, com um pouco mais de êxito, conjurar a imagem de O'Brien. "Tornaremos a nos encontrar onde não há treva," dissera O'Brien. Êle sabia o que significavam aquelas palavras, ou acreditava saber.       O lugar onde não havia trevas era o futuro imaginário, que nunca se podia ver mas que, pelo pensamento, se podia partilhar misticamente. Mas com a voz da tela a lhe azucrinar os ouvidos, não era possível continuar o fio dos pensamentos. Pôs um cigarro na bôca. Metade do fumo caiu-lhe na língua, uma poeira amarga difícil de cuspir. O rosto do Grande Irmão surgiu-lhe na mente, deslocando o de O'Brien. Tal como fizera uns dias antes, tirou um níquel do bolso e examinou-o.

O rosto fitava-o de frente, pesado, calmo, protetor, mas que espécie de sorriso se ocultava sob o bigode negro? Como um dôbre a finados, voltaram-lhe à mente as palavras:

GUERRA É PAZ LIBERDADE É ESCRAVIDÃO IGNORÂNCIA É FORÇA

 

IA PELA METADE O EXPEDIENTE MATUTINO E WINSTON SAIRA do cubículo para ir à toilette.

Uma figura solitária caminhava ao seu encontro, do outro extrêmo do corredor enorme, bem iluminado. Era a moça do cabelo escuro. Quatro dias se havíam passado desde o encontro diante da casa de quinquilharia. Quando se aproximou, viu que ela trazia o braço direito na tipóia, que se não distinguia a distância por ser da mesma côr que o macacão. Certamente machucara a mão fazendo girar um dos grandes caleidoscópios nos quais eram "criados" os enredos das novelas. Era um desastre comum no Departamento de Ficção.

Estavam a talvez quatro metros de distância quando a moça tropeçou e caiu de bruços. Soltou um grito de dor agudo. Devia ter caido sôbre o braço ferido. Winston deteve-se. A moça levantara-se sôbre os joelhos. Seu rosto estava de côr amarelo-creme, que fazia destacar a bôca, mais vermelha que nunca. Fixava-o dentro dos olhos, com uma expressão implorante que parecia mais de medo que de dor.

Uma emoção estranha agitou o coração de Winston. Diante dêle estava um inimigo que queria matá-lo; mas diante dêle, também, havia uma criatura humana, sofrendo, talvez com um osso quebrado. Já se adiantara instintivamente para ajudá-la. No momento em que a vira cair sôbre o braço vendado, sentira como que uma dor no próprio corpo.

- Te machucaste? indagou.

- Não é nada. Meu braço. Daqui a um instantinho está bom.

Ela falou como tivesse o coração agitado. Empalidecera fortemente.

- Não quebraste nada?

- Não, estou bem. Doeu um pouco, mas já passou. Deu-lhe a mão livre, e êle ajudou-a a levantar-se. Ela já recuperara um pouco do seu colorido e parecia estar melhor.

- Não é nada - repetiu. - Apenas deu um baque no pulso. Obrigada, camarada!

E com isso continuou na direção em que ia antes, com o mesmo passo decidido, como se de fato fosse nada. O incidente todo mal durara meio minuto. Nem isso, talvez. Não permitir que os sentimentos se revelem na fisionomia era um hábito que adquirira proporções de instinto, e além disso tudo sucedera diante duma teletela. Não obstante, fôra muito difícil não trair uma surpresa momentânea, porque nos dois ou três segundos que estivera a ajudá-la a moça passara à mão dêle um objeto qualquer. Não havia dúvida de que o fizera intencionalmente. Era algo pequeno e chato. Quando entrou no mictório, êle transferiu o objeto ao bolso e apalpou-o com as pontas dos dedos. Era um pedaço de papel, dobrado várias vezes.

Parado diante do vaso êle conseguiu, manobrando os dedos, desdobrar o papel. Evidentemente, continha um recado. Por um momento, sentiu-se tentado a trancar-se na privada e lê-lo ali mesmo. Mas seria uma estúpida loucura, como sabia muito bem. Não havia lugar que as teletelas vigiassem com maior atenção e continuidade.

Voltou ao cubículo, sentou-se, atirou o fragmento de papel, com tôda a naturalidade, entre outros papéis sôbre a escrivaninha, colocou os óculos e puxou o falascreve na sua direção. "Cinco minutos", disse êle consigo mesmo, "cinco minutos no mínimo!" Dentro do peito o coração lhe martelava com um barulho de dar medo. Felizmente, estava ocupado com um trabalho de rotina, mera retificação de uma lista de cifras, o que não exigia grande atenção.

Fosse o que fosse, devia ter sentido político a mensagem do papel. Tanto quanto podia imaginar, só havia duas possibilidades. Uma, e a mais provável, era de que a moça fosse agente da Polícia do Pensamento, como temia. Não sabia por que a Polícia do Pensamento haveria de mandar recados daquela maneira, mas devia ter seus motivos. O que estava escrito no papel podia ser uma ameaça, uma in-

timação, uma ordem de suicídio, uma armadilha qualquer. Mas havia outra possibilidade, mais louca, que insistia em levantar a cabeça, embora debalde tentasse suprimi-la. Era de a mensagem vir não da Polícia do Pensamento, mas de alguma organização clandestina. Talvez a Fraternidade existisse, afinal de contas! Talvez a moça fizesse parte dela! Sem dúvida, a idéia era absurda, mas lhe brotara na mente no mesmo instante em que sentira o papel na mão. Só dali a uns dois minutos foi que a outra explicação mais provável lhe ocorrera. E mesmo agora, conquanto o intelecto lhe dissesse que o recado com certeza significava morte - não era o que êle acreditava, e a esperança irracional persistia, o coração tumultuava, e foi com dificuldade que impediu a voz de tremer ao murmurar os números dentro do falascreve.

Enrolou todos os papéis da tarefa terminada e meteu o maço no tubo pneumático. Oito minutos haviam passado. Reajustou os óculos no nariz, suspirou e puxou outro maço de papéis, com o recado em cima. Alisou-o com os dedos. No papel estava escrito, em caligrafia graúda e irregular:

Eu te amo.

Durante vários segundos êle ficou tão boquiaberto que nem se lembrou de atirar no buraco da memória o papel incriminador. Quando afinal o jogou fora, não pôde resistir a uma segunda leitura, para se certificar de que eram aquelas as palavras, embora soubesse muito bem do perigo que corria em demonstrar demasiado interêsse.

O resto da manhã, foi-lhe muito difícil trabalhar. Pior que concentrar a mente numa série de servicinhos insignificantes era a necessidade de ocultar sua agitação perante a teletela. Teve a impressão de que uma fogueira lhe ardia na barriga. Foi um tormento o almôço na cantina quente, cheia, ruidosa. Tivera a esperança de ficar a sós uns minutos, na hora do almôço, mas por azar o imbecil do Parsons viera sentar-se ao lado dêle, o fedor de suor quase sobrepujando o cheiro ativo do guisado, e metralhou-o com uma série de comentários sôbre a Semana do ódio. Estava interessadíssimo num modêlo, em papier mâché, da cabeça do Grande Irmão, de dois metros de largura, que a tropa de Espiões da filha estava confeccionando para a festa. O mais irritante era que, em meio à barulhada de vozes, Winston mal ouvia o que dizia Parsons, e se via obrigado a pedir-lhe, constantemente, que repetisse palavras fátuas. Apenas uma vez entreviu a pequena, do outro lado da sala, sentada com outras duas. Ela pareceu não tê-lo visto, e êle não olhou mais naquela direção.

A tarde foi mais suportável. Logo depois do almôço chegou-lhe às mãos um serviço delicado, difícil, que tomou várias horas de pesquisa e exigiu o abandono de tudo o mais.

Consistia da falsificação de uma série de relatórios de produção, de dois anos antes, de maneira a desacreditar um eminente membro do Partido Interno que estava agora meio comprometido. Era a função que Winston desempenhava com mais talento, e durante mais de duas horas conseguiu não pensar na moça.  Depois, a lembrança do seu rosto voltou e com ela um desêjo furioso, intolerável, de estar só. Seria impossível pensar na situação enquanto não conseguisse ficar só. À noite, porém, tinha de ir ao Centro Comunal. Enguliu outra refeição sem gôsto na cantina, correu ao Centro, tomou parte na farça solene de um "grupo de discussão", jogou duas partidas de pingue-pongue, tragou vários copos de gin e assistiu uma conferência de meia-hora, sob o título "Ingsoc em relação ao xadrez." Sentia a alma sêca de tanto aborrecimento, mas não teve impulso de f'ugir à noitada no Centro. À vista das palavras Eu te amo crescera dentro dêle o desêjo de viver, parecendo-lhe estúpido assumir riscos miudos. Não foi senão às vinte e três horas, sózinho na cama - e no escuro, que era o jeito de se defender da teletela, contanto que ficasse quieto - que pôde pensar continuamente.

Era um problema físico que exigia solução: como entrar em contacto  com a moça e combinar um encontro. Já não considerava a possibilidade de ser armadilha. Sabia que não era, por causa da inconfundível agitação da morena ao lhe entregar o bilhete. Era evidente que morria de medo, como seria natural. Tampouco lhe passara pela cabeça a idéia de recusar a declaração. Cinco noites antes pensara em esmagar-lhe o crânio com um paralelepípedo; mas isso não importava. Pensava em seu corpo nú e jovem, como o vira em sonhos. Imaginara-a uma tola, como tôdas as outras, a cabeça recheada de patranhas e ódio, a barriga cheia de gêlo. Uma espécie de febre o dominou, ao pensar que Poderia perdê-la, o corpo jovem e alvo fugindo dêle! O que temia, mais do que qualquer outra coisa, era que ela mudasse de idéia, se não fizesse logo por entrar em contacto com ela. Mas era enorme a dificuldade física de se encontrarem. Era

como mover uma pedra ao xadrez, depois de ter levado mate. Para onde quer que se virasse, tinha a teletela pela frente. Na verdade, tÔdas as maneiras possíveis de se comunicar com ela lhe haviam ocorrido nos cinco minutos após ler o recado; mas agora, com tempo para refletir, examinou-as, uma a uma, como quem depõe na mesa uma fila de instrumentos.

Evidentemente, não se podia repetir o encontro havido aquela manhã. Se ela trabalhasse no Departamento de Registro, seria relativamente simples, porém êle tinha idéia muito vaga da localização do Departamento de Ficção e não havia pretexto para visitá-lo. Se soubesse onde morava, e a que hora deixava o trabalho, poderia dar um jeito para encontrá-la no caminho de casa. Mas segui-la não era aconselhável, porque teria que esperar nas imediações do Ministério, o que certamente seria notado. Quanto a mandar uma carta pelo correio, era impossível. Por um processo que nem mesmo era secreto, tÔdas as cartas eram abertas em trânsito. Na verdade, pouquíssima gente escrevia cartas. Quando, ocasionalmente, havia necessidade de se mandar uma comunicação, existiam cartões postais impressos   com  longas listas de frases, e o cídadão riscava as que não se aplicavam.    Além do mais, não sabia o nome da moça, e muito menos          o enderêço. Por fim resolveu que o melhor lugar seria a cantina. Se conseguisse sentar-se a uma mesa com ela, mais ou menos no meio da sala, longe das teletelas, e com suficiente ruido de conversação em tôrno - e se essas condições durassem uns trinta segundos, talvez fosse possível trocar algumas palavras.

Durante uma semana, a partir daquele dia, a vida foi um sonho sem descanso. No dia seguinte ela não apareceu na cantina senão quando êle estava de saída, e o apito já tocara. Com certeza fôra transferida a outra turma. Passaram sem se olhar. No dia seguinte, ela estava na cantina na hora do costume, mas com outras três colegas, e bem debaixo duma teletela. A seguir, por três dias penosos, não apareceu. O cérebro e o corpo de Winston pareciam atacados de intolerável' sensibilidade, uma espécie de transparência, que transformava em agonia qualquer movimento, qualquer som, contacto ou palavra que tivesse de pronunciar ou ouvir. Mesmo dormindo não podia fugir-lhe à imagem. Não tocou o diário. Se alívio havia, estava no trabalho, no qual às vezes podia se esquecer do mundo por períodos de até dez minutos. Não tinha a menor idéia do que teria acontecido com ela. Não havia jeito de informar-se. Poderia ter sido vaporizada, poderia ter-se suicidado, poderia ter sido transferida a outra parte da Oceania: o pior, e mais provável, era que tivesse simplesmente mudado de idéia, e resolvido evitá-lo.

No dia seguinte ela reapareceu. Já não tinha o braço na tipóia, porém o pulso ainda estava enrolado em esparadrapo. O consôlo de revê-la foi tamanho que não pôde resistir à tentação de fitá-la durante vários segundos. No dia seguinte, quase conseguiu falar-lhe. Ao entrar na cantina, ela já estava junto duma mesa, longe da parede, e sózinha. Era cedo, e a sala não estava cheia. A fila avançou vagarosa até Winston quase chegar ao balcão. Nesse momento deteve-se uns dois minutos porque alguém se queixava de não ter recebido sua pastilha de sacarina. Mas a jovem ainda estava só quando Winston tomou a bandeja e se encaminhou para a mesa. Ia caminhando com naturalidade, fingindo procurar lugar mais adiante. Estava a três metros dela, talvez. Mais dois segundos e pronto. Então uma voz atrás dêle chamou "Smith!" Êle fingiu não ouvir. "Smith!" repetiu mais alto. Inútil. Voltou-se. Um moço louro, cara de bobo, chamado Wilsher, que êle mal conhecia, convidava-o, com um sorriso, a sentar-se à sua mesa. Não era seguro recusar. Tendo sido reconhecido, não podia preferir a mesa da moça sózinha. Daria na vista. Sentou-se com um sorriso amável.

O rosto louro e tolo correspondeu. Winston teve uma alucinação em que se via dando uma machadada bem no meio daquele sorriso alvar. Uns minutos depois, a mesa da jovem estava cheia.

Ela porém devia tê-lo visto encaminhar-se na sua direção, e talvez lhe percebesse o intento. No dia seguinte, êle procurou chegar cedo. Com efeito, lá estava ela, numa mesa mais ou menos no mesmo lugar, e só. A pessoa que o antecedia na fila era um homenzinho de movimentos rápidos, feito um besouro, de cara chata e olhos miúdos e suspicazes. Quando Winston se voltou do balcão, com a bandeja, viu que o homenzinho ia reto na direção da mesa da moça. O coração caiu-lhe aos pés. Havia lugar numa mesa pouco mais adiante, Porém na aparência do homem alguma coisa dizia que amava o próprio confôrto o suficiente para escolher a mesa mais vazia. Com gêlo no coração, Winston acompanhou-o. Não adiantaria nada, a menos que pudesse ficar a sós com ela.

Nesse momento houve um baque tremendo. O homenzinho estava de quatro, a bandeja voara longe, e dois arroios de sopa e café corriam pelo soalho. Êle levantou-se com uma olhada maligna a Winston, de quem evidentemente desconfiava de o haver derrubado. Mas nada sucedeu. Cinco segundos depois, com o coração dando pinotes, Winston sentava-se à mesa da moça.

Não a olhou. Desocupou a bandeja e começou a comer. Era importantíssimo falar imediatamente, antes que viesse alguém. No entanto, um medo terrível se apossara dêle. Uma semana se passara desde que ela lhe dera o recado. Talvez tivesse mudado de idéia, com certeza mudara de idéia! Era impossível que uma coisa dessas corresse bem; isso não acontece na vida real. Êle teria calado para sempre se naquele momento não visse Ampleforth, o poeta de orelhas peludas, vagando pelo salão, à procura de um lugar para sentar. Com seus modos aéreos, Ampleforth tinha simpatia por Winston, e certamente escolheria aquela mesa, se o visse. Sobrava-lhe talvez um minuto. Tanto Winston como a moça comiam sem parar. Ingeriam sem o menor prazer uma sopa rala, um caldo de vagens. Muito baixinho, Winstón pôs-se a falar. Nenhum dos dois levantou a vista. Metendo colherada após colherada do liquido na bôca, trocaram as palavras necessárias, num murmurio sem expressão.

A que horas sais do serviço? Dezoito e trinta. Onde podemos nos encontrar? Praça da Vitória, perto do monumento. É cheio de teletelas. Não importa, se houver povo. Algum sinal? Não. Não te aproximes, se eu não estiver no meio da multidão. Não me olhes. Apenas chega perto.

- A que horas?

- Às dezenove.

- Muito bem. Ampleforth não viu Winston e sentou-se noutra mesa. Não tornaram a falar e até onde é possível a duas pessoas sentadas à mesma mesa: uma diante da outra, não se olharam. A moça terminou o almôço ràpidamente e se foi, enquanto Winston fumava um cigarro Vitória.

Já antes da hora marcada, Winston estava na praça. Deu algumas voltas em tôrno da base da enorme coluna em gomos, no alto da qual a estátua do Grande Irmão, voltada para o sul, fitava os céus onde havia derrotado os aeroplanos eurasianos (aeroplanos lestasianos, tinha sido, anos atrás) na batalha da Pista N.º 1. Na rua, diante da coluna, havia a estátua de um homem a cavalo que se supunha representar Oliveiros Cromwell. Cinco minutos depois da hora a moça ainda não aparecera. De novo o medo terrível se apossou de Winston. Ela não viria, mudara de idéia! Encaminhouse lentamente para a face norte da praça e com pálido prazer identificou a igreja de S. Martinho, cujos sinos, quando ainda tinha sinos, haviam cantado "Me deves três vintens." Nesse momento, viu a moça junto à base do monumento, lendo ou fingindo ler uma proclamação que subia em espiral pela coluna. Não era seguro aproximar-se enquanto não se acumulasse mais gente. Havia teletelas por tôda parte. Naquele momento, porém, elevou-se da esquerda uma gritaria, acompanhada do barulho de veículos pesados. De repente, todo mundo pareceu convergir para um só ponto. A moça deu volta em tôrno dos leões, na base do monumento, e juntou-se à massa. Winston seguiu-a. Enquanto corria percebeu, por uns gritos, que estava passando um comboio de prisioneiros eurasianos.

Já uma quantidade considerável de pessoas bloqueava o lado sul da praça. Winston, que em circunstâncias normais gravitava para a periferia de qualquer aglomeração, empurrou, acotovelou, esgueirou-se, tentando alcançar o meio do povaréu. Dali a pouco estava a um braço de distância da moça, mas de permeio havia um enorme prole e uma mulher quase tão vasta, sua espôsa certamente, e formavam impenetrável muralha de carne. Winston forcejou de lado e com um violento empurrão conseguiu meter o ombro entre os dois. Por um momento teve a impressão de que iam esmagar suas entranhas com as ancas musculosas, mas por fim passou, suando um pouco. Estava ao lado dela. Os ombros se tocavam, e ambos fixavam um ponto qualquer, no meio da rua.

Uma longa fila de caminhões, com guardas de cara de pau, armados de metralhadoras de mão, e postados em cada canto, ia passando lentamente. Nos caminhões iam de cócoras, muito apertados, uns soldadinhos amarelos, metidos em esfarrapados uniformes verdoengos.       As tristes caras mongólicas olhavam para fora, sem a menor curiosidade. De vez em quando, os caminhões davam um tranco e se ouvia

o tilintar de metais: todos os prisioneiros usavam grilhões. Passaram muitos caminhões atulhados de caras tristes. Winston sabia que estavam passando, mas só os via intermitentemente. O ombro da moça, e o seu braço direito, até o cotovelo, se comprimiam contra êle. A face estava tão perto que podia quase sentir-lhe o calor. Ela assumira imediatamente o comando da situação, como fizera na cantina. Pôs-se a falar com a mesma voz sem expressão que antes, mal mexendo os lábios, um murmurio que se perdia em meio ao vozerio e ao estrondo dos caminhões.

- Estás-me ouvindo?

- Estou.

- Estás livre domingo à tarde?

- Estou.

- Então escuta com cuidado.      Tens de decorar isto. Vai à estação de Paddington...

Com uma precisão militar que o assombrou, a moça delineou o itinerário que deveria seguir. Meia hora de trem. Sair da estação e encaminhar-se para a esquerda. Dois quilômetros pela estrada. Uma porteira sem travessão superior. Um caminho atravessando o campo. Uma alameda gramada. Uma picada entre touceiras. Uma árvore morta coberta de musgo. Era como se tivesse um mapa na cabeça. - Lembras de tudo? - murmurou por fim.

- Lembro.

- Viras à esquerda, depois à direita, depois à esquerda outra vez. A porteira sem travessão de cima.

- Sim. A que horas?

- Às quinze, mais ou menos. Talvez tenhas que esperar. Chegarei por outro caminho. Decoraste tudo?

- Decorei.

- Então dá o fora o mais depressa possível. Não seria preciso dizê-lo. Mas por um momento não lhes foi possível livrar-se da multidão. Os caminhões continuavam passando, e o povo, insaciável, queria olhar. No comêço algumas vaias e assovios tinham soado, de membros do Partido ali presentes, mas não haviam durado muito. A emoção geral era de simples curiosidade. Estrangeiros, fossem da Eurásia ou da Lestásia, eram considerados animais estranhos. Literalmente, não eram vistos nunca a não ser como prisioneiros, e mesmo como prisioneiros não eram vistos senão de relance. Nem se sabia o que lhes acontecia, além de alguns enforcados como criminosos de guerra: os outros desapareciam, presumivelmente em campos de trabalhos forçados. Aos rostos redondos dos mongóis se haviam sucedido faces de tipo mais europeu, sujas, barbudas e exaustas, de zigomas salientes. Seus olhos às vezes fitavam os de Winston, com estranha intensidade, e se afastavam. O comboio terminava. No último caminhão vinha um velho, o rosto coberto de cabelo grisalho desgrenhado, viajando de pé com os punhos juntos cruzados diante do peito, como se estivesse acostumado a algemas. Era quase chegado o momento dos dois se separarem. Mas no último instante, quando a multidão ainda os prendia, a mão da moça procurou a de Winston e apertou-a ligeiramente.

O aperto de mão não durou nem dez segundos e no entanto pareceu que as mãos tinham estado juntas longo tempo. Êle teve tempo de aprender todos os detalhes daquela mão. Explorou os longos dedos afuselados, as unhas bem feitas, a palma calejada pelo trabalho duro, a carne macia do pulso. Decorou-a pelo tato e soube que a reconheceria se a visse. No mesmo instante ocorreu-lhe que ainda não sabia a côr dos olhos da moça. Deviam ser castanhos, mas não raro gente de cabelo escuro tem olhos azuis.   Voltar a  cabeça e olhá-la seria uma loucura inconcebível. Com as mãos se apertando, invisíveis em meio aos corpos, os dois    olhavam firmes para a frente, e ao invés dos da jovem, os   olhos do velho prisioneiro fitaram melancólicamente Winston por entre as grenhas de cabelo encanecido.

10

Winston ia caminhando pela alameda pintalgada de luz e sombra, banhando-se em lagos dourados sempre que os ramos se separavam. Debaixo das árvores, à esquerda, o chão era um mar de campânulas. O ar parecia beijar-lhe a pele. Era dois de maio. Do meio do bosque se ouvia o arrulhar dos pombos bravos.

Ainda era cêdo. A viagem não oferecera impecilhos, e a moça tinha tanta experiência, evidentemente, que Winston sentia menos medo do que sentiria, em circunstâncias normais. Presumivelmente ela saberia achar um lugar seguro. Em geral, não se podia imaginar maior segurança no campo do que em Londres. Não havia teletelas, naturalmente, mas havia sempre o perigo de microfones ocultos, que captavam as vozes e reconheciam os transviados; além disso, não era fácíl viajar só sem atrair a atenção. Para distâncias inferiores a cem quilônetros não havia necessidade de carimbar o passaporte, mas às vezes havia patrulhas nas estações, examinando os papéis de todos os membros do Partido que por acaso encontrassem, e fazendo perguntas indiscretas. Todavia, nenhuma patrulha aparecera, e afastando-se da estação êle verificara, olhando para trás com frequência, que ninguém o seguia. O trem estava cheio de proles, alegres e festivos por causa do calor. O vagão de bancos de pau em que viajou estava completamente tomado por uma família só, enorme, desde a bisavó banguela até um nenê de um mês, a caminho de uma visita aos parentes do interior e, como explicaram sem cerimoniosamente a Winston, da compra de um pouco de manteiga no mercado negro.

A alameda alargou-se e dali a um minuto êle chegou à picada de que ela lhe falara, um simples atalho de gado, que mergulhava entre as touceiras. Não tinha relógio, mas não deviam ser ainda quinze horas. As campânulas eram tantas que não podia caminhar sem pisá-las. Ajoelhou-se e pôs-se a colher algumas, em parte para matar o tempo, mas em parte também pela vaga idéia de que seria agradável ter um ramo de flores para dar à moça quando aparecesse. Já reunira um maço regular, e estava sentindo o aroma um tanto enjoativo quando um ruido o fez gelar: era o estalido inconfundível de um pé quebrando um ramo. Continuou colhendo flores. Era o que melhor tinha a fazer. Podia ser a pequena, mas podia ser outra pessoa. Voltar-se seria acusar-se. Colheu mais uma e mais outra campânula. De repente sentiu uma mão no ombro.

Olhou para cima. Era a moça. Ela abanou a cabeça, num sinal evidente de que devia ficar quieto. Depois separou as touceiras e tomou a frente, seguindo a picada no rumo do bosque. Era claro que ali estivera antes, pois evitava os trechos pantanosos como quem conhece o chão. Winston seguiu-a, ainda com o ramo de flores na mão. Sua primeira sensação foi de alívio mas, olhando o corpo forte e esguio à sua frente, com a faixa rubra apertada, que ressaltava a curva dos quadris, começou a pesar-lhe a própria inferioridade. Mesmo agora ainda lhe parecia perfeitamente possível que ela se voltasse, lhe desse uma olhada e se afastasse. Winston estava embriagado pela doçura do ar e o verdor das folhas. Já na caminhada da estação, à luz do sol de maio, se sentira sujo e estiolado, uma criatura de quatro paredes, com os poros entupidos do pó fuliginoso de Londres. Ocorreu-lhe que até aquele momento ela provàvelmente não o vira à plena luz do dia. Chegaram à árvore caida de que ela havia falado. A moça saltou sôbre o tronco e forcejou abrindo uma touceira, num lugar onde não parecia haver caminho. Quando Winston a seguiu, achou-se numa clareira natural, um pequeno recôndito atapetado de relva e completamente cercado de altos freixos novos, como uma parede. A moça parou e voltou-se.

- Aqui estamos, - anunciou. Os dois se entreolharam, a vários passos de distância. Winston ainda não tivera coragem de se aproximar.

- Não quis dizer nada na alameda - continuou ela -porque podia ser que houvesse um micro escondido. Não creio que haja, mas pode haver. E aqueles suinos são bem capazes de reconhecer a voz da gente. Aqui não há perigo.

Êle continuou sem coragem de se aproximar.

- Não há perigo? - indagou, estúpidamente.

- Não. Olha as árvores. - Eram freixos pequenos, que tinham sido podados e haviam brotado de novo, formando uma floresta de ramos, nenhum dos quais mais grosso que um punho. - Não há lugar para se esconder um micro. E eu já estive aqui antes.

Estavam apenas conversando. Winston conseguira achegar-se um pouco. Ela estava parada diante dêle, muito tesa, tendo nos lábios um sorriso que parecia irônico, como se admirada de que levasse tanto tempo para agir. As campânulas tinham caido ao chão, em cascata. Pareciam ter caído por si próprias. Êle segurou-lhe a mão.

- Acredítas - disse - que até agora não sabia a côr dos teus olhos? - Eram castanhos, notou, um castanho bastante claro, com cílios escuros. - Agora que viste direito como sou, ainda agüentas me olhar?

- Fàcilmente.

- Tenho trinta e nove anos. Tenho uma espôsa de que não me posso livrar. Tenho varizes. E cinco dentes postiços.

- Pouco me importa. No momento seguinte, ela estava nos seus braços, sem que fosse possivel dizer por iniciativa de quem. No comêço não sentiu senão a mais completa incredulidade. O corpo moço apertado contra o seu, a massa de cabelo escuro tocando-lhe a face e... sim! ela virou o rosto e êle beijou a bôca grande e vermelha. Ela passara-lhe os braços pelo pescoço, e o chamava de querido, amado, bem amado. Winston puxouw-a para o chão, e ela não resistiu permitindo-lhe que fizesse o que bem entendesse. Mas a verdade é que não tinha outra sensação física, excepto a do mero contacto. Sentia-se incrédulo e orgulhoso. Estava satisfeito daquilo acontecer, mas não tinha desejo físico. - Era cedo demais, a juventude e a boniteza o haviam amedrontado, êle estava muito acostumado a viver sem mulher... não sabia por que razão. A moça ergueu-se um pouco e tirou uma campânula dos cabelos. E sentou-se, encostada nêle, passando um braço por sua cintura.

- Não tem importância, querido. Não há pressa. Temos a tarde inteira. Êste esconderijo não é esplêndido? Encontrei-o uma vez que me perdi num passeio coletivo. Pode-se ouvir uma pessoa se aproximar a cem metros de distância.

-  Como te chamas? - perguntou Winston.

-  Júlia. Eu sei o teu nome. É Winston... Winston Smith.

-  Como descobriste?

-  Creio que tenho mais jeito de descobrir as coisas. Diz-me, que achavas de mim antes do dia em que te dei o recado?

Êle não se sentiu tentado a mentir-lhe. Seria uma espécie de sacrifício amoroso contar-lhe tudo.

- Eu te odiava - disse. - Queria te violar e depois te assassinar. Há duas semanas, pensei muito a sério em te esmagar a cabeça com uma pedra. Se queres saber, imaginei que fosses da Polícia do Pensamento.

A moça riu-se com gôzo, evidentemente interpretando aquelas palavras como um tributo à excelência do seu disfarce.

- Da Polícia do Pensamento? Pensaste mesmo isso?

- Bem, talvez não, exatamente. Mas pelo teu aspecto geral ... apenas porque és jovem, fresca e sadia, compreendes ... pensei que provàvelmente...

- Pensaste que eu fosse boa militante. Pura de palavras e atos. Faixas, passeatas, palavras de ordem, jogos, piqueniques comunais... tôda a tralha. E achaste que se eu tivesse uma pequena oportunidade havia de te denunciar como ideocriminoso e levar-te à morte?

- Sim, algo parecido. Há muitas raparigas assim, sabes, não é?

- É esta porcaria que dá essa impressão - disse ela, arrancando a faixa escarlate da Liga Juvenil Anti-Sexo e atirando-a a uma ramagem. Daí, como se o gesto lhe recordasse algo, apalpou o bolso do macacão e tirou uma barra de chocolate. Quebrou-a pela metade e deu um dos pedaços a Winston. Antes mesmo de pegá-lo êle sentiu, pelo cheiro, que se tratava de chocolate fora do comum. Era escuro e brilhante, e envolto em papel prateado. Em geral o chocolate era pardo-fosco, quebradiço, com gôsto de fumaça de lixo. Êle porém já havia provado chocolate daqueles. O Perfume adocicado despertara-lhe recordações que não podia precisar, mas que eram poderosas e perturbadoras.

- Onde arranjaste isto?

- No mercado negro - ela respondeu, indiferente. -Na verdade, externamente eu sou assim. Destaco-me nos jogos. Fui chefe de tropa nos Espiões, faço trabalho voluntário três noites por semana na Liga Juvenil Antí-Sexo. Passei horas e horas grudando sandices pelas paredes de Londres. Sempre levo uma ponta de faixa nas passeatas. Estou sempre de cara alegre e nunca tiro o corpo de nada. Grita sempre com a massa, digo eu. É o único jeito de não correr perigo.

O primeiro fragmento de chocolate derretera-se na língua de Winston. Delicioso! Mas aínda revoluteava pela periferia da sua consciência aquela recordação, algo que podia sentir mas não reduzir a uma forma definida, como um objeto visto com o rabo do ôlho. Empurrou-a para longe, sabendo apenas que se tratava da lembrança de algum ato que gostaria de desfazer mas não podia.

- És muito moça - disse. - Uns dez ou quinze anos mais moça que eu. Que foi que viste em mim para te atrair?

- Alguma coisa na tua cara. Achei que devia me arriscar. Tenho jeito para descobrir gente que não se adapta. Assim que te vi achei que eras contra êles. . Êles, aparentemente, eram o Partido, e principalmente o Partido Interno, a respeito do qual falava com ódio e desdém manifestos, a ponto de arrepiar Winston, embora soubesse estarem em segurança, se é que podiam estar em segurança nalguma parte. Outra coisa que o surpreendera fôra a linguagem forte que usava. Não era recomendável dizer nomes feios, sendo-se membro do Partido, e Winston raramente xingava, pelo menos em voz alta. Júlia, entretanto, parecia incapaz de mencionar o Partido, especialmente o Partido Interno, sem usar os palavrões que se vêem escritos a gis e a carvão em certas ruas escuras. Não lhe desagradava que assim fosse: era apenas um sintoma da revolta de Júlia contra o Partido e seus métodos, e lhe parecia natural e saudável, como o espirro de um cavalo que fareja feno podre. Tinham saído da clareira e vagueavam outra vez pela alameda pintalgada, com os braços passados pela cintura, sempre que o caminho permitisse a passagem de dois. Êle observou que a cintura dela parecia muito mais maleável sem a faixa odiosa. Falavam em cochichos. Fora da clareira, dissera Júlia, era melhor ficarem quietinhos. Dali a pouco chegaram ao fim do bosquete. Ela o deteve.

É melhor pararmos aqui. Pode haver alguém vigiando. Não corremos perigo enquanto ficarmos por trás das ramadas.

Estavam na sombra de umas aveleiras. O sol, filtrando-se por entre  as folhas inúmeras, ainda lhes ardia no rosto. Winston olhou para o campo e sofreu um choque, lento e curioso, de reconhecimento. Conhecia-o de vista. Um pasto velho, no restÔlho, com um caminho que serpeava de um lado a outro, pontilhado de cupins. Na sebe irregular, do lado oposto, os ramos dos ulmeiros balouçavam de leve na brisa, e suas folhas palpitavam em densas massas, como cabelo de mulher. Devia haver por aqui, embora não pudesse vê-lo, um regato com espraiados verdes onde nadavam mugens.

- Não há um regato por aqui? - sussurrou.

- Há, sim. Fica na beirada do outro campo. Tem peixes, uns peixes grandes. Podes vê-los nadando nas lagoas, sob os chorões, abanando a cauda.

-  É a Terra Dourada... quase - murmurou êle.

-  Terra Dourada?

-  Não é nada. Uma paisagem que às vezes vejo em sonhos.

-  Olha! - cochichou Júlia. Um tordo pousára num ramo, a menos de cinco metros de distância, quase na altura do rosto dos dois. Era possível que não os tivesse visto. Estava ao sol, e êles na sombra. Estirou as asas, tornou a fechá-las cuidadosamente, inclinou a cabeça por um instante, como que saudando o sol, e desencadeou uma torrente sonora. Dentro do silêncio da tarde era pasmoso o volume de som. Winston e Júlia deixaram-se ficar, muito juntos, imóveis, fascinados.  A música continuou, minuto após minuto, com assombrosas variações, sem nunca se repetir, quase como se o pássaro estivesse a exibir, de propósito, o seu virtuosismo. Às vezes parava por alguns segundos, abria e fechava as asas, depois inflava o peito malhado e tornava a romper na cantoria. Winston observava-o com um ar de vaga reverência. Para quem, para o que, estaria o tordo cantando? Não havia nem companheira nem rival à vista. Que é que o fazia pousar num campo deserto e soltar sua música no vazio? Winston indagou de si mesmo se, apesar de tudo, não haveria por perto um microfone escondido. Êle e Júlia tinham falado em sussurros, e o micro não poderia tê-los percebido, mas com certeza captaria o

canto do tordo. Talvez, na ponta do fio, um homenzinho com cara de besouro escutasse atento - escutasse canto. Aos poucos, porém, o embevecimento da música repeliu da mente de Winston tôdas as especulações. Era uma espécie de bálsamo despejado por cima de todo seu corpo, misturado com os raios do sol que se filtravam por entre as folhas. Parou de pensar, ficou apenas sentindo. No seu braço, a cintura da moça era morna e macia. Atraiu-a para mais perto, de modo a senti-la junto ao peito; o corpo de Júlia parecia derreter-se no dêle. Onde quer que o tocasse com as mãos, cedia como água. As bocas estavam presas; muito diferente dos beijos quase formais que haviam trocado antes. Quando separaram o rosto, os dois suspiraram profundamente.

O passarinho assustou-se e esvoaçou, fugindo.

Winston aproximou os lábios da orelha dela.

- Agora - sussurrou.

- Aqui não - foi a resposta. - Vamos voltar para o esconderijo. É mais seguro.

Ràpidamente, quebrando aqui e ali uns ramos secos, os dois voltaram para a clarêira. Quando mais uma vez se encontraram na segurança da muralha de árvores novas, Júlia voltou-se e parou diante dêle. Ambos ofegavam, mas o sorriso reapareceu nas comissuras dos lábios. Ela o fitou durante um instante, e depois apalpou o zip do macacão. Ah, sim! Foi quase como no sonho de Winston. Quase com a mesma ligeireza, ela tirou a roupa, e quando a atirou para um lado foi com o mesmo gesto magnífico que parecia aniquilar tôda uma civilização. O corpo muito branco lampejou ao sol. Mas, por um momento, êle não o olhou. Tinha os olhos grudados na face sardenta, no leve sorriso de ousadia. Ajoelhou-se diante dela e tomou-lhe as mãos.

- Já fizeste isto antes?

- Naturalmente. Centenas de vezes... quer dizer, muitíssimas vezes.

- Com membros do Partido?

- Sempre com membros do Partido.

- Do Partido Interno?

- Não, com aqueles porcos, não. Mas há uma porção que gostaria de fazer uma fèzinha, se tivesse oportunidade. Não são tão santos quanto pretendem.

O coração dêle deu um pincho. Muitíssimas vezes, dissera ela. Oxalá tivessem sido centenas... milhares. Tudo quanto cheirasse a corrupção o enchia sempre de ardentes esperanças. Quem poderia saber? O Partido talvez estivesse podre sob a crosta superior; seu culto da severidade é a auto-negação podiam ser apenas uma máscara da iniquidade. Se pudesse infeccioná-los todos com lepra ou sífilis, com que prazer o faria! Tudo que servisse para apodrecer, debilitar, minar! Êle puxou-a para baixo, fê-la ajoelhar-se à sua frente.

- Escuta. Quantos mais homens tiveste, mais te quero. Compreendes?

- Perfeitamente.

- Odeio a pureza, odeio a virtude. Não quero que exista virtude alguma, em parte nenhuma. Quero que todos sejam corruptos até os ossos.

- Então eu sirvo, querido.' Sou corrupta até os ossos.

- Gostas de fazer isto? Não me refiro a mim, sómente. Gostas da coisa em si?

- Adoro! Acima de tudo, era o que êle desejava ouvir. Não sómente o amor de uma pessoa, mas o instinto animal, o desejo simples, indiscriminado; era a fôrça que faria a derrocada do Partido. Apertou-a contra o chão, esmagando campanulas. Desta vez não houve impecilho. Dentro de alguns instantes, o ofegar do peito de ambos voltou ao normal, e com um agradável torpor, cairam separados. O sol parecia ter esquentado mais. Ambos tinham sono. Êle puxou o macacão abandonado e cobriu-a um pouco. Quase imediatamente cairam no sono e dormiram cerca de meia-hora.

Winston acordou primeiro. Sentou-se e ficou contemplando a face sardenta, ainda adormecida, apoiada na palma da mão. Com exceção da bôca, Júlia não podia ser considerada bonita. Olhando-se de perto, descobria-se uma ruga ou duas perto dos olhos. O cabelo escuro e curto era extraordinariamente espesso e macio. Winston raciocinou que ainda não sabia todo o nome dela, e onde morava.

Aquele corpo jovem e forte, agora completamente desprotegido, provocou nele uma sensação de pena, e proteção. Mas não voltou de todo a ternura fisica, orgânica, que sen-

tira sob a aveleira, enquanto cantava o tordo. Puxou o macacão de lado e estudou a pele branca e macia. Antigamente, pensou êle, um homem olhava um corpo de mulher, via que era desejável e pronto. Mas agora não era possível ter amor puro, ou pura lascívia. Não havia mais emoção pura; estava tudo misturado com medo e ódio. A união fôra uma batalha, o clímax uma vitória. Era um golpe desferido no Partido. Era um ato político.

11

- Podemos voltar aqui - disse Júlia. - Em geral, não há perigo em usar duas vezes o mesmo esconderijo. Mas só daqui a um mês ou dois, claro.

Assim que despertara, mudara totalmente sua conduta. Tornou-se alerta e prática, vestiu-se, ajustou na cintura a faixa escarlate, e pôs-se a organizar os detalhes da viagem de regresso. A Winston pareceu natural deixar-lhe a iniciativa. Evidentemente, Júlia tinha uma dose de manha prática de que êle carecia, e parecia também ter conhecimento exaustivo dos arredores de Londres, fruto de inúmeros passeios comunais. O itinerário que ela lhe sugeriu diferia bastante do que usara antes, e levava-o a outra estação.

- Nunca vás para casa pelo mesmo caminho que vieste- aconselhou, com ar de quem anuncia um importante princípio geral. Iria primeiro, e Winston esperaria meia-hora, antes de tomar o rumo de volta.

Disse o nome dum lugar onde poderiam se encontrar depois do trabalho, dali a quatro dias. Era uma rua de bairro pobre, onde havia uma feira geralmente cheia de gente ruidosa. Ela fingiria procurar algo nas barracas, como se quisesse comprar atacadores de sapato ou linha de coser. Se achasse não haver perigo, assoaria o nariz quando êle se aproximasse; senão, deveria passar sem reconhecê-la. Com sorte, porém, não haveria risco em conversarem um quarto de hora no meio da multidão combinando outro encontro.

- E agora preciso ir embora - disse ela, assim que êle decorou as instruções. - Devo voltar às dezenove e trinta. Tenho de trabalhar duas horas para a Liga Juvenil Anti-Sexo, distribuindo volantes, ou algo parecido. Não é horroroso? Queres me dar uma escovadela, por favor? Tenho

alguma folha ou raminho no cabelo? Tens certeza? Então, adeus, meu amor, adeus!

Atirou-se nos braços dêle, beijou-o quase com violência, e dali a um momento abriu caminho entre as árvores, desaparecendo no bosque com barulho mínimo. Winston continuava sem saber-lhe o nome nem o endereço. Não fazia diferença, porém, pois era inconcebível que pudessem se encontrar num recinto fechado, ou trocar qualquer comunicação escrita.

Aconteceu porém que nunca voltaram à clareira do bosque. Durante o mês de maio só houve outra ocasião em que conseguiram ficar sós algum tempo. Foi noutro esconderijo conhecido de Júlia, o campanário de uma igreja arruinada, local quase deserto onde uma bomba atômica caira trinta anos antes. Era bom lugar para se esconder, mas o perigo era chegar até lá. O resto do tempo só podiam se encontrar nas ruas, cada vez num lugar diferente, e nunca durante mais de meia-hora. Na rua, em geral era possível conversar, de certo modo. Vagueando pelas calçadas cheias de gente, sem ser lado a lado, e nunca se entreolhando, tinham palestras curiosas, intermitentes, que sumiam e reapareciam como os fachos de um farol, súbitamente silenciadas pela aproximação de um uniforme do partido ou a proximidade de uma teletela, e reiniciadas, minutos mais tarde, no meio duma frase, ou então cortadas ex-abrupto quando se separavam num ponto combinado, e continuadas quase sem introdução no dia seguinte. Júlia parecia bastante acostumada a esta espécie de conversa, a que chamava "falar a prestações." Tinha também uma surpreendente habilidade de falar sem mexer os lábios. Apenas uma vez, em quase um mês de encontros noturnos, conseguiram trocar um beijo. Iam passando em silêncio por uma rua lateral (Júlia nunca falava quando estavam longe das artérias principais) quando se ouviu um ribombo ensurdecedor; a terra tremeu e o ar se escureceu. Winston achou-se caído de lado, com escoriações e muito medo. Uma bomba-foguete devia ter caído bem perto. De repente viu o rosto de Júlia, a alguns centímetros do seu, branca de morte, branca como gis. Até os lábios tinham perdido a côr. Estava morta! Apertou-a contra o peito e sentiu que estava beijando um rosto vivo e palpitante. Aquela brancura tôda era dum pó que caira em cima dos dois. A face de ambos fôra coberta de forte camada de caliça.

Havia noites em que, chegados ao ponto de encontro, tinham de passar um pelo outro sem dar sinal de vida, por causa de alguma patrulha à vista, ou de um helicóptero pairando por perto. Mesmo que fosse menos perigoso, seria difícil encontrar tempo para se encontrar. A semana de trabalho de Winston era de sessenta horas, e a de Júlia ainda mais longa, e os dias de folga variavam conforme a pressão do serviço, nem sempre coincidindo. E Júlia raro tinha uma noite inteiramente livre. Perdia um tempo fabuloso, assistindo conferências e demonstrações, distribuindo literatura da Liga Juvenil Anti-Sexo, preparando faixas para a Semana do ódio, cobrando contribuições da campanha de poupança, e atividades similares. Valia a pena, dizia ela; era camuflagem. Respeitando as leis menores podia infringir as maiores. Chegou mesmo a induzir Winston a hipotecar mais uma noite, oferecendo-se para trabalhar numa fábrica de munições, nas horas vagas, o que faziam voluntàriamente todos os zelosos militantes. Assim, uma noite por semana, Winston passava quatro horas de paralisante chatice, atarrachando e montando pedacinhos de metal, provàvelmente partes de fusiveis de bomba, numa oficina mal iluminada e ventilada onde o bater dos martelos se misturava penosamente com a música das teletelas.

Quando se encontraram na tôrre da igreja, foram preenchidos os claros da sua conversação fragmentada. Era uma tarde sufocante. No quartinho em cima do compartimento dos sinos, o ar era quente e estagnado, e havia um cheiro horrível de guano de pombo. Passaram horas conversando, sentados no soalho empoeirado, coberto de detritos. De vez em quando um dêles se levantava para espiar pelas seteiras, verificar que não vinha ninguém.

Júlia tinha vinte e seis anos de idade. Morava numa hospedaria com outras trinta moças ("Sempre o mau cheiro das mulheres! Como eu odeio as mulheres!" exclamava, entre parênteses), e trabalhava, como êle imaginara, nas máquinas novelizadoras do Departamento de Ficção. Apreciava o trabalho, que consistia principalmente em fazer funcionar e manter em bom estado um poderoso e complicado motor elétrico. Era "inesperta" porém gostava de usar as mãos e sentia-se à vontade com maquinaria. Sabia descrever todo o processo de composição de um romance, desde a diretriz geral traçada pelo Comité de Planejamento até os retoques finais, pelo Esquadrão de Reescritores. Ela, porém, não se

interessava pelo produto acabado. "Não tínha gôsto pela leitura," disse. Para ela, os livros não passavam de artigos que tinham de ser produzidos, como botinas ou compotas.

Não se recordava de coisa alguma antes de 1960, e a única pessoa que conhecera e falava frequentemente dos dias anteriores à Revolução era um avô, que desaparecera quando Júlia tinha oito anos. Na escola, capitaneara o time de hóquei e dois anos consecutivos ganhára o troféu de ginástica. Fôra chefe de tropa nos Espiões e secretária distrital da Liga da Juventude antes de entrar para a Liga Juvenil Anti-Sexo. Sempre se demonstrara excelente cidadã. Até fôra (sinal infalível de boa reputação) escolhida para trabalhar na Pornosec, a sub-secção do Departamento de Ficção que produzia pornografia barata para distribuição entre os proles. Os que lá trabalhavam lhe davam o apelido de Casa da Lama, observou ela. Ali permanecera um ano, ajudando a produzir livretos em envoltórios fechados, com títulos tais como Contos da Chibata ou Uma Noite Num Internato de Moças, comprados furtivamente por jovens proles, que tinham a impressão de adquirir algo ilegal.

- Como são êsses livros? - indagou Winston, curioso.

- Oh, droga horrorosa. São chatíssimos. Só têm seis enredos, que são misturados e adaptados. Naturalmente eu só estava nos caleidoscópios. Nunca estive no Esquadrão de Reescritores.   Não sou literata, meu caro... nem sirvo para isso.

Winston soube, estarrecido, que todos os trabalhadores da Pornosec eram moças, à exceção do chefe. A teoria era de que os homens, cujos instintos sexuais são menos controláveis que os das mulheres, corriam maior risco de ser contaminados pela imundície que lhes passava pelas mãos.

- Nem gostam de mulheres casadas - acrescentou. -

As pequenas são consideradas sempre tão puras! Eu pelo menos não sou.

Tivera o seu primeiro caso amoroso aos dezesseis anos, com um militante de sessenta, que depois se suicidara para fugir à prisão.

- E fez muito bem - comentou Júlia - porque senão haveriam de descobrir meu nome, quando êle confessasse. -

Depois daquele houvera muitos outros. Aos seus olhos, a vida era muito simples. Queria divertir-se; "êles", isto é, o Partido, não queriam deixá-la; porisso infringia a lei da melhor maneira possível. Parecia achar igualmente natural que "êles" quisessem proibir os prazeres e que os cidadãos buscassem fugir à prisão. Odiava o Partido, e confessava-o em outras tantas palavras cruas, mas não o criticava em geral. Excepto no que tangia à sua vida particular, não lhe interessava a doutrina partidária. Êle observou que Júlia nunca usava palavras de Novilíngua, nem mesmo as que haviam passado à linguagem corrente. Nem nunca ouvira falar da Fraternidade, recusando-se mesmo a acreditar na sua existência. Considerava estúpida qualquer revolta organizada contra o Partido; fadada ao insucesso, dizia.      O inteligente era desrespeitar a lei e continuar vivendo. Winston indagou de si mesmo, vagamente, quantos outros, como Júlia, devia haver na nova geração - jovens crescidos no mundo da Revolução, não sabendo nada mais, achando o Partido algo inalterável, como o céu, não se rebelando contra sua autoridade, mas simplesmente fugindo a ela, como um coelho evita o cão.

Não discutiram a possibilidade de casamento. Era demasiado longínqua para merecer consideração. Nenhum comité imaginável sancionaria tais nupcias, mesmo que Winston pudesse se livrar de Katherine. Nem como sonho de olhos abertos oferecia esperança.

- Que tal era tua mulher? - indagou Júlia.

- Era...   conheces a palavra de Novilíngua benpensante? Isto é, naturalmente ortodoxa, incapaz de um mau pensamento?

- Não, não conheço a palavra, mas conheço o tipo, isso conheço.

Êle pôs-se a contar-lhe a história de sua vida conjugal, mas o curioso é que ela já parecia conhecer as partes essenciais. Descreveu a Winston, quase como se o tivesse visto ou sentido, o enrijamento do corpo de Katheríne assim que êle a tocava, a maneira por que parecia ainda repeli-lo com tÔda força, mesmo quando nele se enroscava com braços e pernas. Com Júlia êle não achava difícil falar de tais coisas: afinal, Katherine deixara de ser uma lembrança dolorosa para ser apenas desagradável.

- Eu aguentaria se não fosse uma coisa - disse êle. Falou-lhe da frígida cerimoniazinha a que Katherine o forçava uma vez por semana. - Ela o detestava, mas nada conseguiria fazê-la mudar de idéia. Costumava chamar o ato de. .. és capaz de adivinhar?

- Nosso dever para com o Partido - disse Júlia, prontamente.

Como sabes? Também estive na escola, querido. Aulas de sexo uma vez por mês para as maiores de dezesseis. E no Movimento Juvenil. Esfregam na cara da gente, anos a fio. Sei que dá resultado, em muitas. Mas nunca se pode saber; há tantas hipócritas.

Ela pôs-se a discorrer sôbre o assunto. Com Júlia, tudo girava em tôrno da sua própria sexualidade. Assim que êste assunto vinha à balha, de algum modo, mostrava-se muito informada. Ao contrário de Winston, percebera o sentido íntimo do puritanismo sexual do Partido. Não era apenas pelo fato do instinto sexual criar um mundo próprio, fóra do controle do Partido e que portanto devia ser destruido, se possível. O mais importante era a privação sexual que provocava a histeria, desejável porque podia ser transformada em febre guerreira e adoração dos chefes. Ou como explicava Júlia:

- Quando amas, gastas energia; depois, ficas contente, satisfeito, e não te importas com coisa alguma. Êles não gostam que te sintas assim. Querem que estoures de energia o tempo todo. Todo êsse negócio de marchar para cima e para baixo, dar vivas, agitar bandeirolas, é sexo que azedou. Se estás contente contigo mesmo, por que havias de admirar o Grande Irmão, os Planos Trienais e os Dois Minutos de ódio e todo o resto da maldita burrice?

Era bem verdade, pensou êle. Havia uma ligação direta e íntima entre a castidade e a ortodoxia política. Como poderiam ser mantidos no tom o medo, o ódio e a credulidade lunática que o Partido necessitava nos seus membros, a não ser pelo engarrafamento de um poderoso instinto, usado como fôrça motriz? O impulso sexual era perigoso ao Partido e o Partido o transformara em vantagem a seu favor. A truque semelhante tinham submetido o instinto da paternidade. Como não era possível abolir a família (ao contrário, os pais eram incitados a gostar dos filhos quase à moda antiga) as crianças eram sistemàticamente atiradas contra os pais, e ensinadas a espioná-los e a denunciar os seus desvios. Dessa forma a família se tornára uma extensão da Polícia do Pensamento. Era um meio pelo qual todo mundo podia ser cercado, noite ou dia, por delatores que o conheciam intimamente.

De sopetão, o pensamento de Winston voltou a Katherine. Sem dúvida, ela o denuncíaria à Polícia do Pensamento se não fosse tão estúpida que percebesse a heresia dos pensamentos. Mas o que na verdade a recordou foi o calor sufocante da tarde, que lhe cobria a testa de bagas de suor. Começou a contar a Júlia algo que acontecera, ou antes, que deixara de acontecer, numa tarde muito quente, onze anos atrás.

Havia apenas três ou quatro meses que haviam casado. Tinham-se perdido num passeio comunal, em Kent. Haviam se afastado dos outros apenas uns minutos, mas tomado um caminho errado, e por fim se achado na beira de uma velha mina de calcáreo. Era uma queda vertical de dez ou vinte metros, com grandes rochas ao fundo. Não havia ninguém a quem perguntar a direção certa. Assim que descobriram estar perdidos, Katherine começou a ficar nervosa. Afastarse do bando barulhento, por uns minutos que fosse, dava-lhe a impressão de estar agindo mal. Queria correr de volta pelo caminho e procurar na outra direção. Mas nesse momento Winston notou uns tufos de prímulas crescendo nas grétas do penedo. Um tufo era de duas côres, maravilha e tijolo, aparentemente crescendo na mesma raiz. Nunca vira nada parecido, e chamou Katherine.

- Olha, Katherine! Olha aquelas flores. Aquele maço perto do fundo. Vês que são de côres diferentes?

Ela já virara para regressar, mas veiu espiar, inquieta. Chegou até a inclinar-se sôbre o rochedo para ver onde éle apontava. Winston estava parado, um pouco para trás, e segurou-a pela cintura para firmá-la. Naquele momento, ocorreu-lhe que estavam completamente sós. Não havia por ali nenhuma criatura humana, não se movia uma folha, não havia um pássaro acordado. Num lugar daqueles, era muito pequeno o perigo de haver um microfone escondido, e se microfone houvesse, só poderia captar sons. Era a hora mais quente, mais sonolenta da tarde. O sol fustigava-os, e a testa dêle estava banhada em suor. Uma idéia lhe veiu...

- Por que não lhe deste um bom empurrão? - indagou Júlia. - Eu daria.

- Sim, querida, já sei. Eu também, se fosse a pessoa que sou hoje. Ou talvez eu... não sei não.

- Lamentas não tê-la empurrado?

- Lamento. De certo modo, foi uma pena.

Estavam sentados, um ao lado do outro, sôbre o soalho empoeirado. Puxou-a para mais perto. Júlia descansou a cabeça no ombro dêle, e o aroma agradável dos seus cabelos sobrepujou o cheiro dos pombos. Era muito moça, pensou Winston, ainda esperava algo da vida, não compreendia não ser solução empurrar uma pessoa inconveniente, rochedo abaixo.

- Na verdade, não faria a menor diferença.

- Então por que lamentas não ter empurrado a zinha?

- Por que prefiro uma positiva a uma negativa. Neste jôgo, não podemos ganhar. Alguns fracassos são melhores que outros, e é tudo.

Sentiu-a dar de ombros, num movimento de desaprovação. Sempre o contradizia quando êle saía com essas. Não aceitava, como lei da natureza, a derrota do indivíduo. De certo modo percebia estar condenada, e que mais cedo ou mais tarde a Polícia do Pensamento a apanharia e mataria, mas com outra parte do cérebro acreditava ser possível construir um mundo secreto onde podia viver como quisesse. Tudo que precisava era sorte, esperteza e audácia. Não compreendia que não existia felicidade, que a única vitória estava no futuro distante, muito depois da morte, e que desde o momento de declarar guerra ao Partido era melhor considerarse cadáver.

- Estamos mortos - disse êle.

- Não estamos mortos ainda - contestou Júlia, prosàicamente.

- Fisicamente, não. Seis meses, um ano... cinco anos concebivelmente. Tenho medo da morte. És jovem, de modo que presumo que tens mais medo que eu. Naturalmente, procuraremos evitá-la. Mas isso não faz muita diferença. Enquanto os humanos permanecerem humanos, a vida e a morte são a mesma coisa.

- Besteira! Com quem preferes dormir, comigo ou com um esqueleto? Não gostas de estar vivo? Não aprecias a sensação de dizer: êste sou eu, esta é minha mão, minha perna, sou real, sou sólido, sou vivo! Não gostas disto?

Ela voltou-se e apertou os seios contra o corpo dêle. Winston pôde sentir-lhe os peitos, maduros e firmes, sob o macacão. O corpo dela parecia transmitir ao seu um pouco de juventude e vigor.

- Gosto, sim.

- Então para de falar de morte. E agora ouve, temos de combinar novo encontro. Já podemos voltar à clareira do bosque. Demos-lhe uma boa folga. Mas desta vez deves ir por caminho diferente. Já pensei em tudo. Pegas o trem... mas olha, já te desenho um mapa.

E com seus modos práticos ela marcou um retângulo de pó e, tirando um pau do ninho de um pombo, pôs-se a riscar uma planta no chão.

12

Winston olhou em tôrno do quartinho mal ajambrado sôbre a loja do sr. Charrington. Ao lado da janela, a cama enorme fôra feita, com cobertores esfarrapados e um travesseiro sem fronha. O relógio antigo, de mostrador de doze horas, tiquetaqueava na lareira. No canto, sôbre a mesa de abrir, o pêso de papéis que êle comprara na última visita cintilava suavemente na semi-obscuridade.

Na guarda do fogão havia um veterano fogareiro a óleo, uma caçarola e duas xícaras, fornecidos pelo sr. Charrington. Winston acendeu o fogo e pôs a panela dágua a ferver. Trouxera um envelope cheio de Café Vitória e umas pastilhas de sacarina. Os ponteiros do relógio marcavam sete e vinte; na verdade eram dezenove e vinte. Ela devia chegar às dezenove e trinta.

Loucura, loucura,. dizia-lhe o coração; loucura consciente, gratuita, suicida. De todos os crimes que um membro do Partido podia cometer, êste era o mais difícil de ocultar. A idéia a princípio lhe viera à cabeça sob forma de uma visão do pêso de vidro espelhado pela superfície da mesa de dobrar. Como previra, o antiquário acedera em alugar o quarto. Evidentemente, vinham a calhar uns dólares extra. Nem pareceu chocado ou desrespeitoso quando ficou claro que Winston queria o quarto com a finalidade de receber uma mulher. Ao invés, seu olhar perdeu-se na meia distância e êle falou de generalidades, com um ar tão delicado que parecia ter-se tornado parcialmente invisível. A poSsibilidade da solidão, disse êle, é muito valiosa. Todo mundo quer um lugar onde possa ficar só. E quando tem um lugar assim, é cortesia comum se calarem os que dêle souberem. E apesar de parecer fanado e fora da vida, acrescentou até que a casa tinha duas entradas, sendo uma pelo quintal, que abria sôbre o beco.

Debaixo da janela, alguém cantava. Winston espiou para fora, protegido pela cortina de musselina. O sol de junho ainda boiava alto nos céus, e no pátio ensolarado uma mulher monstruosa, sólida como uma pilastra normanda, com formidandos antebraços avermelhados e um avental de aniagem na cintura, caminhava entre uma tina de lavar e um varal, estendendo uma porção de panos quadrados em que Winston reconheceu fraldas. Sempre que não tinha a bôca cheia de prendedores, cantava, com poderosa voz de contralto:

"Foi apenas uma fantasia desesperada,

Que passou como um dia de abril,

Mas um olhar, uma palavra, e os sonhos provocados,

Roubaram o meu coração gentil!"

Havia semanas que a canção estava em voga em Londres. Era uma das músicas sem conta, publicadas para os proles, por uma sub-secção do Departamento de Música. As letras eram compostas, sem intervenção humana, num instrumento chamado versificador. Mas a mulher cantava com tamanho sentimento que transformava aquéla horrível pieguice num som quase agradável. Winston podia ouvir a mulher cantando e o ranger dos sapatos no lagedo, gritos de crianças nas ruas, e às vezes, na distância, o regougo esmaecido do tráfego, e no entanto o quarto parecia curiosamente mudo, por causa da ausência da teletela.

Loucura, loucura, loucura! tornou a pensar. Era inconcebível que pudessem frequentar aquele lugar por mais de algumas semanas sem serem descobertos. Mas a tentação de ter um esconderijo que fosse verdadeiramente dêles, dentro de casa, à mão, fôra demasiada. Durante algum tempo após a visita ao campanário da igreja, não tinham podido se encontrar. As horas de trabalho tinham sido dràsticamente aumentadas, à espera da Semana do ódio. Ainda faltava mais de um mês, porém os preparativos vastos, complexos, exigiam trabalho extra de todo mundo. Afinal, ambos haviam conseguido a mesma tarde livre.     Tinham combinado ir à clareira do bosque. Como sempre,    Winston mal olhou para Júlia, quando se cruzaram no meio da multidão. Mas pela breve olhada que lhe lançou, pareceu-lhe que estava mais pálida do que do costume.

- Não pode ser - murmurou, assim que julgou seguro falar. - Quero dizer, amanhã não posso.

- Que?

- Amanhã de tarde, não posso ir.

- Por que?

- Pelo motivo comum. Desta vez começou cedo. Por um momento, êle se sentiu furioso. Naquele mês, volvido desde que a conhecera intimamente, modificara-se a natureza do seu desejo. No comêço, pouca sensualidade houvera nele. O primeiro contacto amoroso fôra simplesmente um ato de volição. Mas depois da segunda vez as coisas haviam mudado de figura. O aroma dos cabelos, o gôsto da bôca, a maciez da pele pareciam havê-lo penetrado, ou envolvê-lo. Ela se tornara uma necessidade física, algo que não apenas queria como sentia ter direito a gozar. Quando Júlia anunciou que não poderia ir, teve a impressão de estar sendo lesado. Mas naquele momento a multidão os apertou e, acidentalmente, as mãos se encontraram. Ela apertou-lhe ligeiramente as pontas dos dedos, num gesto que parecia pedir não desejo mas afeto. Winston raciocinou que, quando se vive com uma mulher, êsse tipo de desapontamento deve ser uma coisa normal, que acontece mais de uma vez; de repente, domínou-o uma profunda ternura, como nunca sentira antes. Desejou que fossem um casal com dez anos de existência em comum. Desejou passear com ela pelas ruas, como estavam fazendo naquele instante, mas abertamente, sem medo, falando de frivolidades e comprando pequenas bobagens para o lar. Desejou, acima de tudo, que tivessem um lugar onde ficar a sós, sem sentir a obrigação de fazer o amor, cada vez que se encontravam. Não foi exatamente naquele instante, mas no dia seguinte, que lhe ocorreu alugar o quarto do antiquário. Quando sugeriu o plano a Júlia, ela concordou com inesperada presteza. Ambos sabiam ser loucura. Era como se dessem, de propósito, um passo para o túmulo. Sentado na beira da cama, Wínston tornou a pensar nos porões do Ministério do Amor. Era curioso que aquele horror predestinado se acendesse e apagasse na sua consciência. Lá estava êle, fixado no tempo futuro, precedendo a morte com a mesma certeza que 99 precede 100. Não era possível evitá-lo, mas talvez fosse adiá-lo; e no entanto, ao invés disso, de vez em quando, êle encurtava a vida, por um ato consciente, voluntário.

Naquele momento, ouviu-se um     passo rápido nas escadas. Júlia irrompeu no quarto. Trazia um saco de ferramentas de lona marron crua, com que às vezes a vira entrando e saindo do Ministério. Tentou colhê-la nos braços, mas Júlia desvencilhou-se um tanto apressada, em parte por estar ainda com a bolsa na mão.

- Meio segundo - disse. - Olha só o que eu trouxe. Trouxeste êsse horrendo Café Vitória? Logo vi. Podes levá-lo de volta, porque não precisamos dêle. Olha.

Ajoelhou-se, abriu a bolsa, e tirou algumas chaves- inglêsas e de fenda que enchiam a parte superior. Por baixo havia vários pacotes de papel. O primeiro embrulho que entregou a Winston lhe pareceu, ao tato, ter uma consistência estranha e no entanto vagamente familiar. Estava cheio de uma substância pesada, pulverulenta, que cedia onde se apertasse o papel.

- É açúcar?

- Açúcar de verdade. Nada de sacarina. E aqui temos um pão - um pão branco, decente, não aquela broa insôssa - e uma latinha de geléia. Uma lata de leite... e olha! Disto eu me orgulho. Tive de enrolá-lo numa estopa, Po'rque...

Mas não era preciso explicar porque o enrolára. O aroma já enchia o quarto, um aroma rico e convidativo, que lhe parecia uma emanação da meninice, mas que de vez em quando ainda sentia, propagando-se por um corredor antes de uma porta bater, ou espalhando-se misteriosamente numa rua cheia de gente; um cheiro olfateado uns segundos e depois perdido de novo.

- É café - murmurou Winston. - Café de verdade.

- Café do Partido Interno. Um quilo inteiro aqui.

- Como conseguiste arranjar tudo isto?

- É tudo para o Partido Interno. Não há nada que aqueles suinos não tenham. Nada. Mas naturalmente os garçons e os empregados afanam as coisas e... olha, trouxe também um pacotinho de chá.

Winston acocorara-se ao pé de Júlia. Rasgou um bico do pacote.

- Chá mesmo. Não são folhas de amora.

- Tem rodado muito chá por aí. Capturaram a Índia, sei lá - explicou ela, vagamente. - Mas escuta, querido. Quero que me dês as costas três minutos. Vai sentar do

outro lado da cama. Não chegues à janela. E não olhes enquanto eu não te disser.

Winston ficou olhando, distraído, através da cortina de musselina. Lá no pátio a mulher dos braços avermelhados continuava marchando da tina para o varal, e vice-versa. Tirou dois prendedores de roupa da bôca e cantou com profundo sentimento:

"Dizem que o tempo tudo cura,

Dizem que sempre se pode esquecer,

Mas os sorrisos e lágrimas, anos a fio,

Ainda fazem meu coração sofrer."

Sabia de cor a estúpida' canção. A voz subia, boiando no doce ar estival, muito afinada, carregada de uma espécie de feliz melancolia. Tinha-se a impressão de que ficaria perfeitamente contente se a noite de junho fosse infindável, e inesgotável o monte de roupa suja, para ficar ali mil anos, pendurando fraldas no varal e cantarolando bobagens. E Winston achou curioso o fato de nunca ter ouvido um membro do Partido cantar a sós, espontâneamente. Isso teria parecido ligeiramente ortodoxo, uma excentricidade perigosa, como falar sózinho. Talvez fosse apenas quando as pessoas estão próximas da fome que sentem desejo de cantar.

- Já podes virar - disse Júlia. Êle voltou-se e, por um segundo, quase não pôde reconhecê-la. Francamente, esperara vê-la nua. Mas Júlia não estava nua. Operara uma transformação muito mais surpreendente. Pintara o rosto.

Devia ter ido a uma loja do bairro proletário e comprado um jôgo completo de cosmética. Passara baton forte nos lábios, ruge nas faces, pó de arroz no nariz; até havia, em tôrno dos olhos, um toque de tinta que os realçava. A maquilagem não fôra bem feita, mas nesse particular Winston não tinha grandes exigencias. Não havia nunca visto ou imaginado uma mulher do Partido usando cosméticos. Era espantosa a melhora do seu aspecto. Com uns retoques de côr aqui e ali Júlia não apenas se fizera muito mais bonita como, sobretudo, mais feminina. O cabelo curto e o macacão masculinizante apenas davam destaque a êsse efeito. Quando a tomou nos braços, uma onda de violeta sintética lhe invadiu as narinas. Lembrou-lhe a semi-escuridão de uma cozinha no sub-solo e a bôca cavernosa de uma mulher. Era o mesmo cheiro; mas não importava.

- E perfume, também!

- Sim, querido. Perfume também! E sabes o que vou trazer da próxima vez? Vou arranjar um vestido de verdade, vestido de mulher, não sei ainda onde, e vou usá-lo em vêz destas calças horrorosas. E vou usar meias de seda e sapatos de salto alto! Neste quarto serei mulher, não uma militante do Partido!

Jogaram a roupa   para o lado e se aboletaram na vasta cama de  mogno. Era a primeira vez que êle se despia de todo em presença dela. Até então tivera muita vergonha do corpo pálido e magro, das varizes saltadas na barriga da perna e  a mancha acima do tornozelo. Não havia lençóis, porém o  cobertor sôbre o qual se haviam deitado era poído e liso, o tamanho e a elasticidade da cama os encheram de espanto.

- Com certeza está cheia de percevejos, mas que importa? - disse Júlia. Não se viam mais camas de casal, excepto na casa dos proles. Winston algumas vezes dormira numa, na infância. Júlia jamais, tanto quanto podia se lembrar.

Dali a pouco adormeceram. Quando Winston acordou os ponteiros do relógio indicavam quase nove. Não se mexeu, porque Júlia estava dormindo com a cabeça apoiada na curva do braço dêle. A maior parte da maquilagem se transferira para a cara dêle e o travesseiro, porém uma mancha de ruge ainda realçava a beleza das maçãs do rosto de Júlia. Um raio amarelo do sol poente atravessava oblíquo os pés da cama e iluminava a lareira, onde fervia ruidosamente a água da caçarola. No pátio, a mulher se calara, porém débeis gritos de crianças ainda flutuavam no ar, vindos da rua.

Winston ficou a meditar vagamente se no passado abolido fôra normal dormirem numa cama assim, na fresca de uma noite de verão, um homem e uma mulher sem roupa, fazendo o amor quando quisessem, falando do que bem entendessem, sem sentir nenhuma obrigação de levantar, simplesmente largados no leito ouvindo os ruidos pacíficos lá de fora. Não era possível que tivesse havido uma era em que tais coisas fossem comuns. Júlia acordou, esfregou os olhos e ergueu-se num cotovelo, para olhar o fogareiro.

- Metade da água evaporou - disse ela. Daqui a um minuto levanto e faço café. Ainda temos uma hora. A que horas cortam a luz no teu prédio?

- Às vinte e três e trinta.

- Na minha hospedaria às vinte e três. Mas precisas chegar mais cedo porque...  Ei! Vai-te embora, bicho imundo!

Ela de repente enredou-se na cama, apanhou um sapato do chão e atirou-o com fôrça a um canto, com um gesto vigoroso, juvenil, como êle a vira fazer, jogando o dicionário em Goldstein, aquela manhã, durante os Dois Minutos de ódio.

Que foi? Um rato. Mostrou o focinho ali naquele buraco do rodapé. Estás vendo o buraco? Preguei-lhe um bom susto.

- Ratos! - murmurou Winston. - Neste quarto!

- Andam por tôda parte - disse Júlia, indiferente, tornando a deitar-se. - Vivem até na cozinha da pensão. Alguns bairros de Londres pululam de ratos. Sabias que atacam criancinhas? Pois é, atacam. Em algumas dessas ruas, uma mulher não tem coragem de deixar um filho sózinho dois minutos. São os grandões, pardos, os piores. E o mais horrível é que -os brutos...

- Chega! - implorou Winston, cerrando os olhos.

- Querido! Estás tão pálido? Que aconteceu? Tens nojo de ratos?

- De todos os horrores do mundo... um rato! Ela apertou-se contra êle e enrolou as pernas e os braços nele, como se para tranquilizá-lo com o calor de seu corpo. Êle não reabriu os olhos imediatamente. Por alguns momentos tivera a sensação de voltar a um pesadelo que se repetia ciclicamente na sua vida. Era sempre a mesma coisa. Estava parado diante duma muralha de trevas, e do outro lado da muralha havia algo insuportável, algo demasiado horrível para se fazer face. No sonho, a sua sensação mais profunda era sempre de auto-engano, porque de fato não sabia o que havia atrás da muralha de treva. Com um esfôrço fatal, como se arrancasse um pedaço do próprio cérebro, poderia ter trazido o mistério à luz. Mas sempre acordava sem descobrir o que era: de certo modo, porém, ligava-se com o que dizia Júlia quando a interrompera.

- Desculpa - pediu êle. - Não é nada. É que não gosto de ratos e pronto.

- Não te preocupes, querido, não deixarei que os bicharocos entrem aqui. Vou calafetar o buraco com aniagem, antes de sairmos. E da próxima vez trago reboco e tapo o orifício direitinho.

já fôra meio esquecido o instante negro de pânico. Sentindo-se ligeiramente envergonhado de si mesmo, êle sentouse, encostando na guarda da cama. Júlia saltou, vestiu o macacão e fez café. O cheiro que se elevou da caçarola era tão poderoso e inebriante que êles fecharam a janela, não fosse alguém senti-lo e começar a especular. Ainda melhor que o sabor do café era a textura sedosa que lhe dava o açúcar, de que Winston quase esquecera após tantos anos de sacarina. Com a mão no bolso e segurando uma fatia de pão com geléia na outra, Júlia passeou pelo quarto, dando olhadas indiferentes à estante de livros, indicando a melhor maneira de consertar a mesa dobradiça, atirando-se na velha poltrona estofada para ver se era confortável, e examinando o absurdo relógio de doze horas com uma espécie de chacota tolerante. Levou para a cama o pêso de papéis, para examiná-lo na luz melhor. Êle tomou-o, fascinado, como sempre, pelo aspecto macio, de água de chuva, do vidro secular.

- Que é isto? - indagou Júlia.

- Não creio que seja nada... quer dizer, não creio que tenha servido para nada. É por isso que gosto dêle. É um pedacinho de história que se esqueceram de alterar. É uma mensagem de cem anos atrás, se ao menos soubéssemos lê-la.

- E aquela gravura ali - Júlia indicou com a cabeça o quadro na parede oposta - também tem cem anos de idade?

- Mais. Talvez duzentos.     Não se sabe. Hoje em dia é impossível descobrir a idade de qualquer coisa.

Ela foi espiá-la.

- Foi aqui que o bruto meteu o focinho - disse, dando um chute no rodapé, logo abaixo do quadro. - Que lugar é êsse? Já vi essa casa.

- É uma igreja, ou foi uma igreja. Chamava-se S. Clemente dos Dinamarqueses. - O fragmento de cantiga que o sr. Charrington lhe ensinara voltou-lhe à memória e êle acrescentou, quase com saudade: - Laranjas e limões, dizem os sinos de S. Clemente!

Para sua imensa surpresa, Júlia continuou:

- Me deves três vinténs, dizem os sinos de S. Martinho,

Quando me pagarás? dizem os sinos de Old Bailey... Não me lembro como é que continua. Só sei que acaba assim: Aí vem uma luz para te levar para a cama. Aí vem um machado para te cortar a cabeça!

Pareciam santo e senha. Mas devía haver outro verso depois de "os sinos de Old Bailey." Talvez conseguisse arrancá-lo da lembrança do sr. Charrington, se o espicaçasse bem.

- Quem te ensinou isso?

- Meu avô. Costumava cantar-me essa cantiga quando eu era menina. Foi vaporizado quando eu tinha oito anos... ou pelo menos desapareceu. O que será limão? -acrescentou, inconsequente. - Já vi laranja. É uma espécie de fruta redonda, amarela, com casca grossa.

- Eu me lembro do limão. Era bem comum até 1950 e pouco. Era tão azedo que só de cheirar a gente ficava com a bôca amarga.

- Aposto que êsse quadro tem bichos por trás - disse Júlia. - Um dia dêstes arranco-o daí e dou-lhe uma boa limpadela. Acho que já é hora de irmos embora. Preciso tirar esta tinta da cara.  Que chatura! Depois tiro o baton do teu rosto.

Winston só levantou   dali a uns minutos. O quarto escurecia. Voltou-se para     a luz e ficou examinando o pêso de papéis. O que lhe oferecia inexaustível interêsse não era o fragmento de coral, porém o interior do vidro em si. Tinha tremenda profundidade e no entanto era quase transparente como o ar. Como se a superfície do vidro fosse a abóbada celeste, contendo um pequenino mundo, completo com sua atmosfera. Winston tinha a impressão de poder penetrá-lo, e que de fato estava nele, junto com a cama de mogno e a mesa dobradiça, o relógio, a gravura em aço e o próprio pêso de papéis. O pêso de vidro era o quarto em que estava, e o coral era a vida de Júlia e a dêle, fixadas para a eternidade no coração do cristal.

13

Syme desaparecera. Um dia, faltou ao trabalho: alguns levianos comentaram sua ausência. No dia seguinte ninguém mais falou dêle. No terceiro dia, Winston foi ao vestíbulo do Departamento de Registro, examinar o indicador geral. Um dos avisos era uma lista impressa de membros do Comité de Xadrez, do qual Syme fizera parte. Tinha quase exatamente o mesmo aspecto que antes - nada fôra riscado -mas faltava um nome. Bastava. Syme deixara de existir: nunca existira.

Fazia um calor infernal. No labirinto ministerial, as salas sem janelas, com ar condicionado, tinham temperatura normal, mas lá fóra as calçadas assavam os pés da gente, e era um horror o mau cheiro dos subterrâneos na hora de maior tráfego. Iam a pleno vapor os preparativos para a Semana do ódio, e o pessoal de todos os ministérios trabalhava extraordinário. Passeatas, comícios, paradas militares, conferências, exposições de bonecos de cera, sessões cinematográficas, programas de teletela, era preciso organizar tudo; era preciso montar palanques, fazer efígies, inventar lemas, escrever canções, circular boatos, falsificar fotos. Os colegas de Júlia, no Departamento de Ficção, haviam suspendido a produção de novelas e estavam redigindo uma série de panfletos de atrocidades. Winston, além do seu serviço regular, passava longas horas, todos os dias, examinando exemplares atrasados do Times, alterando e embelezando tópicos que seriam citados nos discursos. Tarde da noite, quando bandos de proles desordeiros vagabundeavam pelas ruas, a cidade tinha um ar curiosamente febril. As bombasfoguetes caíam com maior frequência e às vezes havia, na distância, enormes explosões, que ninguém sabia explicar, e a respeito das quais corriam cabeludos boatos.

A nova toada que seria prefixo musical da Semana do ódio (Canção do Ódio, era o seu título) já fôra composta e era tocada incessantemente nas teletelas. Tinha um ritmo selvagem, de latido, que não podia exatamente ser chamado de música, e parecia o rufar de um tambor. Entoada por centenas de vozes, ao som de passos em marcha, era aterrorizante. Os proles a haviam adotado e nas ruas, à noite, competia com a sempre popular "Foi apenas uma fantasia desesperada". Os filhos dos Parsons a tocavam, a qualquer hora da noite ou do dia, com um pente e um pedaço de papel higiênico. As noites de Winston estavam mais ocupadas que nunca. Bandos de voluntários, organizados por Parsons, preparavam a rua, para a Semana, cosendo bandeiras e faixas, pintando cartazes, fixando paus de bandeira nos telhados e arriscando o pescoço para esticar fios através da rua, para suster as faixas. Parsons gabava-se de que só a Mansão Vitóría exibiria quatrocentos metros de fita agaloada. Sentia-se no seu elemento e andava alegre que só um periquito.

O calor e o trabalho manual lhe haviam dado pretexto para usar shorts e camisa aberta. Andava por tôda parte, empurrando, puxando, serrando, martelando, improvisando, alegrando todo mundo, incitando os camaradas com exortações e soltando, de cada dobra do corpo, uma nuvem inesgotável de cheiro acre de suor.

De repente, aparecera por tôda Londres um novo cartaz. Não tinha legenda, e representava simplesmente a monstruosa figura de um soldado eurasiano, de três ou quatro metros de altura, avançando com enormes botas e uma cara mongólica sem expressão, apontando uma metralhadora portátil apoiada no quadril. De onde quer que se olhasse o cartaz, o cano da metralhadora, ampliado pela perspectiva, parecia apontar para a gente. O cartaz enchera todos os espaços livres, tornando-se mais numeroso do que os retratos do Grande Irmão. Os proles, normalmente apáticos em relação à guerra, estavam sendo incitados a um dos cíclicos frenesis de patriotismo. Como que para se harmonizar com a atitude geral, as bombas-foguetes matavam mais gente do que de costume. Uma caiu em Stepney, num cinema cheio, sepultando várias centenas de vítimas nas ruinas. Tôda a população da vizinhança saiu à rua, para um longuíssimo cortejo fúnebre, que durou horas e foi, na verdade, um comício de indígnação. Outra bomba caiu sôbre um terreno baldio usado como parque infantil, e fez picadinho de várias dezenas de crianças. Houve outras demonstrações de raiva, Goldstein foi queimado em efígie, centenas de cartazes do soldado eurasiano foram rasgados e jogados nas fogueiras, e uma porção de lojas foram pilhadas, na confusão; correu então um boato de que os espiões estavam dirigindo as bombasfoguete por meio de ondas de rádio, e um velho casal, suspeito de ser de origem estrangeira, teve a casa incendiada e morreu sufocado.

No quarto em cima da loja do sr. Charrington, quando conseguiam ir lá, Júlia e Winston ficavam deitados, lado a lado, na cama debaixo da janela, nús por causa do calor. O rato não voltara mais, porém os percevejos se haviam multiplicado nefandamente. Não parecia lhes importar. Sujo ou limpo, o quarto era o paraíso. Assim que chegavam, polvilhavam tudo com pimenta comprada no mercado negro, tiravam a roupa e faziam o amor com o corpo suado, adormeciam e despertavam para verificàr que os percevejos haviam reagido e se agrupavam para o contra-ataque.

Durante o mês de junho encontraram-se quatro, cinco, seis... sete vezes. Winston abandonara o hábito de beber gin a tôda hora. Parecia não precisar mais dêle. Engordara, a variz ulcerada sarára, deixando apenas uma nódoa parda na pele, acima do tornozelo; não sofria mais de acessos de tosse de madrugada. O processo da vida cessara de ser intolerável, e não sentia mais ímpetos de fazer caretas para a teletela nem de gritar nomes feios. Agora que possuíam um esconderijo seguro, quase um lar, já não lhes parecia tão mau encontrar-se freqÜentemente, e apenas por algumas horas. O que importava era a existência do quarto sôbre a loja do antiquário. Saber que estava lá, inviolado, era quase o mesmo que estar nele. O quarto era um mundo, uma redoma do passado, onde sobreviviam animais extintos. O antiquário, pensava Winston, era outro animal extinto. Geralmente se detinha uns minutos para conversar com êle, antes de subir. O velho parecia sair raramente, ou nunca, e tampouco parecia ter fregueses. Levava uma existência fantasmal entre a lojinha escura e uma cozinha ainda menor onde preparava as refeições e que continha, entre outras coisas, um gramofone incrivelmente antigo, com uma enorme trompa. Parecia contente de poder conversar. Perambulando no meio do seu estoque de frioleiras, com o nariz comprido, os óculos espessos, e os ombros arcados metidos num paletó de veludo, tinha sempre um ar vago mais de cole-

cionador de que de mercador. Com desbotado entusiasmo acariciava uma velharia insignificante - uma tampa de porcelana para garrafa, um pedaço pintado de caixa de rapé, um medalhão de pechisbeque contendo um anel de cabelo de alguma criança morta - sem nunca pedir a Winston que comprasse nada, mas apenas que admirasse. Conversar com êle era como ouvir uma caixa de música já gasta. Tirara dos cantos da memória outros fragmentos de cançonetas esquecidas. Havia uma que falava de vinte e      quatro gralhas, outra a respeito duma vaca de chifre partido, e ainda outra sôbre a morte do pobre pintarroxo.

- Pensei que o sr. poderia se interessar - dizia, com uma risadinha de desculpas, sempre que apresentava novo fragmento. Mas nunca podia lembrar mais do que alguns versos de cada canção.

Winston e Júlia sabiam - de modo que nunca baniam do espírito - que não podia durar muito o que estava acontecendo. Havia ocasiões em que a morte vindoura parecia tão palpável quanto a cama que ocupavam, e então se agarravam com uma espécie de desesperada sensualidade, como uma alma danada se agarra ao último bocado de prazer quando faltam apenas cinco minutos para soar a hora. Mas havia também ocasiões em que tinham a ilusão não apenas de segurança como de permanência. Tinham a impressão de que, enquanto estivessem naquele quarto, nenhum mal lhes poderia advir. Chegar até lá era difícil e perigoso, mas o quarto era um santuário. Era como se Winston olhasse dentro do pêso de papel, com sensação de ser possível penetrar aquele mundo de vidro, e que, uma vez dentro dêle, o tempo se ímobilizaria. Com frequencia se entregavam a sonhos escapistas conscientes. A sorte haveria de ajudá-los, indefinídamente, e continuariam a aventura até o fim da vida natural. Ou Katherine morreria e, com auxílio de manobras sutis, Winston e Júlia conseguiriam casar. Ou então se suicidariam juntos. Ou desapareceriam, alterando as fisionomias de modo que ninguém os reconhecesse, aprenderiam a falar com sotaque proletário, arranjariam emprêgo numa fábrica e viveriam até o fim numa ruela obscura. Tudo tolice, como bem sabiam. Na verdade, não havia fuga. Não tinham intenção de executar nem o único plano praticável, o suicidio. Viver dia a dia, semana a semana, esticando um presente que não tinha futuro, parecia um instinto irresistível, como os nossos pulmões sempre procuram inspirar, enquanto existe ar.

Às vezes, falavam também de se dedicar à rebelião ativa contra o Partido, sem a menor noção de como dar o primeiro passo. Mesmo que a fabulosa Fraternidade existisse, havia o problema de encontrar o caminho dos seus quadros. Contou a Júlia a estranha intimidade que existia, ou parecia existir, entre êle e O'Brien, e o impulso que às vezes sentia, de comparecer simplesmente à presença de O'Brien, anunciar-se como inimigo do Partido e pedir-lhe auxílio. Curioso que isto não parecesse a Júlia nada de impossivelmente audacioso. Estava acostumada a julgar as pessoas pela fisionomia, e lhe parecia natural que Winston acreditasse e confiasse em O'Brien, por causa de uma simples olhada. Além do mais, parecia-lhe ponto pacífico que todo mundo, ou quase, odiava secretamente o Partido e haveria de quebrar suas leis, se acreditasse poder fazê-lo em segurança. Mas recusava-se a acreditar que existisse, ou pudesse existir, oposição generalizada, organizada. As caraminholas a respeito de Goldstein e o seu exército clandestino, dizia ela, não passavam de besteiras que o Partido inventara, para servir aos seus propósitos, e que os militantes fingiam crer. Vezes sem conta, em comícios do Partido e demonstrações espontâneas, ela gritara a plenos pulmões, pedindo a execução de gente cujos nomes nunca ouvira e em cujos supostos crimes não acreditava de modo algum. Quando se haviam realizado os julgamentos públicos, ocupara o seu lugar nos destacamentos da Liga da Juventude que circundavam o tribunal, de manhã à noite, entoando ritmicamente "Morte aos traidores!" Durante os Dois Minutos de ódio sempre superava os outros nos insultos a Goldstein. Entretanto tinha idéia muito obscura de quem fosse Goldstein e que doutrinas pregava. Crescera depois da Revolução e era moça demais para se lembrar das batalhas ideológicas de 1950 a 1970. Era coisa que não podia imaginar um movimento político independente: e depois, o Partido era invencível. Sempre existiria, e seria sempre o mesmo. Só era possível rebelar-se contra êle por desobediência secreta ou, no máximo, por atos isolados de violência, como assassinar alguém, dinamitar alguma coisa.

De certo modo era muito mais alerta do que Winston, e muitíssimo menos suscetível à propaganda do Partido. Uma vez, quando êle mencionou a guerra contra a Eurásia, a propósito de qualquer coisa, ela o espantou dizendo, com tôda

a naturalidade que, na sua opinião, não havia guerra alguma. As bombas-foguete que caíam diàriamente sôbre Londres eram provàvelmente disparadas pelo govêrno da própria Oceania, "só para amedrontar a turma." Era uma idéia que jamais ocorrera a Winston. Também provocou -uma espécie de inveja nele contando-lhe que durante os Dois Minutos de ódio tinha grande dificuldade para não estourar em gargalhadas. Porém só punha em dúvida os ensinamentos do Partido quando a interessavam pessoalmente. No mais, estava disposta a aceitar a mitologia oficial, simplesmente porque a diferença entre verdade e mentira não lhe parecia importante. Acreditava, por exemplo, e porque o aprendera na

escola, que o Partido inventara o aeroplano. (Quando êle estava na escola, recordava Winston, antes de 1960, o Partido só afirmava ter inventado o helicóptero; doze anos mais tarde, no tempo de Júlia, já reclamava o avião; dali a uma geração com certeza se apossaria da máquina a vapor.) E quando êle disse que os aviões existiam antes dêle nascer, e muito antes da Revolução, o fato pareceu a Júlia totalmente sem interêsse. Afinal, que importava o inventor dos aeroplanos? Foi choque maior para êle descobrir, por um comentário passageiro, que ela não se lembrava de que, quatro anos atrás, a Oceania estivera em guerra com a Lestásia, e em paz com a Eurásia. Era verdade que considerava a guerra uma farça; mas aparentemente não notára nem a mudança do nome do inimigo. "Pensei que sempre estivéssemos em guerra com a Eurásia," exclamou, evasivamente. Isso o amedrontou um pouco. A invenção dos aeroplanos sucedera antes de Júlia nascer, mas a reviravolta da guerra ocorrera havia apenas quatro anos, quando já era adulta. Discutiu com ela durante um quarto de hora talvez. No fim, conseguiu forçar-lhe a memória a recordar vagamente que, outrora, o inimigo fôra a Lestásia e não a Eurásia. Todavia, isso não lhe parecia significativo.

- Que importa? - indagou, impaciente. - É sempre uma horrível guerra depois da outra, e a gente sabe que o noticiário é todo falso mesmo.

Às vezes êle lhe falava do Departamento de Registro e das impudentes falsificações que lá executava. Essas coisas não pareciam horrorizá-la. Não sentia o abismo abrindo-se aos seus pés, ao pensar nas mentiras que se transformavam em verdades. Êle contou-lhe a história de Jones, Aaronson e Rutherford, e do momentoso papelzinho que um dia tivera entre os dedos. Não a impressionou grandemente. Na verdade, a princípio, ela nem compreendeu a situação.

- Eram teus amigos?

- Não, nunca os conheci. Eram membros do Partido Interno. Além disso, eram muito mais velhos do que eu.

Pertênciam ao passado, vinham de antes da Revolução. Eu mal os conhecia de vista.

- Então por que te preocupas? Não vivem matando gente o tempo todo?

Tentou fazê-la compreender.

- Foi um caso excepcional. Não foi apenas um assassínio. Percebes que o passado, a partir de ontem, foi abolido? Se sobrevive nalguma parte, é em alguns objetos sólidos, sem palavras ligadas a êle, como naquele pedaço de vidro. Já não sabemos quase nada sôbre a Revolução e os anos anteriores à Revolução. Todos os registros foram destruidos ou falsificados, todo livro reescrito, todo quadro repintado, tôda estátua, rua e edifício rebatizado, tôda data alterada. E o processo continua, dia a dia, minuto a minuto. A história parou. Nada existe, excepto um presente sem-fim no qual o Partido tem sempre razão. Eu sei, naturalmente, que o passado é falsificado, mas jamais me seria possível prová-lo, mesmo sendo eu o autor da falsificação. Depois de feito o serviço, não sobram provas. A única prova está dentro da minha cabeça, e não sei com certeza se outros seres humanos partilham minhas recordações.        Apenas naquele caso, em minha vida tôda, possuí prova real, concreta, depois do acontecimento... anos depois.

- E de que adiantou?

- Não adiantou nada, porque a joguei fóra uns minutos depois. Porém se a mesma coisa acontecesse hoje, eu guardaria a prova.

- Ora, eu não! Estou disposta a correr riscos, mas só por coisas que valham a pena, não por causa de pedacinhos de papel. Que poderias fazer com o recorte, se o guardasses?

- Pouca coisa, talvez. Mas era prova. Poderia ter semeado algumas dúvidas, aqui e ali, supondo que ousasse mostrá-lo a alguém. Não creio que possamos alterar coisa alguma nesta vida. Mas posso imaginar pequenos nódulos de resistência brotando aqui e ali... pequenos grupos de gente que se reune, e vão crescendo, e deixando algumas notas, de modo que a geração seguinte possa continuar a obra.

- Não estou interessada na próxima geração, querido. Estou ínteressada em nós.

- És rebelde só da cintura para baixo - disse êle. Ela achou esta frase excepcionalmente jocosa e atirou os braços em tôrno dêle, deliciada.

Tampouco tinha Júlia o menor interêsse pelas ramificações da doutrina do Partido. Sempre que êle começava a falardos princípios do Ingsoc, duplipensar, a mutabilidade do passado e a negação da realidade objetiva, e a usar palavras de Novilíngua, ela ficava aborrecida, confusa, e dizia não ter jamais prestado atenção a essas coisas. Sabia que era tudo lixo, portanto para que se preocupar com êle? Sabia quando aplaudir e quando vaiar, e era tôda a ciência de que precisava. Quando êle persistia em falar de tais assuntos, Júlia tinha o hábito desconcertante de adormecer. Era uma dessas pessoas que podem adormecer a qualquer momento, em qualquer posição. Falando com ela, Winston percebeu como era fácil aparentar ortodoxia, sem ter a menor noção do que fosse ortodoxia. De certo modo, o ponto de vista do Partido se impunha com mais êxito às pessoas incapazes de compreendê-lo. Aceitavam as mais flagrantes violações da realidade porque jamais percebiam inteiramente a enormidade do que se lhes exigia, e não estavam suficientemente interessadas para observar o que acontecia. Graças à falta de compreensão permaneciam sãs de juizo. Apenas enguliam tudo, e o que enguliam não lhes fazia mal, porque não deixava resíduo, do mesmo modo que um grão de milho passa, sem ser digerido, pelo corpo de uma ave.

14

Por fim acontecera.    Chegara a esperada mensagem. Pareceu-lhe que a vida tôda estivera esperando aquilo.

Caminhava pelo longo corredor do Ministério e estava quase no local onde Júlia lhe metera o bilhete na mão quando percebeu que o seguía alguém, mais encorpado que êle. Essa pessoa, fosse quem fosse, tossiu um pouco, como um prelúdio à fala. Winston parou abruptamente e voltou-se. Era O'Brien.

Afinal encontravam-se face a face, e pareceu-lhe que o seu único impulso era fugir. O coração martelava furiosamente. Não conseguiria falar. O'Brien, todavia, continuara no mesmo movimento, colocando a mão por um momento no braço de Winston, de modo que agora caminhavam lado a lado. Começou a falar com a solene cortesia característica que tanto o diferenciava da maioria dos membros do Partido Interno.

- Tinha esperança de poder-te falar - disse. - Li outro dia no Times um teu artigo em Novilíngua. Tens um interesse de erudito na Novilíngua, não é?

Winston recuperara um pouco do seu auto-controle.

- Erudito, não. Sou um mero amador. Não é o meu forte. Nunca tive nenhuma interferência na construção do idioma.

- Mas o escreves com muita elegância - insistiu O'Brien.

- E não é apenas minha opinião. Recentemente, conversei com um amigo teu, que é um perito. No momento, foge-me da memória o nome dêle.

O coração de Winston tornou a pular, doloridamente. Era inconcebível que aquelas palavras não fossem referência a Syme. Porém Syme não estava apenas morto, fôra abolido, era uma impessoa. Seria mortalmente perigoso fazer-lhe

uma referência identificável. A observação de O'Brien deveria, evidentemente, ser tomada como sinal, código. Dividindo uma pequena crimidéia, os dois tornavam-se cúmplices. Tinham continuado pelo corredor, mas de repente O'Brien se deteve. Com a amistosidade curiosa e desarmante que sempre lograva comunicar ao gesto, recolocou os óculos no nariz. E continuou:

- O que eu de fato queria te dizer, a propósito do artigo, é que notei o uso de duas palavras obsoletas. Que se tornaram obsoletas muito recentemente. Já viste a décima edição do Dicionário de Novilíngua?

Não. Não creio que já tenha sido publicado. No Departamento de Registro ainda usamos a nona.

- Creio que a décima edição só será publicada daqui a alguns meses. Mas foram preparados alguns exemplares especiais, de amostra. E eu recebi um. Talvez gostasses de examiná-lo?

- Apreciaria imenso - disse Winston, percebendo imediatamente aonde levava a conversa. Algumas novidades são muito engenhosas. A redução do número de verbos, por exemplo... creio que gostarás de ver isso. Vejamos, mando-te um mensageiro te entregar o dicionário? O pior é que invariàvelmente me esqueço de tudo. O melhor, talvez, seria ires buscá-lo no meu apartamento, à hora que quisesses. Espera, que já te dou meu enderêço. Estavam parados diante duma teletela. Um tanto distraido, O'Brien procurou em dois bolsos e dêles tirou um pequeno canhenho de capa de couro e uma lapiseira-tinta, de ouro. Logo abaixo da teletela, em posição tal que pudesse ser lido por quem estivesse de plantão no outro extremo do fio do aparelho, êle rabiscou um enderêço, arrancou a página e deu a Winston.

- Em geral estou em casa à noite - disse êle. - Se não estiver, minha empregada te entregará o Dicionário.

E afastou-se, deixando Winston com o pedaço de papel que, desta vez, não havia necessidade de esconder. Não obstante, decorou-o cuidadosamente e algumas horas mais tarde jogou-o no buraco da memória, com um maço de outros papéis.

Tinham conversado um par de minutos, no máximo. O episódio só podia ter um significado. Fôra engendrado como meio de dar a Winston o enderêço de O'Brien. Isto era necessário porque, excepto pela pergunta direta, não era nunca possível descobrir onde morava uma pessoa. Não havia guias nem indicadores de espécie alguma. "Se queres me ver, podes me encontrar aqui," era o sentido da mensagem de O'Brien. Talvez até houvesse um recado oculto no Dicionário. Fosse como fosse, uma coisa era certa. A conspiração com que sonhava existia, e êle alcançara a sua periferia.

Sabia que mais cedo ou mais tarde obedeceria ao chamado de O'Brien. Talvez amanhã, talvez após longa espera... não tinha certeza. O que estava acontecendo era apenas o desenvolvimento de um processo iniciado muitos anos antes. O primeiro passo   fôra um pensamento secreto, involuntário, o segundo fôra o início do diário. Passara das idéias às palavras, e agora das palavras aos atos. O último passo era algo que teria lugar no Ministério do Amor. Êle o aceitara. O fim estava contido no comêço. Mas era assustador; ou mais exatamente, era um prenúncio de morte, como se estivesse menos vivo. Até mesmo falando com O'Brien, um tiritar de frio se apossara do corpo de Winston, quando o significado das palavras calou. Tivera a sensação de pisar na terra úmida de um túmulo, e não era consôlo algum saber que o túmulo lá estava, à sua espera.

15

Winston acordara com os olhos rasos dágua. Júlia rolou sonolenta para êle, murmurando algo que poderia ser Que foi?

Sonhei - começou êle. E calou-se. Era complexo demais para traduzi-lo em palavras. Havia o sonho em si e havia, ligada a êle, uma lembrança consciente, que penetrara no seu espírito alguns segundos depois de acordar.

Deixou-se ficar de costas, olhos fechados, ainda embebido da atmosfera do sonho. Era um vasto sonho luminoso em que tôda a sua vida parecia estirar-se diante dêle como uma paisagem numa tarde de verão, depois da chuva. Tudo acontecera dentro do pêso de papel, mas a superfície do vidro era a abóbada celeste, e dentro da abóbada estava tudo inundado de luz clara e suave na qual se podia enxergar distâncias intermináveis. O sonho também estava incluido - com efeito, de certo modo consistira nisso - por um gesto do braço feito por sua mãe, e repetido trinta anos mais tarde pela judía que vira no cinema, tentando proteger o filhinho contra as balas, antes que os helicópteros fizessem explodir os dois.

- Sabes - perguntou - que até êste momento eu acreditava ter a'ssassinado minha mãe?

- Por que a assassinaste? - indagou Júlia, quase a dormir.

- Não a assassinei. Não fisicamente. No sonho, recordara-se da sua última visão da mãe, e alguns minutos após despertar havia voltado à mente um bando de pequenos acontecimentos com ela relacionados. Era uma lembrança que êle devia ter deliberadamente excluido da consciência durante muitos anos. Não tinha certeza da data, mas não podia ter menos de dez anos, talvez doze, quando sucedera.

O pai sumira havia algum tempo; quanto tempo antes, não podia precisar. Lembrava-se melhor das circunstâncias agoniadas da época: os pânicos periódicos dos ataques aéreos, a corrida às estações do trem subterrâneo, as pilhas de escombros por tôda parte, as proclamações ininteligíveis pregadas nas esquinas, os bandos de rapazes todos de camisa da mesma côr, as filas enormes diante das padarias, o metralhar intermitente na distância - e acima de tudo, o fato de nunca haver o bastante para comer. Lembrava-se de longas tardes passadas com outros meninos remexendo em latas de lixo e montes de refugo, catando os talos de folhas de repolho, cascas de batatas, às vezes até pedaços de côdea de pão velho que limpavam cuidadosamente das cinzas. e também da espera da passagem de caminhões que faziam determinado itinerário, carregando comida para o gado e que, sacolejando nos trechos de mau calçamento, às vezes derrubavam fragmentos de torta de algodão.

Quando o pai desapareceu, sua mãe não demonstrou nenhuma surpresa ou mágua violenta, porém uma repentina mudança a acometeu. Parecia ter perdido a fibra. Era evidente, até para Winston, que ela esperava algo que deveria acontecer. Fazia todo o necessário - cozinhava, lavava, remendava, fazia a cama, varria, espanava - sempre muito devagar e com uma curiosa economia de gestos supérfluos, como uma figura criada por um artista e que se movesse por si mesma. O corpo grande e bem proporcionado pareceu cair num marasmo natural. Durante horas a fio ficava sentada quase imóvel na cama, cuidando da filhinha, uma criança miúda, enfermiça, muito calada, de dois ou três anos, e a quem a magreza dera feições de símio. De raro em raro, tomava Winston nos braços e apertava-o contra o seio longo tempo, sem dizer nada. E êle percebia, apesar da pouca idade e do seu egoismo, que esta atitude era ligada a uma coisa imencionável que não tardaria a ocorrer.

Lembrava-se do quarto em que moravam, um aposento escuro, abafado, que parecia cheio, pela metade, com uma cama de cabeceira branca. Na guarda da lareira havia um fogareiro a gás, e uma prateleira onde ficavam os gêneros. No patamar, fora do quarto, havia uma pia de louça marrom, comum a várias famílias. Lembrava-se do corpo estatuesco de sua mãe, inclinado sôbre o fogareiro, mexendo a caçarola.

Sobretudo lembrava-se da sua fome contínua, e das brigas encarniçadas e sórdidas às refeições. Perguntava a sua mãe, chocarreiramente, milhares de vezes, porque não havia mais comida, gritava e esbravejava com ela (recordava-se até dos tons de sua voz, que estava começando a mudar prematuramente e de vez em quando reboava de maneira especial), ou tentava uma nota patética e nasal, num esfôrço de ganhar mais que o seu quinhão. E ela estava disposta a darlhe mais que o quinhão. Considerava natural que êle, "o rapaz", recebesse a maior porção; por mais que lhe desse, porém, êle invariàvelmente pedia mais. Em cada refeição ela lhe pedia que não fosse egoista e lembrasse que a irmãzinha doente também precisava de alimento, mas era inútil. Êle chorava de raiva quando a mãe parava de servi-lo, tentava arrancar-lhe das mãos a caçarola e a colher, furtava bocados do prato da irmã. Sabia que assim as condenava à fome, mas não podia evitá-lo; sentia-se até com direito a agir dessa forma. A fome clamorosa que tinha na barriga parecia justificá-lo. Entre as refeições, se a mãe não vigiasse, êle constantemente pilhava as magras provisões da prateleira.

Um dia, foi distribuida uma ração de chocolate. Havia semanas ou meses que não se via chocolate. Winston lembrava-se com muita clareza daquele precioso pedacinho de chocolate. Era uma barra de duas onças (naquele tempo ainda se falava em onças) para os três.' Evidentemente, devia ser dívidida em três partes iguais. De repente, como se ouvisse a voz de outrem, êle se ouviu exigindo, com voz grossa e forte, que lhe dessem a barra tôda. A mãe respondeu-lhe que não fosse guloso. Houve uma longa e incômoda discussão, que durou horas, com gritos, uivos, lágrimas, queixas, acordos. A irmãzinha, agarrada à mãe com as duas mãos, exatamente como um filhote de macaco, olhava-o com grandes olhos doridos. Por fim, a mãe quebrou a barra em quatro pedaços iguais, dando três a Winston e o último à menina. A garota apanhou e ficou a olhá-lo, feito água parada, talvez sem saber o que fosse. Winston observou-a um momento. Depois, com um bote repentino e célere, arrancou o pedaço de chocolate da mão da irmã e correu para a porta.

- Winston, Winston! - chamou sua mãe. - Volta e devolve o chocolate da tua irmã!

Êle parou, mas não voltou. Os olhos ansiosos de sua mãe o fixavam. Naquele momento ela estava pensando na coisa que êle não sabia o que fosse, mas que deveria acontecer. A menina, consciente de ter sido furtada, gemia dèbilmente. A mulher passou o braço em tôrno da filha e apertou-lhe o rosto contra o peito. Naquele gesto havia algo que revelou a Winston: sua irmã estava morrendo. Fez meia-volta e disparou escada abaixo, o chocolate a melar-lhe os dedos.

Nunca mais tornara a ver a mãe. Depois de devorar o chocolate, sentira-se um tanto envergonhado de si mesmo e ficara na rua várias horas, até a fome lhe indicar o caminho de casa. Quando chegou, a mãe desaparecera. Naquela época, isso já-se estava tornando normal. Nada sumira do quarto, excepto a mulher e a filha. Não tinham levado roupa alguma, nem mesmo o capote da mãe. Até aquele dia, Winston não sabia com certeza se ela estava morta ou não. Era perfeitamente possível que a tivessem apenas enviado a uma colonia correcional. Quanto à irmã, poderia ter sido mandada, como Winston, a um dos orfanatos surgidos em consequência da guerra civil; ou podia ter sido levada para o campo com sua mãe, ou meramente abandonada nalguma parte, para morrer.

O sonho ainda estava vívido no seu espírito, especialmente o gesto protetor do braço no qual parecia se conter todo o seu significado. Winston lembrou-se de outro sonho, de dois meses antes. Na posição exata em que sua mãe sentara na cama miseranda, de colcha branca, com a filha agarrada ao peito, ela aparecera no navio naufragado, bem abaixo dêle, e afundando cada vez mais, sempre a fitá-lo através da água escura.

Contou a Júlia a história do desaparecimento de sua mãe. Sem abrir os olhos, ela rolou sôbre si mesma e instalou-se em posição mais confortável.

- Eu te vejo como uma fèrinha diabólica, naquela época - disse ela, indistintamente. - Tôdas as crianças são féras.

- São, mas o importante da história... Pela sua respiração pausada tornou-se evidente que ela adormecera de novo. Êle gostaria de ter continuado falando da mãe. Não supunha, pelo que ainda se lembrava dela, que tivesse sido mulher fora do comum, e muito menos inteligente; e no entanto possuira uma espécie de nobreza, de pureza, simplesmente porque obedecia a cânones que eram seus próprios. Seus sentimentos eram dela mesma, e não

podiam ser alterados pelas circunstâncias externas. Não lhe ocorreria que um ato ineficaz se tornaria, por isso mesmo, sem sentido. Quando se ama alguém, ama-se, e quando não se tem nada mais para lhe dar, ainda se lhe dá amor. Acabado o chocolate; a mãe agarrara a menina. Era inútil, não adiantava nada, não produzia mais chocolate, não evitava nem a morte da menina nem a sua; mas parecia-lhe natural fazê-lo. A refugiada do navio    também cobrira o menininho com o braço, que não era mais defesa contra as balas do que uma folha de papel. O que o Partido fizera de terrível era persuadir os seus membros de que meros impulsos, meras sensações, não tinham importância, ao mesmo tempo que lhes roubava todo poder sôbre o mundo material. Uma vez no jugo do Partido, o que a pessoa sentisse ou não, o que fizesse ou deixasse de fazer, literalmente não fazia diferença. Acontecesse o que acontecesse, o indivíduo sumia, e nem êle nem seus atos eram jamais mencionados. Era banido do rio da história. E no entanto, aos cidadãos de apenas duas gerações atrás, isto não teria parecido importante, porque não tentavam alterar a história. Eram governados por lealdades particulares que não punham em dúvida. O que importava eram relações individuais, e podia ter valor em si um gesto completamente irrelevante, um abraço, uma lágrima, uma'palavra dita a um moribundo. De repente, ocorreu-lhe que os proles tinham continuado assim. Não eram leais a um partido, país ou ideologia, eram leais aos seus semelhantes. Pela primeira vez na vida não desprezou os proles nem pensou neles apenas como fôrça inerte que um dia ganharia vida e regeneraria o mundo. Os proles tinham continuado humanos. Não se haviam endurecido por dentro. Haviam conservado as emoções primitivas que êle próprio tivera de reaprender por esfÔrço consciente. E assim raciocinando êle se lembrou, sem ligação aparente, de como vira, havia algumas semanas, uma mão amputada na rua e como a chutara para a sargeta, como se fosse um talo de couve.

-   Os proles são seres humanos - disse êle, em voz alta.

- Nós não somos humanos.

-   Por que? - quis saber Júlia, que acordara outra Vez. Êle meditou uns instantes.

- Já te ocorreu que o melhor que temos a fazer é simplesmente ir embora daqui, antes que seja tarde demais, e nunca mais nos vermos?

- Sim, querido, já me ocorreu diversas vezes, Mas não, não vou sair, e pronto.

- Temos tido sorte - disse êle - mas não pode durar muito tempo. És jovem. Pareces normal e inocente. Se te afastas de gente como eu, podes viver mais cinquenta anos.

- Não. Já pensei em tudo. O que fizeres, eu faço também. E não te afobes. Tenho jeito para viver.

- Podemos ficar juntos mais seis meses... um ano...

não há maneira de saber. No fim, é certo que nos separem. Percebes como seremos solitários? Quando nos peguem, não haverá nada, literalmente nada, que possamos fazer um pelo outro. Se eu confessar, êles te fusilam, e se eu recusar confessar, te fusilam do mesmo modo. Nada que eu possa dizer ou fazer, ou proibir-me de dizer, te adiará de cinco minutos a hora da morte. Nem ao menos saberemos se o outro estará morto ou vivo. Ficaremos completamente inermes. A única coisa que importa é que não atraiçoemos um ao outro, embora nem isso faça a menor diferença.

- Se te referes à confissão, ah, isso confessaremos. Todo mundo sempre confessa. Não podes evitar. Êles torturam a gente.

- Não, não é confessar. Confissão não é traição. O que digas ou faças não importa. O que importa são os sentimentos. Se conseguirem me obrigar a deixar de te amar... isso seria traição.

Ela raciocinou.

- Isso não podem fazer. É a única coisa que não podem. Podem te fazer dizer« qualquer coisa. .. tudo... mas não podem te obrigar a acreditar. Não penetram na gente.

- Não - êle concordou, um pouco mais esperançado.

- É verdade. Não penetram na gente. Se podes sentir que vale a pena continuar humano, mesmo que isso não dê o menor resultado, terás vencido os torturadores.

Êle pensou na teletela com seu ouvido insone. Podiam espionar o indivíduo noite e dia, mas se êle não perdesse a cabeça ainda conseguia ludibriá-los. Com tôda a sua sagacidade, não tinham jamais conquistado o segrêdo de descobrir o que pensa outro ser humano.        Talvez isso fosse menos verdade quando o cídadão lhe caisse nas unhas. Não se sabia o que acontecia dentro do Ministério do Amor, mas era possível adivinhar:   torturas, drogas, delicados instrumentos que registravam    as reações nervosas do paciente, e o desgaste gradual pela   falta de sono, a solidão, o interro-

gatório persistente.  Pelo menos, seria impossível ocultar fatos. Podiam ser encontrados pela pergunta, e arrancados pela tortura. Mas se o objetivo era não tanto continuar vivo como continuar humano, que diferença poderia fazer, no fim? Não podiam alterar os sentimentos do indivíduo: nem êle próprio o consegue, mesmo que o deseje. Podiam desnudar, nos mínimos detalhes, tudo quanto houvesse feito, dito ou pensado; mas o imo do coração, cujo funcionamento é um mistério para o próprio indivíduo, continu  ava inexpugnável.

16

Haviam resolvido, por fim se haviam resolvido! A sala em que estavam era comprida e suavemente iluminada. A teletela fôra reduzida a um murmúrio; a maciez e espessura do tapete azul dava a impressão de se andar no veludo. No extremo da sala, O'Brien estava sentado a uma mesa, sob uma lâmpada de abajur verde, com um monte de papéis de cada lado. Nem se dignara levantar o olhar quando o criado introduziu Júlia e Winston.

O coração de Winston batia com tanta fôrça que duvidava poder falar. Haviam resolvido, haviam-se resolvido afinal, era tudo que conseguia pensar. Fôra ousadia ir à casa de O'Brien, e pura loucura chegar à sua porta com Júlia; embora fosse verdade que tivessem ido por caminhos diferentes apenas se encontrando diante da porta. Mas era preciso muita coragem e esfôrço nervoso para entrar num lugar dêsses. Só em ocasiões muito raras se viam por dentro as residências do Partido Interno, ou se visitava o bairro em que moravam os chefes. Tôda a atmosfera do enorme edifício de apartamentos, a riqueza e a vastidão de tudo, os cheiros fora do comum de boa comida e bom fumo, os elevadores silenciosos e incrivelmente rápidos, disparando para cima e para baixo, os criados de jaqueta branca, sempre apressados - era tudo intimidante. Embora Winston tivesse um bom pretexto de ali estar, a cada passo assombrava-o o medo de que um guarda de farda negra aparecesse de repente, ao dobrar uma esquina, exigisse seus papéis e o mandasse embora. O criado de O'Brien, porém, admitira os dois sem titubear. Era um homenzinho de cabelo escuro,paletó branco, cara losangular, inteiramente sem expressão, e que poderia passar por chinês. O corredor pelo qual os

guiou era atapetado, e tinha paredes creme, com rodapé branco, tudo imaculadamente limpo. Era de dar medo.

Winston não se lembrava de ter visto um corredor cujas paredes não fossem marcadas da sujeira do contacto de corpos humanos.

O'Brien tinha um pedaço de papel entre os dedos e parecia estudá-lo atentamente. O rosto largo, inclinado de modo que se podia ver a linha do naríz, parecia ao mesmo tempo formidável e inteligente. Dur  ante talvez vinte segundos êle continuou imóvel. Depois puxou o falascreve para perto e ditou um recado no jargão híbrido dos Ministérios: - Itens um vírgula cinco vírgula sete aprovados completos ponto sugestão contida item seis dupliplus ridícula quase crimidéia cancelar pontos incontinuar construtivo anteobtendo pluscompleto orçamento máquinas extracustos ponto fim mensagem.

Levantou-se deliberadamente da cadeira e aproximou-se dêles, sem ruido, andando pelo tapete espesso. Com as palavras em Novilíngua, parecia ter deixado para trás um pouco da sua atmosfera oficial, porém a sua catadura era mais fechada do que de costume, como se estivesse aborrecido com a interrupção. Ao terror que Winston já sentia misturou-se de repente um traço de embaraço comum. Pareceu-lhe perfeitamente possível que houvesse cometido um êrro estúpido. Na verdade que prova tinha de que O'Brien fosse um conspirador político? Nada, além de uma chispa no olhar e uma única observação equívoca: fora isso, só a sua imaginação secreta, fundada num sonho. Não podia ao menos fingir que fora pedir o Dicionário emprestado, pois nesse caso seria impossível explicar a presença de Júlia. Quando O'Brien passou pela teletela, um pensamento pareceu vir-lhe à mente. Deteve-se, voltou-se e apertou um comutador na parede. Houve um estalido sêco e a voz parou.

Júlia soltou uma pequena exclamação, uma espécie de guincho de surpresa. Mesmo em meio ao seu pânico, Winston ficou tão admirado que não pôde deixar de exclamar:

- Desligou a teletela!

- Sim - disse O'Brien - desliguei. Nós temos êsse privilégio.

Estava na frente dêles. O corpanzil sólido dominava o casal, e a expressão fisionômica continuava indecifrável. Estava esperando, severo, que Winston falasse, mas do que?

Era bem concebível que não passasse de um homem ocupado, surpreendido e irritado com a interrupção. Ninguém falou. Depois de calar-se a teletela a sala parecia quieta como um túmulo. Os segundos passaram, enornes. Com dificuldade, Winston continuava a fixar seus olhos nos de O'Brien. De repente, a carranca se dissolveu no que poderia ser o começo dum sorriso. Com seu gesto característico, O'Brien recolocou os óculos no nariz.

- Falo eu, ou falas tu?

- Eu falo - ofereceu-se Winston prontamente. - Aquilo está mesmo desligado?

- Está. Tudo desligado. Estamos sós.

- Viemos aqui porque... Fez uma pausa, percebendo pela primeira vez como eram vagos os seus motivos. Como não sabia que espécie de auxílio esperava de O'Brien, não era fácil dizer a que fôra. Continuou, consciente de que suas palavras deviam parecer fracas e pretenciosas:

- Acreditamos que existe alguma conspiração, alguma organização secreta trabalhando contra o Partido, e que estás envolvido nela. Queremos também trabalhar nela. Somos inimigos do Partido. Não acreditamos nos princípios do Ingsoc. Somos ideocriminosos. Também somos adúlteros. Conto tudo isto porque queremos nos entregar à tua mercê. Se queres incriminar-nos de qualquer outra forma, estamos prontos.

Calou-se e olhou sôbre o ombro, com a impressão de que a porta se abrira. De fato, o criado de cara amarela surgira sem bater. Winston viu que êle trazia uma bandeja com um frasco de cristal e copos.

- Martin é dos nossos - disse O'Brien, impassível. -

Traz a bebida aqui, Martin. Põe a bandeja na mesa redonda. Temos cadeiras suficientes? Então sentemos e conversemos comodamente. Traz uma cadeira para ti, Martin. Falamos de negócios. Podes deixar de ser criado durante dez minutos.

O homenzinho sentou-se, completamente à vontade, e no entanto ainda com ar de servo, o ar de um criado de quarto que goza de um privilégio. Winston considerou-o de soslaio. Ocorreu-lhe que a vida tôda do homem era desempenhar um papel, e que achava perigoso abandonar, por um momento que fosse, sua falsa personalidade. O'Brien tomou a garrafa de cristal pelo pescoço e encheu os copos com um líquido vermelho escuro. Provocou em Winston vagas me-

mórias de algo que vira havia muito tempo numa parede ou num tapume - uma vasta garrafa -composta de luzes que pareciam borbulhar e despejar o conteúdo num copo. Visto de cima, o líquido parecia quase negro, mas no frasco brilhava como um rubi. Tinha um cheiro agri-doce. Viu Júlia apanhar o copo e cheirá-lo com cândida curiosidade.

- Chama-se vinho - informou O'Brien, com a sombra dum sorriso. - Sem dúvida leste a respeito do vinho, nos livros. Mas não são muitos do Partido Externo que o conhecem. - O rosto solenizou-se de novo, e êle ergueu o copo:

- Creio que devemos beber um brinde. À saúde do nosso chefe, Emmanuel Goldstein.

Winston agarrou o copo com certa ânsia. Vinho era algo com que sonhára e sôbre o qual lera. Como o pêso de papel ou as cantigas semi-esquecidas do sr. Charrington, pertencia ao passado, desaparecido e romântico, o tempo de dantes, como gostava de chamá-lo secretamente, nos seus pensamentos. Sem saber por que motivo, sempre acreditara que o vinho tinha sabor intensamente doce,  como de geléia de amora, e um efeito inebriante imediato. Mas quando o enguliu, a bebida lhe causou uma decepção. A verdade èra que, depois de beber gin durante anos, mal  podia prová-lo. Depôs na mesa o copo vazio.

- Então Goldstein existe?

- Sim, existe, e está vivo. Onde, não   sei.

- E a conspiração... a organização? Existe? Não é mera invenção da Polícia do Pensamento?

- Existe, sim. Chama-se a Fraternidade. Nunca saberás muito mais a respeito da Fraternidade, excepto que existe e que pertences a ela. Voltarei ao assunto daqui a pouco. - Olhou o relógio-pulseira. - É imprudente, mesmo para os membros do Partido Interno, desligar a teletela mais de meia-hora. Não devias ter vindo com a moça, e tereis de sair separados. Tu, camarada - e índicou Júlia com a cabeça - sairás antes. Temos uns vinte minutos à nossa disposição. Compreendeis que devo fazer algumas perguntas. Em termos gerais, a que estais dispostos?

- A qualquer coisa de que formos capazes - respondeu Winston.

O'Brien voltara-se um pouco na cadeira, de modo que estava de frente a Winston. Quase não considerava Júlia, parecendo achar que Winston falava por ela. Piscou repetidamente, e começou a fazer as perguntas em voz baixa, sem expressão como se fosse uma rotina, uma espécie de catecismo,  cujas respostas já lhe fossem conhecidas.

-  Estás disposto a dar a vida?

-  Estou.

-  Estás disposto a assassinar?

-  Estou.

-  A cometer atos de sabotagem que poderão causar a morte de centenas de inocentes?

- Sim.

- A trair tua pátria às potências estrangeiras?

-  Sim.

-  Estás disposto a fraudar, forjar, fazer chantagem, corromper a mente infantil, distribuir entorpecentes, incentivar a prostituição, disseminar dôenças venéreas - fazer tudo quanto possa causar a desmoralização e debilitar o poder do Partido?

- Sim.

- Se, por exemplo, servisse aos nossos interesses atirar ácido sulfúrico no rosto duma criança, farias isso?

- Faria, sim.

- Estás disposto a perder tua identidade e viver o resto da tua vida como garçon ou estivador?

- Estou.

- Estás disposto a te suicidar, se e quando isso te for ordenado?

- Sim.

- Estais dispostos, os dois, a vos separardes e nunca mais vos tornardes a ver?

- Não! - irrompeu Júlia. A Winston pareceu haver uma longa pausa antes de responder. Por um momento até lhe pareceu estar privado da fala. A língua movia-se sem som, formando primeiro a sílaba de uma palavra, depois de outra, inúmeras vezes. Até pronunciá-la, não sabia ao certo o que diria.

- Não - repetiu, por fim.

- Fizeste bem de me dizer - disse O'Brien. - É necessário saber tudo.

Voltou-se para Júlia e acrescentou, com voz um pouco mais expressiva:

- Compreendes que, mesmo que êle sobreviva, talvez seja pessoa diferente? Pode ser que tenhamos de dar-lhe nova identidade. Seu rosto, seus movimentos, a forma de suas mãos, a côr do cabelo... até a voz poderão ser diferen-

tes. E tu também podes te transformar numa pessoa diferente. Nossos cirurgiões podem alterar as pessoas, torná-las irreconheciveis. Às vezes é necessário. Às vezes chegamos a amputar um membro.

Winston não pôde impedir outra olhada de soslaio ao rosto mongol de Martin. Não havia cicatrizes visíveis. Júlia empalidecera um pouco, e suas sardas se destacavam mais, porém olhava O'Brien nos olhos. Murmurou algo que parecia ser assentimento.

- Bom. Então está resolvido. Havia uma caixa de cigarros, de prata, sôbre a mesa.

Com ar distraído, O'Brien ofereceu-a aos outros, serviu-se e depois levantou-se, pondo-se a passear de um lado para outro da sala, como se pensasse melhor de pé. Eram cigarros muito bons, bem feitos e firmes, de papel extraordinàriamente sedoso. O'Brien tornou a olhar o relógio-pulseira.

- Melhor voltares à cozinha, Martin - disse êle. -

Vou ligar daqui a um quarto de hora. Examina bem a cara dêstes camaradas antes de ires. Hás de revê-los. Eu talvez não.

Exatamente como fizera à porta, o homenzinho de olhos escuros os fitou com firmeza. Não havia em seus modos uma fagulha de amabilidade. Estava aprendendo de cor as fisionomias, porém não sentia interesse por êles. Winston imaginou que um rosto sintético talvez fosse incapaz de mudar de expressão. Sem falar nem fazer qualquer cumprimento, Martin saiu, fechando a porta atrás de si, em silêncio. O'Brien continuava passeando pela sala, uma das mãos no bolso do macacão negro, a outra segurando o cigarro.

- Compreendeis que lutareis no escuro? Estareis sempre no escuro. Recebereis ordens e obedecereis, sem saber porque. Mais tarde vos mandarei um livro do qual aprendereis a verdadeira natureza da sociedade em que vivemos, e a estratégia pela qual a destruiremos. Quando tiverdes lido o livro, sereis membros integrais da Fraternidade. Mas entre os objetivos gerais pelos quais lutamos, e as tarefas imediatas do momento, nada sabereis. Digo-vos que existe a Fraternidade, mas não posso dizer-vos se conta com cem membros, ou dez milhões. Pelo vosso conhecimento pessoal, não podereis dizer que chega a uma dúzia. Tereis três ou quatro contactos, que serão renovados de tempos em tempos, à medida que desaparecerem. Como êste foi vosso primeiro contacto, será conservado. Quando receberdes ordens, será de mim. Se considerarmos necessário comunicar-nos convosco, será por meio de Martin. Quando fordes por fim presos, confessareis. É inevitável. Mas tereis pouquíssimo para confessar, além de vossas próprias ações. Não conseguireis trair senão um punhado de gente sem importância. Provàvelmente não traireis nem a mim. A essa altura, já estarei morto, ou terei me transformado em pessoa diferente, com cara diferente.

Continuou a caminhar de um lado para outro sôbre o tapete macio. Apesar do volume do seu corpo, havia uma graça notável nos seus movimentos. Destacava-se até no gesto que metia a mão no bolso, ou manipulava um cigarro. Mais do que de fôrça, dava a impressão de confiança e de compreensão, colorida de ironia. Por mais sério que fosse, não tinha nada da parcialidade estreita que distingue o fanático. Quando falava de assassínio, suicídio, moléstias venéreas, membros amputados e rostos alterados, era com um ligeiro ar de zombaria. "Isto é inevitável," parecia dizer o seu tom de voz. "Isto é o que temos de fazer, sem piedade. Mas não é o que faremos quando a vida de novo valer a pena ser vivida." Uma onda de admiração, quase de adoração, fluiu de Winston. Esquecera-se da figura remota de Goldstein. Quando se olhava para os ombros poderosos de O'Brien e sua cara de feições tão maciças, tão feia e no entanto tão civilizada, era impossível acreditar que pudesse ser derrotado. Não havia estratagema que êle não pudesse vencer, nenhum perigo que não pudesse prever. Até Júlia parecia impressionada. Deixara o cigarro apagar e agora escutava atentamente. O'Brien continuou:

- Já ouviste boatos da existência da Fraternidade. Sem dúvida já tens ídéia dela. Imaginaste, provàvelmente, um vasto mundo clandestino de conspiradores, reunindo-se secretamente, em porões, rabiscando mensagens nas paredes, reconhecendo-se por meio de códigos ou gestos especiais. Nada disso existe. Os membros da Fraternidade não têm meio algum de se reconhecer e é impossível a qualquer um conhecer a identidade de mais que outros poucos. O próprio Goldstein, se caisse nas mãos da Polícia do Pensamento, não poderia fornecer uma lista completa dos conspiradores, nem informação que permitisse compilá-la. Não existe essa lista. A Fraternidade não pode ser eliminada porque não é uma organização no sentido comum da palavra. Nada a cimenta, excepto uma idéia, uma idéia indestrutível. Jamais terás

nada para te sustentar, excepto, a idéia. Não terás camaradagem nem incentivo. Quando por fim fores apanhado, não terás socorro. Nunca ajudamos nossos militantes. No máximo, quando é absolutamente necessário que alguém silencíe, conseguimos às vezes meter uma lâmina de barba na cela do prêso. Terás que te acostumar a viver sem resultados e sem esperança. Trabalharás algum tempo, serás prêso, confessarás e morrerás. São os únicos resultados que verás. Não há possibilidade de se dar uma mudança perceptível durante nossa vida. Nós somos os mortos. Nossa única vida verdadeira está no futuro. Nela tomaremos parte como punhados de pó e esquírolas de ossos. Mas a que distância está êsse futuro, não há meio de saber. Pode ser daqui a mil anos. No momento, nada é possível, excepto alargar aos poucos a zona de sanidade mental. Não podemos agir coletivamente. Só podemos expandir nosso conhecimento de indivíduo a indivíduo, geração após geração. Em face da Policia do Pensamento, não há outro modo.

Parou e pela terceira vez olhou para o relógio.

- Já é quase hora de saires, camarada - disse a Júlia.

- Espera, o frasco ainda está pela metade. Encheu os copos e ergueu o seu pela haste.

- A que brindaremos, desta vez? - perguntou, ainda com a mesma leve sugestão de ironia. - À confusão da Polícia do Pensamento? À morte do Grande Irmão? À humanidade? Ao futuro?

- Ao passado - arriscou Winston.

- O passado é mais importante - concordou O'Brien, gravemente. Esvaziaram os copos, e dali a um momento Júlia levantou-se. O'Brien tirou uma caixinha do alto de um armário e deu-lhe uma pastilha branca, que recomendou dissolver na bôca. Era importante, disse êle, não sair cheirando vinho: os ascensoristas eram muito observadores. Assim que a porta se fechou sôbre a moça pareceu esquecer que ela existia. Deu mais uma ou duas passadas e deteve-se.

- Há minúcias a providenciar. Tens um esconderijo qualquer?

Winston explicou  que tinha o quarto da loja do sr. Charrington.

- Bastará, por    enquanto.   Mais tarde, arranjaremos algo para os dois. É  importante  mudar de esconderijo frequentemente. Entrementes, vou mandar-te um exemplar do livro... - e Winston reparou que até O'Brien parecia pronunciar aquela palavra como se estivesse em grifo - o livro de Goldstein, compreendes, assim que for possível. Talvez se passem alguns dias antes de eu conseguir um. Não há muitos exemplares, como podes imaginar. A Polícia do Pensamento procura-os e destrói-os quase no mesmo ritmo em que são produzidos. Faz pouca diferença, porém. O livro é indestrutível. Se o último exemplar sumisse, poderíamos reproduzi-lo quase palavra por palavra. Levas uma pasta de couro ao escritório? - indagou.

- Em geral, levo.

- Que jeito tem?

- É preta, muito surrada. Com duas alças.

- Preta, duas alças, muito surrada... bom. Um dia, no futuro próximo - não posso fixar a data - uma das mensagens da tua tarefa matutina conterá um erro de imprensa, e terás que pedir repetição. No dia seguinte, irás à repartição sem a pasta. Nesse dia, na rua, um homem tocará teu braço e dirá "Acho que derrubaste esta pasta." E a que te entregar conterá um exemplar do livro de Goldstein. Deves devolvê-lo dentro de catorze dias.

Calaram-se ambos por uns instantes.

- Temos um par de minutos, ainda - disse O'Brien.

- Tornaremos a nos encontrar... se nos encontrarmos...

Winston levantou o olhar para êle.

- Onde não há treva? - perguntou, hesitante. O'Brien fez que sim, sem aparentar surpresa.

- Onde não há treva - repetiu, como se reconhecesse a alusão. - E agora, queres dizer alguma coisa antes de sair? Dar um recado? Fazer uma pergunta?

Winston raciocinou. Não parecia haver nenhuma outra pergunta a que desejasse resposta; e menos ímpulso ainda de pronunciar generalidades altissonantes. Em vez de coisas diretamente ligadas a O'Brien ou à Fraternidade, surgiu-lhe na mente uma espécie de figura composta do quarto escuro onde sua mãe passara os últimos dias, o quartinho por cima da loja do sr. Charrington, o pêso de papéis, e a gravura em aço na moldura de pau-rosa. Quase sem querer, perguntou:

-  Conheces uma cantiga muito velha que começa Laranjas e limões, dizem os sinos de S. Clemente?

De novo O'Brien fez que sim com a cabeça. Com uma espécie de grave cortesia, completou a quadra:

"Laranjas e limões, dizem os sinos de S. Clemente,

Me deves três vinténs, dizem os sinos de S. Martinho,

Quando me pagarás? dizem os sinos de Old Bailey,

Quando eu ficar rico, dizem os sinos de Shoreditch."

- Sabes o último verso! - exclamou Winston.

- Sei, sim. E agora, creio que é hora de te retirares. Espera um pouco. É melhor te dar uma destas pastilhas.

Quando Winston se levantou, O'Brien estendeu a manopla. Apertou-lhe a mão com fôrça, quase quebrando os ossos de Winston. De saída, olhou para trás, mas O'Brien já parecia estar entregue à tarefa de bani-lo do seu espírito. Estava esperando, com a mão no comutador da teletela. Por trás dêle, eram visíveis a escrivaninha com o abajur verde, o falascreve e as cestas de arame cheias de papéis. O incidente estava encerrado. Dali a trinta segundos, O'Brien mergulharia no seu trabalho interrompido e de grande importância para o Partido.

17

Winston estava gelatinoso de cansaço. Gelatinoso era a palavra certa. Ocorreu-lhe espontâneamente. O corpo parecia ter não apenas a debilidade da gelatina, como a sua translucidez. Tinha a impressão de que, se erguesse a mão, conseguiria ver a luz do outro lado. Todo o sangue e a linfa se haviam esgotado, num imenso deboche de trabalho, deixando apenas uma frágil estrutura de nervos, ossos e pele. Tôdas as sensações pareciam ampliadas. O macacão roçava-lhe os ombros, a calçada comichava-lhe sob os pés, e até abrir e fechar a mão era um esfôrço que fazia as juntas estralarem.

Em cinco dias, trabalhara mais de noventa horas. E o mesmo acontecera com todo mundo no Ministério. Agora, estava tudo acabado e, literalmente, não havia mais o que fazer, nenhuma tarefa do Partido até o dia seguinte, pela manhã. Podia passar seis horas no esconderijo e nove na própria cama. Lentamente, à luz do sol moderado daquela tarde, tomou por uma rua suja, na direção da loja do sr. Charrington, sempre de olho no aparecimento de alguma patrulha, porém irracionalmente convencido de que aquele dia não havia perigo de que o detivessem. A pesada pasta que levava chocava-se contra seus joelhos a cada passo, provocando uma sensação de formigamento na perna. Dentro dela estava o livro, que já estava em    seu poder havia seis dias, e que ainda não conseguira abrir,  nem mesmo olhar.

No sexto dia da Semana do ódio,      depois das passeatas, discursos, gritaria, cantoria, bandeiras, cartazes, filmes, esculturas em cera, rufar de tambores e guinchar de clarins, reboar de pés em marcha, ronco das esteiras dos tanques, zumbido dos aviões no ar, troar dos canhões - depois de seis dias de atividade, quando o grande orgasmo se apro-

ximava trêmulo do clímax e o ódío geral contra a Eurásia se condensara em tamanho delírio que a multidão teria certamente esquartejado com as unhas os doís mil prisioneiros de guerra eurasianos cujo enforcamento público se realizaria no último dia - exatamente nesse momento, fôra anunciado que a Oceania não estava em guerra com a Eurásia. Estava em guerra com a Lestásia. A Eurásia era aliada.

Evidentemente, não se admitiu modificação alguma. Apenas se fez saber, com extrema inesperabilidade e em tÔda parte ao mesmo tempo, que a inimiga era a Lestásia e não a Eurásia. Winston estava participando de uma demonstração numa praça central de Londres quando o fato ocorreu. Era noite, e os rostos brancos e as bandeiras escarlates estavam banhadas na luz dos refletores. A praça fôra tomada por vários milhares de pessoas, inclusive um bloco de mil escolares com o uniforme dos Espiões. Na plataforma enfeitada de vermelho arengava à massa um orador do Partido Interno, homenzinho magro com braços desproporcionadamente longos, e uma cabeçorra calva sôbre a qual dançavam algumas melenas. Figura de um conto fantástico, contorcido de ódio, agarrava com uma das mãos o pescoço do microfone, enquanto com a outra, enorme no extremo do braço ossudo, gadunhava o ar, ameaçadoramente. A voz, metalizada pelos amplificadores, catalogava incessantemente atrocidades, massacres, deportações, pilhagens, violações, tortura de prisioneiros, bombardeio de civis, propaganda mentirosa, agressões injustas, tratados desrespeitados. Era quase impossível escutá-lo sem se deixar convencer, primeiro, e depois enlouquecer. Com intervalo de alguns momentos a fúria da multidão fervia e a voz do orador era afogada por um rugido feroz, selvagem, subindo incontrolável de milhares de gargantas. Os berros mais selvagens eram os dos escolares. Havia uns vinte minutos que falava quando um mensageiro subiu à plataforma e um pedaço de papel foi passado às mãos do demagogo. Êle desenrolou-o sem parar; nada se alterou na sua voz, nem nos gestos, nem no conteúdo do que dizia. Mas de repente mudaram os nomes.        Sem que uma palavra fosse pronunciada nesse sentido, uma onda de compreensão percorreu a massa. A Oceania estava     em guerra com a Lestásia! No momento seguinte houve uma tremenda comoção. As faixas, bandeiras e cartazes que adornavam a praça estavam todos errados! Cerca da metade ostentava caras erradas! Era sabotagem! Os agentes de Goldstein tinham agido! Houve um ruidoso interlúdio durante o qual os cartazes foram arrancados das paredes, as bandeiras rasgadas e pisadas. Os Espiões executaram proezas admiráveis, marinhando sôbre os telhados e cortando as faixas presas às chaminés. Dentro de um minuto ou dois tudo acabou. O orador, ainda agarrado ao microfone, ombros arcados para frente, a mão enorme ainda ameaçando, continuara o discurso. Dali a um minuto, os urros de féra da multidão furiosa de novo rasgaram os ares. O ódio continuou exatamente como antes. Apenas o alvo fôra mudado.

Em retrospecto, o que impressionara Winston, fôra ter o orador passado de um inimigo a outro no meio da frase, não apenas sem pausa: sem a menor ofensa à sintaxe. Mas, no momento, tivera outras coisas a preocupá-lo. Fôra no momento exato das desordens que um homem, cujo rosto não pôde ver, lhe deu um tapinha no ombro e disse: "Desculpe, acho que derrubaste tua pasta." , E Winston a tomara distraido, sem falar. Sabia que alguns dias se passariam, sem oportunidade de abri-la. No instante em que a demonstração acabara, fôra direto ao Ministério da Verdade, embora já fosse quase vinte e três horas. Todo o pessoal do Ministério fizera o mesmo. Não havia necessidade das ordens emitidas pelas teletelas, chamando-os aos seus postos.

A Oceania estava em guerra com a Lestásia: a Oceania sempre estivera em guerra com a Lestásia. Grande parte da literatura política dos últimos cinco anos tornara-se completamente obsoleta. Relatórios e reportagens de todo gênero - jornais, livros, panfletos, filmes, faixas sonoras, fotografias - tudo precisava ser retificado com a velocidade do raio. Embora nenhuma ordem específica, sabia-se que os chefes do Departamento tencionavam que, dali a uma semana, não existisse em parte alguma qualquer referência à guerra com a Eurásia, ou à aliança com a Lestásia. O trabalho era estafante, e mais ainda porque o processo não podia ser chamado pelo seu nome legítimo. No Departamento de Registro todos trabalhavam dezoito horas cada vinte e quatro, com apenas duas sonecas de três horas. Tinham trazido colchões do porão e armado pelos corredores: as refeições consistiam de sanduiches e Café Vitória levados em carrinhos pelos empregados da cantina. Cada vez que Winston parava para ir dormir, procurava deixar a escrivaninha limpa, mas cada vez que voltava, de olhos remelentos e doloridos, encontrava mais um monte de cilindros de papel, que

lhe cobriam a mesa como uma nevada, quase tapando o falascreve e transbordando para o chão, de modo que a primeira tarefa era sempre pô-los em ordem, para ter lugar onde trabalhar. - O pior era que o trabalho não era todo puramente mecânico.    Com freqüência, bastava substituir apenas um nome por outro, mas qualquer notícia detalhada exigia cautela e imaginação. Era considerável, o próprio conhecimento de geografia necessário para transferir a guerra de uma a outra parte do mundo.

No terceiro dia, seus olhos doíam insuportàvelmente e precisava limpar os óculos repetidas vezes. Era como se lutasse contra uma esmagadora missão física, algo que podia recusar e que, no entanto, tinha ânsia neurótica de realizar. Tanto quanto podia se lembrar, não o perturbava o fato de ser uma cinica mentira cada palavra que murmurava no falascreve, cada rabisco do seu lapis-tinta. Tinha a ânsia de todos os colegas do Departamento de realizar uma falsificação perfeita. Na manhã do sexto dia diminuiu o chorrilho de papeletas. Durante quase meia-hora, nada saiu do tubo; depois caiu um cilindro, e depois nada. Ao mesmo tempo o trabalho amainava em tôda parte. Um profundo suspiro, embora secreto, levantou-se em tôda a repartição. Encerrara-se uma formidanda proeza, que nunca poderia ser mencionada. Era agora impossível a qualquer ser humano provar documentadamente que houvera uma guerra com a Eurásia. Às doze em ponto, anunciou-se inesperadamente que todos os funcionários do Ministério estavam de folga até a manhã seguinte. Winston, ainda levando a pasta que continha o livro, e que tivera aos pés enquanto trabalhava, e sob o corpo enquanto dormia, foi para casa,     barbeou-se e quase adormeceu no banho, embora a água não estivesse mais do que tépida.

Com uma espécie de voluptuoso estralar de juntas, subiu a escada da loja do sr. Charrington. Estava     cansado, mas não tinha mais sono. Abriu a janela,   acendeu o sujo fogareiro de óleo e encheu dágua uma caçarola,  para o café. Júlia não devia demorar; enquanto não viesse,   leria o livro. Sentou-se na poltrona esfiapada e abriu a pasta.

Um pesado volume negro, numa encadernação tosca, sem nome nem título na capa. O tipo também parecia ligeiramente irregular. As páginas estavam gastas nas margens, e se destacavam com facilidade, como se o livro tivesse passado por muitas mãos. No frontispício havia o título: TEORIA E PRÁTICA DO COLETIVISMO OLIGARQUICO

por

Emmanuel Goldstein

Winston pôs-se a ler:

Capítulo I

Ignorância é Fôrça

Desde que se começou a escrever a história, e provàvelmente desde o fim do Período Neolítico, tem havido três classes no mundo, Alta, Média e Baixa. Têm-se subdividido de muitas maneiras, receberam inúmeros nomes diferentes, e sua relação quantitativa, assim como sua atitude em relação às outras, variaram segundo as épocas; mas nunca se alterou a estrutura essencial da sociedade. Mesmo depois de enormes comoções e transformações aparentemente irrevogáveis, o mesmo diagrama sempre se restabeleceu, da mesma forma que um giroscópio em movimento sempre volta ao equilíbrio, por mais que seja empurrado dêste ou daquele lado.

Os objetivos dêsses três grupos são inteiramente irreconciliáveis. . .

Winston parou de ler, principalmente com o fito de apreciar o fato de estar lendo, em confôrto e segurança. Estava só: nem teletela, nem orelha no buraco da fechadura, nem impulso nervoso de espiar por cima do ombro ou de tapar a página com a mão. O ar doce do verão soprava-lhe na face. De algum lugar distante vinham amortecidos gritos de crianças: no quarto não havia ruido além da voz de inseto do relógio. Êle afundou mais ainda na poltrona e pousou os pés na guarda da lareira. Era a felicidade, a eternidade. De repente, como às vezes fazemos com um livro que temos a certeza de ler e reler, palavra por palavra, abriu-o numa página diferente e encontrou-se no Capítulo III. Continuou:

Capítulo III

Guerra é Paz

A divisão do mundo em três grandes super-estados foi acontecimento que poderia ter sido, e deveras foi, previsto

antes de meados do século vinte. Com a absorção da Europa pela Rússía e do Império Britânico pelos Estados Unidos  passaram a ter existência efetiva duas das três grandes potências, a Eurásia e a Oceania. A terceira, a Lestásia, só surgiu como unidade distinta após outra década de lutas confusas. As fronteiras entre os três super-estados são arbitrárias nalguns pontos, e noutros flutuam segundo as fortunas da guerra, mas de modo geral obedecem linhas geográficas. A Eurásia compreende tôda a parte setentrional dos continentes europeu e asiático, de Portugal ao estreito de Béring. A Oceania compreende as Américas, as ilhas do Atlântico, inclusive as Britânicas, a Australásia e a parte meridional da África. A Lestásia, menor que as outras, e de fronteiras ocidentais menos'definidas, compreende a China e os países ao sul da China, as Ilhas do Japão e uma grande porém cambiante porção da Mandchúria, da Mongólia e do Tibé.

Numa ou noutra aliança, êsses três super-estados estão permanentemente em guerra, e assim tem sido nos últimos vinte e cinco anos. A guerra, contudo, não é mais a luta desesperada e aniquiladora que costumava ser nas primeiras décadas do século vinte. É uma luta de objetivos limitados entre combatentes incapazes de destruir um ao outro, sem causa material para guerrear e sem mesmo qualquer genuina divergência ideológica. Isto não significa que as operações de guerra, ou a atitude em relação a ela, se tenham tornado mais cavalheirescas ou menos sanguinárias. Ao contrário, a histeria guerreira é contínua e universal em todos os países, e atos tais como estupros, pilhagens, matança de crianças e escravização de povoações inteiras, e represálias contra prisioneiros que chegam a incluir a morte pela água fervente e o enterramento de seres vivos, são considerados normais, e até merítórios, quando cometidos pelos amigos, e não pelo inimigo. Materialmente, porém, a guerra envolve número muito pequeno de cidadãos, principalmente peritos de alta especialização, e causa relativamente poucas vítimas. O combate, quando há combate, trava-se nas vagas fronteiras cuja localização, o indivíduo comum só pode imaginar, ou em tôrno das Fortalezas Flutuantes que guardam os pontos estratégicos das rotas marítimas. Nos centros de civilização a guerra não significa senão escassez constante de mercadorias de consumo, e a queda ocasional de uma bombafoguete, que talvez cause algumas dezenas de mortes. Com efeito, a guerra mudou de aspecto. Mais exatamente, mudaram de ordem de importância as razões pelas quais se faz a guerra. Os motivos já parcialmente presentes nas grandes guerras do início do século vinte tornaram-se, dominantes e são agora reconhecidos conscientemente, e levados em consideração.

Para compreender a natureza da guerra atual porque, apesar do reagrupamento que se dá a intervalos, é sempre a mesma guerra - deve-se perceber, em primeiro lugar, que não pode ser decisiva. Nenhum dos três super-estados poderia ser definitivamente vencido, nem mesmo pelos dois outros juntos. O equilíbrio é muito grande, e formidáveis suas defesas naturais. A Eurásia é protegida por suas vastas massas de terra, a Oceania pela imensidade do Atlântico e do Pacífico, a Lestásia pela fecundidade e a industriosidade dos seus habitantes. Tampouco existe, sempre do ponto de vista material, nada, que valha a pena. Com o estabelecimento de economias auto- suficientes, nas quais a produção e o consumo se equilibram, a luta pelos mercados - causa principal das guerras anteriores - desapareceu, ao passo que a procura das matérias primas não é mais caso de vida ou morte. Cada um dos três super-estados é tão vasto que possui em seu próprio território quase todos os materiais de que necessita. Na medida em que a guerra tem objetivo econômico direto, é uma guerra pela mão de obra. Entre as fronteiras dos super-estados, e não permanentemente de posse de nenhum, há um tosco quadrilátero cujos ângulos são Tanger, Brazzaville, Darwin e Hong Kong, contendo aproximadamente um quinto da população da terra. É pela Posse dessas regiões densamente povoadas, e da calota polar setentrional, que as três potências vivem em guerra. Na prática, nenhuma jamais controla tôda a área contestada. Partes dela mudam de mãos constantemente, e é a casualidade de se apoderar dêste ou daquele fragmento, por um repentino golpe de traição, que dita a incessante modificação dos aliados.

Todos os territórios disputados contêm valiosos minerais, e alguns produzem importantes produtos vegetais, tais como borracha, que nos clímas mais frios é necessário sintetizar por métodos relativamente caros. Acima de tudo, porém, contêm uma prodigiosa reserva de mão de obra barata. Quem quer que controle a África equatorial, ou os países do Oriente Médio, ou a índia meridional, ou o arquipélago in-

donésio, dispõe também de massas de dezenas ou centenas de milhões de peões diligentes e mal-pagos. Os habitantes dessas regiões, reduzidos mais ou menos abertamente à condição de escravos, passam continuamente de conquistador a conquistador e são gastos, como o carvão ou o petróleo, na corrida para produzir mais armamentos, capturar mais território, controlar mais braços, para produzir mais armamentos, para capturar mais território e assim infinitamente. Cumpre notar que a luta, na verdade, nunca se alastra além da periferia das áreas contestadas. As fronteiras da Eurásia oscilam entre a bacia do rio Congo e a margem norte do Mediterrâneo; as ilhas do Oceano índico e do Pacífico são constantemente capturadas e recapturadas pela Oceania ou pela Lestásia; na Mongólia a linha divisória entre Eurásia e Lestásia não é estável; em tôrno-do Polo as três potências reclamam enormes territórios em grande parte desabitados e inexplorados; mas o equilíbrio de forças mantém-se sempre na mesma, e permanece inviolado o território que forma o núcleo de cada super-estado. Além disso, o trabalho dos povos explorados que vivem no Equador não é realmente necessário para a economia do mundo. Nada acrescentam à riqueza da terra, desde que só produzem para finalidades bélicas, sendo o propósito de fazer guerra estar sempre em melhor posíção para fazer outra guerra. O trabalho escravo permite a aceleração do ritmo guerreiro. Se não existisse, a estrutura da sociedade mundial, e o processo pelo qual se mantém, não mudaria essencialmente.

O objetivo primário da guerra moderna (segundo os princípios do duplipensar, essa meta é simultâneamente reconhecida e não reconhecida pelos cérebros orientadores do Partido Interno) é usar os produtos da máquina sem elevar o padrão de vida geral. Desde o fim do século dezenove, foi latente na socíedade industrial o problema de dar fim ao excesso de artigos de consumo. Atualmente, que poucos seres humanos têm bastante para comer, êsse problema evidentemente não urge, e assim poderia vir a ser, mesmo sem a intervenção de um processo destruidor artificial. O mundo de hoje é um planeta nu, faminto e dilapidado, em comparação com o que existia antes de 1914, e ainda mais se comparado com o futuro imaginário aguardado pelos seus habitantes daquela era. No comêço do século vinte, a visão de uma sociedade futura incrivelmente rica, repousada, ordeira e eficiente - um refulgente mundo antissético de vidro, aço e concreto branco de neve - fazia parte da consciência de quase tôda pessoa alfabetizada. A ciência e a tecnologia se desenvolviam num ritmo prodigioso, e parecia natural imaginar que continuassem se desenvolvendo. Isto não ocorreu, todavia, em parte por causa do empobrecimento causado por longa série de guerras e revoluções, em parte porque o progresso científico e técnico dependia do hábito empírico do raciocínio, que não podia sobreviver numa sociedade estritamente regimentada. No seu conjunto, o mundo é hoje mais primitivo do que era cinquenta anos atrás. Certas zonas atrasadas progrediram, e vários disposítivos, sempre ligados à guerra -e à espionagem policial, foram de@senvolvidos, mas já não há experiência nem invenção, e nunca foram completamente reparados os estragos da guerra atômica de 1950 e pouco. Não obstante, persistem os perigos inerentes à máquina. Desde o momento em que a máquina surgiu, tornouse claro a todos que sabiam raciocinar que desaparecera em grande parte a necessidade do trabalho braçal do homem e, portanto, a da desigualdade humana. Se a máquina fosse deliberadamente utilizada com êsse propósito, a fome, o excesso de trabalho, a sujeira, o analfabetismo e a doença poderiam ter sido eliminados em algumas gerações. E na verdade, sem ter sido usada com êsse propósito, porém por uma espécie de processo automático - produzindo riqueza que às vezes se tornava impossível deixar de distribuir - a máquina elevou grandemente o padrão de vida do ser humano comum, num período de uns cinquenta anos, ao fim do século dezenove e no comêço do vinte.

Tornou-se também claro que o aumento total da riqueza ameaça a destruição - com efeito, de certo modo era a destruição - de uma sociedade hierárquica. Num mundo em que todos trabalhassem pouco, tivessem bastante que comer, morassem numa casa com banheiro e refrigerador, e possuissem automóvel ou mesmo avião, desapareceria a mais flagrante e talvez mais importante forma de desigualdade. Generalizando-se, a riqueza não conferia distinção. Era possível, sem dúvida, imaginar uma sociedade em que a riqueza, no sentido de posse pessoal de bens e luxos, fosse igualmente distribuida, ficando o poder nas mãos de uma pequena casta privilegiada. Mas na prática tal sociedade não poderia ser estável. Pois se o lazer e a segurança fossem por todos fruidos, a grande massa de seres humanos normalmente estupidificada pela miséria aprenderia a ler e aprenderia a pensar

por si; e uma vez isso acontecesse, mais cedo ou mais tarde veria que não tinha função a minoria privilegiada, e acabaria com ela. De'maneira permanente, uma sociedade hierárquica só é possível na báse da pobreza e da ignorância. Regressar ao passado agrícola, como imaginaram alguns pensadores no comêço do século vinte, não era solução praticável. Entrava em conflito com a tendência para a mecanização, que se tornára pouco menos que instintiva em quase todo o mundo, e além disso, qualquer país que permanecesse industrialmente atrasado ficaria indefeso militarmente e estaria fadado a ser dominado, direta ou indiretamente, pelos rivais mais progressistas.

Tampouco era solução satisfatória manter as massas na miséria restringindo a produção de mercadorias. Isto aconteceu, em grande parte, durante a fase final do capitalismo, mais ou menos entre 1920 e 1940. Permitiu-se que estagnasse a economia de muitos países, a terra deixou de ser arroteada, o maquinário básico permaneceu na mesma, grandes setores da população foram impedidos de trabalhar e mantidos semivivos por meio de caridade estatal. Mas isto também provocava debilidade militar, e como fossem evidentemente desnecessárias as privações, tornavam inevitável a oposição. O problema era manter em movimento as rodas da indústria sem aumentar a riqueza real  do mundo. Era preciso produzir mercadorias, porém não    distribui-las. E, na prática, a única maneira de o realizar é   pela guerra contínua.

O essencial da guerra é a destruição, não necessàriamente de vidas humanas, mas     dos produtos do trabalho humano. A guerra é um meio de despedaçar, ou de libertar na estratosfera, ou de afundar nas profundezas do mar, materiais que doutra forma teriam de ser usados para tornar as massas demasiado confortáveis e portanto, com o passar do tempo, inteligentes. Mesmo quando as armas de guerra não são destruidas, sua manufatura ainda é um modo conveniente de gastar mão de obra sem produzir nada que se possa consumir. Uma Fortaleza Flutuante, por exemplo, contém trabalho suficiente para construir várias centenas de navios cargueiros. Depois de algum tempo é demantelada, por obsoleta, sem ter trazido benefício material a ninguém, e com novo e enorme esfôrço, constrói-se outra. Em princípio, o esfôrço bélico é sempre planejado de maneira a consumir qualquer excesso que possa existir depois de satisfeitas as necessidades mínimas da população. Na prática, as necessidades da população são sempre subestimadas, e o resultado é haver uma escassez crônica de metade dos essenciais mas isto é considerado vantagem. É uma política consciente manter perto do sofrimento até os grupos favorecidos porquanto o estado geral de escassez aumenta a importância dos pequenos privilégios e assim amplia a distinção entre um grupo e outro. Pelos padrões do início do século vinte, até mesmo um membro do Partido Interno leva vida austera e laboriosa. Não obstante, os poucos luxos de que goza, o apartamento espaçoso e bem mobiliado, a melhor qualidade da sua roupa, a superioridade da sua comida, bebida e fumo, seus dois ou três criados, seu automóvel ou helicóptero particular, o colocam numa esfera diferente de um membro do Partido Externo, que por sua vez tem vantagens semelhantes em comparação com as massas submersas a que chamamos "proles". A atmosfera social é de uma cidade sitiada, onde a posse de um pedaço de carne de cavalo diferencia entre a riqueza e a pobreza. E, ao mesmo tempo, a consciência de estar em guerra e portanto em perigo, faz parecer natural a entrega de todo o poder a uma pequena casta: é uma inevitável condição de sobrevivência.

Veremos que a guerra não apenas realiza a necessária destruição como a efetua de maneira psicológicamente aceitável. Em princípio, seria bastante simples gastar o excesso de mão de obra construindo templos e pirâmides, cavando buracos e tornando a enchê-los, ou mesmo produzindo grandes quantidades de mercadorias e queimando-as. Mas isso só daria a base econômica, mas não a emocional, de uma sociedade hierárquica. Trata-se aqui não do moral das massas, cuja atitude não tem importância, contanto que sejam mantidas no trabalho, mas do moral do Partido. Espera-se que até mesmo o mais humilde membro do Partido seja competente, industrioso e inteligente, dentro de estreitos limites, Porém é também necessário que seja um fanático crédulo e ignorante, cujas reações principais sejam medo, ódio, adulação e triunfo orgiástico. Em outras palavras, é necessário que tenha a mentalidade apropriada ao estado de guerra. Não importa que de fato haja uma guerra e, como não é possível uma vitória decisiva, pouco importa que a guerra vá bem ou mal. O que importa é que possa existir o estado de guerra. A divisão intelectual que o Partido exige dos seus membros, e que é mais fácil de obter numa atmosfera de guerra, é agora quase universal, porém, quanto mais se sobe nos quadros,

mais nítida se torna. É precisamente no Partido Interno que a histeria de guerra e o ódio ao inimigo são mais fortes. Na sua posição de administrador, muitas vezes é necessário a um membro do Partido Interno saber se esta ou aquela notícia de guerra é falsa, e muitas vezes, êle pode perceber que a guerra inteira é espúria e que, ou não está sendo travada, ou está sendo travada por objetivos diferentes dos declarados: mas essa conciência é fàcilmente neutralizada pela técnica do duplipensar. Entrementes, nenhum membro do Partido Interno hesita por um instante na sua crença mística de que a guerra é real, que está fadada a terminar pela vitória, ficando, a Oceania senhora indisputável do mundo inteiro.

Todos os membros do Partido Interno crêem, como num artigo de fé, nessa vitória futura. Será obtida quer pela aquisição gradual de território e, consequentemente, acúmulo de esmagadora preponderância de força, quer pelo descobrimento de uma nova arma irrespondível. A busca de novas armas prossegue sem cessar, e é uma das poucas atividades restantes em que o espírito inventivo ou especulativo se pode expandir. Atualmente, na Oceania, a ciência quase cessou de existir, no sentido antigo. Em Novilíngua não existe palavra para "ciêncía". O método empírico de raciocínio, no qual se basearam todos os desenvolvimentos científicos passados, se opõe aos princípios fundamentais do Ingsoc. E mesmo o progresso tecnológico só se verifica quando os seus produtos podem ser, de alguma forma, utilizados para limitar a liberdade humana. Em tôdas as artes úteis o mundo ou está parado ou retrocede. Os campos são cultivados com arados de tração animal, enquanto os livros são escritos por máquinas. Mas nos assuntos de importância vital - ou seja, a guerra e a espionagem policial - ainda é incentivado o sistema empírico, ou pelo menos tolerado. As duas metas do Partido são conquistar tôda a superfície da terra e extinguir de uma vez para sempre qualquer possibilidade de pensamento independente. Há, portanto, dois grandes problemas que o Partido deve resolver. Um dêles é descobrir o que pensa outro ser humano, e o outro é matar várias centenas de milhões de pessoas em alguns segundos, sem dar aviso prévio. Êste é o assunto da pesquisa científica que ainda subsiste. O cientista de hoje ou é uma mistura de psicólogo e inquisidor, estudando com extraordinária minúcia o significado das expressões faciais, dos gestos, e tons de voz, e verificando os efeitos reveladores das drogas-da-verdade, terapia de choque, hipnose e tortura física; ou é quimico, físico ou biólogo só interessado pelos ramos da sua profissão ligados à supressão da vida. Nos vastos laboratórios do Ministério da Paz, e nas estações experimentais ocultas nas florestas brasileiras ou no deserto australiano, ou nas ilhas perdidas da Antártida, os grupos de peritos continuam sua missão, infatigáveis. Alguns se ocupam, simplesmente, de planejar a logística de futuras guerras; outros de inventar maiores e ainda maiores bombas-foguete, explosivos cada vez mais poderosos, blindagens mais e mais resistentes; outros buscam novos gases, mais letais, ou venenos solúveis capazes de ser produzidos em quantidades tais que destruam a vegetação de continentes inteiros, ou culturas de germes maléficos imunizados contra todos os    anticorpos possíveis; outros se esforçam para produzir um veículo que abra caminho sob a terra como um submarino por baixo dágua, ou um aeroplano tão independente da base como um navio de vela; outros ainda exploram possibilidades mais remotas, tais como focalizar os raios do sol através de lentes suspensas a milhares de quilômetros da terra, ou provocar terremotos e maremotos artificiais pela alteração do calor no centro do planeta.

Mas nenhum dêsses projetos jamais se aproxima da realização, e nenhum dos três super-estados obtém dianteira significativa sôbre os outros. O que é mais notável é que as três potências já possuem, na bomba atômica, uma arma muito mais poderosa do que as suas atuais pesquisas lhes permitirão descobrir.    Conquanto o Partido, segundo seu hábito, reivindique essa invenção, as bombas atômicas apareceram em mil novecentos e quarenta e poucos, e foram usadas em larga escala cerca de dez anos mais tarde. Nessa ocasião, algumas centenas de bombas foram lançadas contra os centros industriais, principalmente da Rússia europeia, Europa ocidental e América do Norte. O efeito foi convencer os grupos dominantes de todos os países que algumas bombas atômicas mais significariam o fim de tôda sociedade organizada e, portanto, do seu próprio poder. Daí por diante, embora não se fizesse, nem se insinuasse qualquer tratado formal, as bombas-A não foram mais jogadas. As três potências continuam produzindo bombas atômicas, e as guardam à espera da oportunidade decisiva que aguardam para mais cedo ou mais tarde.      Entrementes, a arte da guerra permaneceu quase estática durante trinta ou quarenta anos. Usam-se mais helicópteros do que antigamente, os aviões de

bombardeio   foram em grande parte substituidos por projé teis auto-impelidos, e o frágil encouraçado móvel deu lugar à quase insubmergível Fortaleza Flutuante; fóra isso, foi pequeno o desenvolvimento. O tanque, o submarino, o torpedo, a metralhadora, e até o fusil e a granada de mão continuam sendo usados. E apesar dos infindos morticínios comunicados pela imprensa e as teletelas, nunca se repetiram as batalhas desesperadas das guerras anteriores, em que centenas de milhares e até milhões de homens eram às vezes mortos em algumas semanas.

Nenhum dos três estados tenta     qualquer manobra que envolva o risco d'uma séria derrota. Quando empreendem uma operação de grande envergadura, é em geral um ataque de surpresa a um aliado. É a mesma a estratégia seguida pelas três potências, ou pelo menos as que fingem seguir.

O plano prevê, pela combinação de luta, trocas e oportunos golpes de traição, a aquisição de uma série de bases que circundem completamente um ou outro rival, e então assinar um pacto de amizade com êsse rival, permanecendo em paz com êle o tempo suficiente para que as suspeitas esmoreçam. Durante êsses anos de espera, foguetes carregados de bombas atômicas podem ser acumulados em todos os pontos estratégicos; serão por fim disparados simultâneamente, com efeitos tão devastadores que é impossível retaliar. Surge então o momento de assinar um tratado de amizade com a terceira potência mundial, preparando outro ataque. Êste plano, evidentemente, é puro castelo no ar, impossível de realizar. Além disso, não há combate algum, excepto nas zonas contestadas, em tôrno do Equador e do Polo Norte; jamais se empreende qualquer invasão de território inimigo. Isto explica o fato de serem arbitrárias em muitos pontos as fronteiras entre os super-estados. A Eurásia, por exemplo, poderia fàcilmente conquistar as Ilhas Britânicas, que geogràficamente fazem parte da Europa, e por outro lado seria possível a Oceania levar suas fronteiras até o Reno ou o Vístula. Mas isto violaria o princípio de integração cultural, respeitado por todos os lados, embora jamais formulado. Se a Oceania conquistasse as regiões outrora conhecidas por França e Alemanha, seria necessário, ou exterminar os habitantes, tarefa de enorme dificuldade física, ou assimilar uma população de uns cem milhões de pessoas que, no que se refere ao desenvolvimento técnico, estão mais ou menos no nível da Oceania. O problema é o mesmo para os três super-estados. É absolutamente necessária, para sua estrutura, que não haja contacto com estrangeiros, excepto, limitadamente, com prisioneiros de guerra e escravos de côr. Mesmo o aliado oficial de hoje é considerado com suspeita. Além dos prisioneiros de guerra, o cidadão médio da Oceania jamais põe olhos num cidadão da Eurásia ou da Lestásia, sendo-lhe proibido aprender línguas estrangeiras.      Se lhe fosse permitido o contacto com os forasteiros, descobriria que são criaturas semelhantes e que é mentira a maior parte do que ouviu a respeito dêles. Acabar-se-ia o mundo fechado em que vive, e se evaporariam o medo, o ódio, e o sentido de razão permanente, de que depende o seu moral. É portanto admitido por todos os lados que, não obstante a frequência com que a Pérsia, o Egito, Java ou Ceilão mudam de mãos, as fronteiras básicas não devem nunca ser atravessadas, salvo pelas bombas.

Atrás disto tudo há um fato que se não menciona jamais em voz alta, mas que é tàcitamente compreendido e usado como orientação: ou seja, o de que as condições de vida, nos três super-estados, são mais ou menos as mesmas. Na Oceania, a filosofia dominante é chamada Ingsoc, na Eurásia é chamada Neo-Bolchevismo, e na Lestásia é conhecida por uma palavra chinesa em geral traduzida por Adoração da Morte, mas que se poderia melhor chamar Obliteração do Ego. O cidadão da Oceania não pode saber coisa alguma a respeito dos fundamentos das outras duas filosofias, aprendendo porém a execrá-las como bárbaros ultrages à moralidade e ao sentido comum. Na verdade, as três filosofias mal se distinguem umas das outras, e os sistemas sociais de que são base não se distinguem de modo algum. Por tôda parte há a mesma estrutura piramidal, a mesma adoração de um chefe semi-divino, a mesma economia que existe para a guerra contínua. Segue-se que os três super-estados não só não podem vencer um ao outro, como não levariam vantagem se o fizessem. Ao contrário, enquanto continuarem em conflitos, amparam-se uns aos outros, como três fusis num sarilho. E, como é praxe, os grupos dominantes das três potências ao mesmo tempo sabem e ignoram o que estão fazendo. Dedicam a vida à conquista do mundo, mas também sabem que é necessário continuar a guerra, sem fim e sem vitória. Entrementes, o fato de não haver perigo de conquista torna possível a negação da realidade que    'é a característica principal do Ingsoc, e dos sistemas rivais de racio-

cínio. Neste ponto é necessário repetir o que já dissemos: que a guerra, tornando-se contínua, mudou fundamentalmente de caráter.

No passado a guerra era, quase por definição, algo que mais cedo ou mais tarde chegava ao fim, em geral em inconfundível vitória ou derrota. Também no passado, a guerra era um dos instrumentos pelo qual as sociedades humanas se mantinham em contacto com a realidade física. Todos os governantes de tôdas as épocas têm tentado impôr aos seus adeptos uma falsa visão do mundo, mas não podiam se dar ao luxo de encorajar nenhuma ilusão que tendesse a prejudicar a eficiência militar. Considerando que a derrota signíficava a perda de independência, ou outro resultado geralmente julgado indesejável, era preciso tomar sérias precauções contra a derrota. Não se podia ignorar os fatos físicos. Na filosofia, religião, ética, ou política, dois e dois podem ser cinco, mas quando se desenha um canhão ou um' aeroplano, somam quatro. As nações ineficientes eram vencidas, mais cedo ou mais tarde, e a luta pela eficiência era inimiga das ilusões. Além do mais, para ser eficiente, era necessário saber aprender do passado, o que exigia conhecimento bastante exato do que sucedera nesse passado. Naturalmente, os jornais e livros sempre foram parciais, e coloridos por diversos pontos de vista, mas seria impossível a falsificação da espécie e na escala hoje praticada. A guerra era uma firme salvaguarda de saúde mental e, no que se referia às classes dominantes, provàvelmente a mais importante de tôdas as salvaguardas. Enquanto era possível perder ou ganhar guerras, nenhuma classe dominante podia ser completamente irresponsável.

Mas quando a guerra se torna literalmente contínua, cessa também de ser perigosa. Quando a guerra é contínua, não existe necessidade militar.   O progresso técnico pode cessar e os fatos mais palpáveis podem ser negados ou desprezados. Como vimos, as pesquisas que poderiam ser chamadas científicas são ainda levadas a cabo, com finalidades bélicas, mas são, em essência, um sonho vão, e não importa que não dêem o menor resultado. A eficiência não mais é necessária, nem mesmo a eficiência militar. Nada é eficiente na'Oceania, excepto a Polícia do Pensamento. Já que cada um dos super-estados é invencível, cada qual é, com efeito, um universo separado dentro do qual se pode praticar sem risco qualquer perversão mental. A realidade só exerce a sua pressão através das necessidades da vida cotidiana - comer e beber, morar e vestir, evitar engulir veneno, cair de janelas do último andar, e coisas semelhantes. Entre a vida e a morte, e entre o prazer físico e a dor física, ainda há uma distinção, mas é só. Sem contacto com o mundo externo e com o passado, o cidadão da Oceania é como um homem no espaço interestelar, que não tem  meios de saber que direção leva para baixo ou para cima. Os governantes dêsse estado são absolutos como os faraós e os césares não puderam ser. São obrigados a evitar que os seus correligionários morram de fome em quantidades tais que se tornem inconvenientes, e são forçados a permanecer no mesmo baixo nível de técnica militar que os seus rivais; uma vez atingido esse minimo, porém, podem torcer a realidade e dar-lhe a forma que lhes aprouver.

A julgar pelos padrões das guerras passadas, a guerra de hoje é, portanto, uma impostura. É como os combates entre certos ruminantes, cujos chifres são dispostos em ângulo tal que não pódem ferir um ao outro. Entretanto, apesar de irreal, ela tem sentido. Devora os excedentes dos artigos de consumo, e ajuda a conservar a atmosfera mental especial que uma sociedade hierárquica exige. A guerra, como veremos, é agora assunto puramente interno. No passado, os grupos dominantes de todos os países, não obstante pudessem reconhecer seu interêsse comum e, em consequência, limitassem o poder destruidor da guerra, de fato combatiam, e o vencedor sempre saqueava o vencido. Em nossos dias, êles não combatem uns aos outros. A guerra é travada, pelos grupos dominantes, contra os seus próprios súditos, e o Seu objetivo não é conquistar territórios, nem impedir que os outros o façam, porém manter intacta a estrutura da sociedade. Daí, o se haver tornado equívoca a própria palavra "guerra." Seria provàvelmente correto dizer que a guerra deixou de existir ao se tornar contínua. A pressão que exerceu sôbre os seres humanos entre a Idade Neolítica e o comêço do século XX desapareceu e foi substituida por algo bem diferente. O efeito seria mais ou menos o mesmo se os três super-estados, ao invés de se guerrearem, concordassem em viver em paz perpétua, cada qual inviolado dentro das suas fronteiras. Pois nesse caso ainda seria um universo contido em si próprio, para sempre livre da influência moderadora do perigo externo. Uma paz verdadeiramente

permanente seria o mesmo que a guerra permanente. Êste

- embora a vasta maioria dos membros do Partido só o compreendam num sentido mais raso - é o significado profundo do lema do Partido: Guerra é Paz.

Winston parou de ler por um momento. Na distância remota uma bomba-foguete estourou. Ainda não sumira a deliciosa sensação de se sentir só com o livro proibido, num quarto sem teletela. A solidão e a segurança eram sensações físicas, de certo modo misturadas com o cansaço do seu corpo, a maciez da cadeira, a brisa gentil que tocava o rosto, soprando pela janela. O livro fascinava-o ou, mais exatamente, dava-lhe nova tranquilidade. De certo modo, nada lhe dizia de novo, mas isso fazia parte do seu atrativo. Dizia o que êle diria, se lhe fosse possível pôr ordem nos seus pensamentos desataviados. Era produto de um cérebro semelhante ao seu, porém -enormemente mais poderoso, mais sistemático, menos medroso. Êle percebia que os melhores livros são os que dizem o que já se sabe. Voltara ao Capítulo 1 quando ouviu o passo de Júlia na escada e levantou-se para lhe sair ao encontro. Ela largou a bolsa de ferramentas no chão e atirou-se aos braços dêle. Fazia mais de uma semana que não se viam.

- Recebi o livro - anunciou êle, quando se soltaram.

- Recebeste? Que bom! - exclamou ela, sem maior interêsse, e imediatamente se ajoelhou ao pé do fogareiro de óleo para fazer café.

Não voltaram ao assunto senão depois de terem estado meia hora na cama. A noite refrescara um pouco, levando-os a puxar a colcha. Lá de baixo vinham os ruidos familiares de botinas arrastando no lageado, e cantoria. A mulheraça de braços vermelhos, que Winston Vira na sua primeira visita, parecia fazer parte do pátio. Parecia não haver hora do dia em que não estivesse marchando entre o tanque e o varal, ora tapando a bôca com prendedores de roupa, ora abrindo os pulmões com gôsto. Júlia deitara-se de lado e parecia estar a ponto de adormecer. Êle apanhou o livro, que depusera no soalho, e acomodou-se, encostando na cabeceira da cama.

- Deves lê-lo - disse êle. - Tu também. Todos os membros da Fraternidade devem lê-lo.

- Tu lês - disse ela com os olhos fechados. - Lê alto. É o melhor. E assim vais explicando ao mesmo tempo.

os ponteiros do relógio marcavam seis, indicando as dezoito. Ainda tinham três ou quatro horas pela frente. Êle apoiou o livro nos joelhos e pôs-se a ler:

Capítulo I

Ignorância é Fôrça

Desde que se começou a escrever a história, e provàvelmente desde o fim do Período Neolítico, tem havido três classes no mundo, Alta, Média e Baixa. Têm-se subdividido de muitas maneiras, receberam inúmeros nomes diferentes, e sua relação quantitativa, assim como sua atitude em relação às outras, variaram segundo as épocas; mas nunca se alterou a estrutura essencial da sociedade. Mesmo depois de enormes comoções e transformações aparentemente irrevogáveis, o mesmo diagrama sempre se restabeleceu, da mesma forma que um giroscópio em movimento sempre volta ao equilíbrio, por mais que seja empurrado dêste ou daquele lado.

- Júlia, estás acordada? - indagou Winston.

- Estou, meu amor. Estou escutando. Vai lendo. É maravilhoso.

Êle continuou a ler: Os objetivos dêsses três grupos são inteiramente irreconciliáveis. O objetivo da Alta é ficar onde está. O da Média é trocar de lugar com a Alta. E o objetivo da Baixa, quando tem objetivo - pois é característica constante da Baixa viver tão esmagada pela monotonia do trabalho cotidiano que só intermitentemente tem consciência do que existe fóra de sua vida - é abolir tôdas as distinções e criar uma sociedade em que todos sejam iguais. Assim, por tôda a história, trava-se repetidamente uma luta que é a mesma em seus traços gerais. Por longos períodos a Alta parece firme no poder, porém mais cedo ou mais tarde chega um momento em que, ou perde a fé em si própria ou sua capacidade de governar com eficiência, ou ambas. É então derrubada pela Média, que atrai a Baixa ao seu lado, fingindo lutar pela

liberdade e a justiça. Assim que alcança sua meta, a Média joga a Baixa na sua velha posição servil e transforma-se em Alta. Dentro em breve, uma nova classe Média se separa dos outros grupos, de um dêles ou de ambos, e a luta recomeça. Das três classes, só a Baixa nunca consegue nem êxito temporário na obtenção dos seus ideais. Seria exagêro dizer que não se registra na história progresso material. Mesmo hoje, neste período de declínio, o ser humano comum é fisicamente melhor do que há alguns séculos. Mas nenhum progresso em riqueza, nenhuma suavização de maneiras, nenhuma reforma ou revolução jamais aproximou um milímetro a igualdade humana. Do ponto de vista da Baixa, nenhuma modificação hístórica significou mais do que uma mudança do nome dos amos.

Por volta dos fins do século dezenove, a recorrência do ciclo se tornára óbvia- a muitos observadores. Surgiram então escolas filosóficas que interpretavam a história como um processo cíclico e protestavam que a desigualdade era a lei inalterável da vida humana. Essa doutrina, naturalmente, sempre teve seus adeptos, mas na maneira pela qual foi então exposta havia uma transformação significativa. No passado, fôra uma doutrina especificamente da Alta a necessidade de uma forma hierárquica de sociedade. Fôra pregada por reis, aristocratas e sacerdotes, advogados, etc., que a parasitavam, e fôra geralmente amaciada por promessas de recompensa num mundo imaginário de além-túmulo. A Média, enquanto lutou pelo poder, sempre fez uso de termos tais como liberdade, justiça e fraternidade. Agora, todavia, o conceito de fraternidade humana começou a ser atacado pelos que não se encontravam em posição de mando, porém esperavam conquistá-las dentro em breve. No passado a Média fizera revoluções sob a bandeira da igualdade, estabelecendo nova tirania assim que derrubava a antiga. Com efeito, os novos grupos Médios proclamavam antecipadamente sua tirania. O socialismo, teoria aparecida no ínício do século dezenove é o último élo duma cadeia de pensamento que se iniciava nas rebeliões dos escravos antigos, ainda estava profundamente infeccionado pelo Utopismo do passado. Mas em cada variante de Socialismo que apareceu de 1900 para cá, o propósito de estabelecer a liberdade e a igualdade ia sendo abandonado cada vez mais abertamente. Os novos movimentos, que apareceram em meados do século, o Ingsoc na Oceania, o Neo-bolchevismo na Eurásia, a Adoração da Morte, como é comumente chamado, na Lestásia, tinham o propósito consciente de perpetuar a desliberdade e a desigualdade. Êsses novos movimentos, naturalmente, surgiram dos mais antigos e tenderam a conservar o nome e a render tributo à sua ideologia. Mas o propósito de todos era deter o progresso e congelar a história num dado momento. O movimento familiar do pêndulo deveria ter lugar mais uma vez, e então parar. Como de hábito, a Alta devia ser posta abaixo pela Média, que então se tornaria a Alta; desta vez porém a Alta, por meio de uma estratégia consciente, conseguiria manter permanentemente sua posição.

As novas doutrinas nasceram em parte por causa do acúmulo de conhecimento histórico, e o crescimento do sentido histórico, que mal existira antes do século dezenove. O movimento cíclico da história era agora inteligível ou parecia ser; e, sendo inteligível, era alterável. Mas a causa principal, subexistente, era que, desde o comêço do século vinte, a igualdade humana se tornara tècnicamente possível. Verdade ainda que os homens não eram iguais nos seus talentos inatos e que as funções tinham de ser especializadas de maneira que favoreciam uns indivíduos contra outros; porém não havia mais nenhuma necessidade real de distinção de classe nem de grandes diferenças de fortuna. Em épocas anteriores, as distinções não tinham sido apenas inevitáveis como desejáveis. A desigualdade era o preço da civilização. Todavia, com o desenvolvimento da produção à máquina, alterou-se o caso. Mesmo que ainda fosse necessário aos seres humanos desempenhar diferentes tipos de profissão, já não era preciso que vivessem em díferentes níveis sociais ou econômicos. Portanto, do ponto de vista dos novos grupos que estavam a pique de tomar o poder, a igualdade humana não era mais um ideal a atingir, era um perigo a evitar. Em épocas mais primitivas, quando de fato não era possível uma sociedade justa e pacífica, fôra bem fácil acreditar nela. A idéia de um paraíso terreno em que os homens vivessem juntos num estado de fraternidade, sem leis nem trabalho brutal, incendiara durante milhares de anos a imaginação humana. E essa visão tinha certo fascínio mesmo sôbre os grupos que realmente se beneficiaram de cada mudança histórica.  Os herdeiros das revoluções inglêsas, francesa e americana haviam parcialmente acreditado nas suas próprias frases a respeito dos direitos do homem, liberdade de palavra, igualdade perante a lei, e quejandas, e até haviam permitido

que sua conduta fosse por elas influenciadas, dentro de certos limites. Mas ao advir a quarta década do século vinte, eram autoritárias tôdas as principais correntes de pensamento político. O paraíso terreno se desacreditara no momento exato em que se tornára realizável. Cada nova teoria política, fosse qual fosse o seu rótulo, conduzia de novo à hierarquia e à regimentação. E no endurecimento geral de atitudes verificado por volta de 1930, práticas havia longo tempo abandonadas, em alguns casos durante séculos - prisão sem julgamento, uso de prisioneiros de guerra como escravos, execuções públicas, tortura para arrancar confissões, o uso de reféns e deportação de populações inteiras - não só voltaram a ser comuns como eram toleradas e até defendidas por pessoas que se consideravam esclarecidas e progressistas.

Só depois de uma década de guerras nacionais, guerras civis, revoluções e contra-revoluções em tôda parte do mundo é, que o Ingsoc e seus rivais emergiram como teorias políticas completas. Haviam porém sido antecipados por vários sistemas, geralmente chamados totalitários, aparecidos no mesmo século, sendo evidentes, havia muito tempo, as linhas principais do mundo que nasceria do caos existente. Fôra também bastante evidente que tipo de pessoas controlaria êste mundo. A nova aristocracia era composta, na sua maioria, de burocratas, cientistas, técnicos, organizadores sindicais, peritos em publicidade, sociólogos, professores, jornalistas e políticos profissionais. Esta gente, cuja origem estava na classe média assalariada e nos escalões superiores da classe operária, fôra moldada e criada pelo mundo estéril da indústria monopolista e do govêrno centralizado. Comparada com os seus antecessores, era menos avarenta, menos tentada pelo luxo, mais faminta de poder puro e, acima de tudo, mais consciente do que fazia e mais decidida a esmagar a oposição. Esta última diferença era cardeal. Comparadas com as que existem hoje, tôdas as tiranias do passado foram frouxas e ineficientes. Os grupos governantes foram sempre infestados, até certo ponto, de idéias liberais, e se contentavam de deixar pontas soltas por tôda parte, considerando apenas o ato patente e se desinteressando pelo raciocínio dos seus súditos. Até a igreja católica da Idade Média era tolerante, pelos padrões atuais. Em parte a razão dêste fato residia na impossibilidade dos governos do passado manterem sob constante vigilância os seus cidadãos. A invenção da imprensa, contudo, tornou mais fácil manipular a opinião pública, processo que o filme e o rádio levaram além. Com o desenvolvimento da televisão, e o progresso técnico que tornou possível receber e transmitir simultâneamente pelo mesmo instrumento, a vida particular acabou. Cada cidadão, ou pelo menos cada cidadão suficientemente importante para merecer espionagem, passou a poder ser mantido vinte e quatro horas por dia sob os olhos da polícia e ao alcance da propaganda oficial, fechados todos os outros canais de comunicação. Existia pela primeira vez a possibilidade de fazer impôr não apenas completa obediência à vontade do Estado como também completa uniformidade de opinião em todos os súditos.

Depois do período revolucionário de 1950 a 1970, a sociedade reagrupou-se, como sempre, em Alta, Média e Baixa. Mas a nova Alta, ao contrário das antecessoras, não agia por instinto: sabia o que era preciso para garantir sua posição. Havia muito tempo se percebera que a única base segura da oligarquia é o coletivismo. A riqueza e o privilégio são mais fáceis de defender quando possuidos em conjunto. A chamada "abolição da propriedade privada", que se verificou em meados do século, significou, com efeito a concentração da propriedade em número muito menor de mãos, mas com a diferença de que os novos donos eram um grupo em vez de uma massa de indivíduos. Individualmente, nenhum membro do Partido possui coisa alguma, excepto ninharias pessoais. Coletivamente, o Partido é dono de tudo na Oceania, porque tudo controla, e dispõe dos seus produtos como bem lhe parece. Nos anos que se seguiram à Revolução, conseguiu galgar quase sem oposição êsse posto de comando, porque todo o processo foi apresentado como ato de coletivização. Sempre se imaginara que se a classe capitalista fosse expropriada, o Socialismo adviria: e inquestionàvelmente os capitalistas tinham sido expropriados. Fábricas, minas, terras, casas, transporte - tudo lhes fôra tomado: e dado que -não mais eram propriedade particular, evidentemente deviam ser propriedade pública. O Ingsoc, que brotou do movimento socialista anterior e dêle herdou a fraseologia, com efeito executara o principal do programa socialista. E o resultado, previsto e pretendido antecipadamente, fôra tornar permanente a desigualdade econômica.

Mas vão mais fundo os problemas de perpetúá'r a soci'edade hierárquica. Só há quatro modos de um grupo governante abandonar o poder. Ou é vencido de fora, ou governa tão ineficientemente que as massas são levadas à revolta, ou

permite o aparecimento de um grupo médio forte e descontente, ou perde a confiança em si e a disposição de governar. Essas causas não funcionam de per si, e via de regra as quatro se apresentam em diferentes proporções. Uma classe dominante que possa se guardar contra as quatro permaneceria eternamente no poder. No fim de contas, o fator determinante é a atitude mental da própria classe dominante.

Depois de meados dêste século, desapareceu o primeiro perigo. As três potências em que o mundo se dividiu são de fato invencíveis, e só poderiam se tornar vulneráveis por meio de lentas mutações demográficas que um govêrno com amplos poderes consegue evitar fàcilmente. O segundo perigo, também é apenas teórico. As massas nunca se revoltarão espontâneamente, e nunca se revoltarão apenas por ser oprimidas. Com efeito, se não se lhes permite ter padrões de comparação -nem ao menos se darão conta de que são oprimidas. As crises econômicas decorrentes do passado eram totalmente desnecessárias e hoje já não podem se verificar, mas podem suceder outros deslocamentos igualmente grandes, sem que haja resultados políticos, por não existir maneira de articular o descontentamento e dar-lhe vasão. No que tange ao problema da superprodução, latente em nossa sociedade desde o desenvolvimento da técnica da máquina, é resolvido por meio do método da guerra cõntínua (vide Capítulo 3), também útil para manter o moral público no diapasão desejado. Do ponto de vista dos nossos atuais governantes, portanto, os únicos perigos genuinos são a formação de um novo grupo de gente capaz, sem muito trabalho, e faminta de poder, e o crescimento do liberalismo e do ceticismo nas suas fileiras governamentais. Isto é, o problema é educacional. É um problema de moldar continuamente a consciência tanto do grupo dirigente como do grupo executivo, mais amplo, que fica logo abaixo dêle. - A consciência das massas precisa ser influenciada apenas de modo negativo.

Dados estes esclarecimentos, poder-se-ia inferir, se já não se conhecesse, a estrutura geral da sociedade oceânica.

No alto da pirâmide está o Grande Irmão. O Grande Irmão é onipotente. Cada sucesso, realização, vitória, descobrimento científico, tôda sabedoria, sapiência, virtude, felicidade, são atribuídos diretamente à sua liderança e inspiração. Ninguém nunca viu o Grande Irmão. É uma cara nos tapumes, uma voz das teletelas. Podemos ter râzoável certeza de que nunca morrerá, e já existe considerável incerteza da data em que nasceu. O Grande Irmão é a forma em que o Partido resolveu se apresentar ao mundo. Sua função é a de ponte focal para o amor, medo, reverência, emoções que podem mais fàcilmente ser sentidas em relação a um indivíduo do que a uma organização. Abaixo do Grande Irmão vem o Partido Interno, com seus seis milhões de membros, ou seja, menos de dois por cento da população da Oceania. Abaixo do Partido Interno vem o Externo, que pode ser chamado de mãos do Estado, se ao primeiro se atribuir o papel de cérebro. Abaixo dêle vem a massa muda a que nos referimos habitualmente por "proles" e que talvez constitua oitenta e cinco por cento da população. Nos termos da nossa classificação anterior, os proles são a Baixa, pois a população escrava das terras equatoriais, que constantemente trocam de mãos, não é parte permanente nem necessária da estrutura.

Em princípio, não é hereditária a participação em qualquer dos três grupos. Filho de pais do Partido Interno não é, em teoria, a êle filiado. A admissão a qualquer das esferas do Partido se faz por exame, prestado aos dezesseis anos. Não há nenhuma discriminação racial, nem qualquer pronunciado domínio de uma província      sôbre outra. Encontram-se judeus, negros, sul-americanos    de puro sangue índio nos postos mais elevados do Partido,     e os administradores regionais' são sempre convocados dentre os naturais da área. Em nenhuma parte da Oceania têm os        habitantes a impressão de ser colonia administrada de uma longínqua capital. A Oceania não tem capital, e o seu chefe titular é uma pessoa cujo paradeiro todos ignoram. Não é centralizada de modo algum, à exceção da língua franca, que é o inglês, e da Novilíngua, que é o idioma oficial. Seus governantes não são ligados por laços de consangüinidade mas pela obediência a uma doutrina comum. É verdade que a nossa sociedade é estratificada, e muito rigidamente, segundo o que - à primeira vista - parecem ser linhas hereditárias. Há muitíssimo menos movimento de vai e vem entre os grupos diferentes do que acontecia no capitalismo ou mesmo nos períodos pré-industriais. Entre os dois ramos do Partido existe certa dose de intercâmbio, cujo único propósito, porém, é permitir a exclusão dos fracos do Partido Interno e a neutralização dos mais ambiciosos militantes do Partido Externo, guindados a uma esfera mais elevada. Na prática, os proletários não têm direito de entrar para o Partido. Os mais

bem dotados, que poderiam se tornar núcleos de descontentamento, são simplesmente assinalados pela Polícia do Pensamento e eliminados. Mas êsse estado de coisas não é necessàriamente permanente, nem é questão de princípio. O Partido não é uma classe no antigo sentido da palavra. Não tem por objetivo transmitir o poder aos próprios filhos; e se não houvesse outro meio de conservar os mais capazes nos postos de comando, estaria perfeitamente disposto a recrutar tôda uma geração nova das fileiras do proletariado. Nos anos cruciais, muito contribuiu para neutralizar a oposição o fato de o Partido não ser um organismo hereditário. O antigo tipo de socialista, treinado a lutar contra o que às vezes se chamava "privilégio de classe," supunha que o que não fosse hereditário não podia ser permanente. Não percebia que a continuidade de uma oligarquia não precisava ser física, nem fazia pausa para refletir que as aristocracias hereditárias sempre tiveram vida curta, enquanto que organizações auto-renovantes, como a Igreja Católica, às vezes duram centenas e mesmo milhares de anos. A essência do jugo oligárquico não é a herança de pai a filho, mas a persistência de certo ponto de vista em face do mundo e de certa maneira de viver, imposta aos vivos pelos mortos. Um grupo dominante só continua mandando enquanto consegue nomear seus sucessores. O Partido não se interessa pela perpetuação do seu sangue, mas pela perpetuação da entidade. O que importa não é quem maneja o poder, contanto que permaneça sempre a mesma a estrutura hierárquica.

Tôdas as crenças, hábitos, gostos, emoções e atitudes mentais que caracterizam a nossa época são realmente destinados a sustentar a mística do Partido e impedir que se perceba a verdadeira natureza da sociedade atual. A rebelião física não é possível no momento, nem qualquer preliminar de   rebelião. Dos proletários nada há a temer. Entregues a si mesmos, continuarão, de geração em geração e de século  a século, trabalhando, procriando e morrendo, não apenas sem qualquer impulso de rebeldia, como sem capacidade de descobrir que o mundo poderia ser diferente do que é. Só poderiam ficar mais perigosos se o progresso    da técnica industrial tornasse necessário educá-los mais; porém, como a rivalidade militar e comercial não tem mais importância, declina o nível da educação popular. As opiniões das massas, ou a ausência dessas opiniões, são alvo da máxima indiferença. Não é possível dar-lhes liberdade intelectual porque não possuem intelecto. Num membro do Partido, por outro lado, não se pode tolerar nem o menor desvio de opinião a respeito do assunto menos importante.

O membro do Partido vive, do berço à cova, sob os olhos da Polícia do Pensamento. Mesmo quando está sózinho jamais pode ter certeza do seu isolamento. Onde quer que esteja, dormindo ou acordado, trabalhando ou descansando, no banho ou na cama, pode ser examinado sem aviso e sem saber que o examinam. Nada do que êle faz é indiferente. Suas amizades, seus divertimentos, sua conduta em relação a esposa e aos filhos, a expressão de seu rosto quando está só, as palavras que murmura no sono, e até os movimentos característicos do seu corpo, é tudo ciosamente analisado. É certo que descobrem não apenas as mais minúsculas infrações, como qualquer excentricidade, por pequena que seja, qualquer modificação de hábitos, qualquer maneirismo nervoso que possa ser o sintoma duma luta íntima. Não tem liberdade de escôlha em direção alguma. Por outro lado, seus atos não são regulados pela lei nem por nenhum código legal, claramente formulado. Na Oceania não existe lei. Pensamentos e atos que, descobertos, resultariam em morte certa, não são formalmente proibidos, e os intermináveis expurgos, prisões, torturas, detenções e vaporizações não são infligidos como castigo por crimes realmente cometidos, mas são apenas a liquidação de pessoas que poderiam talvez cometer um crime no futuro. O membro do Partido não só deve ter as opiniões certas, como os instintos certos. Muitas das crenças e atitudes dêle exigidas não são nunca declaradas abertamente, e não poderiam ser esmiuçadas sem pôr a nú as contradições inerentes do Ingsoc. Se for uma pessoa naturalmente ortodoxa (em Novilíngua bempensante), saberá, em tôdas as circunstâncias, sem precisar raciocinar, qual é a verdadeira crença e a emoção desejável. Mas, de qualquer maneira, um trabalhoso treino mental, a que se submeteu na infância, e que gira em tôrno das palavras novilinguísticas crimedeter, negrobranco e duplipensar, faz com que êle não tenha nem disposição nem capacidade para pensar a fundo em coisa alguma.

Espera-se que o membro do Partido não tenha emoções pessoais nem lapsos de entusiasmo. Supõe-se que viva num frenesi contínuo de ódio aos inimigos estrangeiros e aos traidores internos, de gôzo ante as vitórias e de autodegradação perante o poderio e a sabedoria do Partido. Os desconten-

tamentos produzidos por essa vida nua e insatisfatória são deliberadamente purgados e dissipados por estratagemas tais como os Dois Minutos de ódio, e as especulações que poderiam vir a induzir uma atitude de cepticismo ou de rebeldia são antecipadamente suprimidas pela disciplina aprendida na infância. O primeiro e mais simples estágio dessa disciplina, e pelo qual passam até as crianças de tenra idade, chama-se, em Novilíngua, crimedeter. Crimedeter é a faculdade de deter, de paralisar, como por instinto, no limiar, qualquer pensamento perigoso. Inclui o poder de não perceber analogias, de não conseguir observar erros de lógica, de não compreender os argumentos mais simples e hostis ao Ingsoc, e de se aborrecer ou enojar por qualquer trem de pensamentos que possa tomar rumo herético. Crimedeter, em suma, significa estupidez protetora. Mas estupidez não basta. Pelo contrário, a ortodoxia, na sua expressão lata, exige sôbre o processo mental do indivíduo controle tão completo quanto o de um contorcionista sôbre seu corpo. Em última análise, a sociedade oceânica repousa na crença de que o Grande Irmão é onipotente e o Partido infalível. Mas como na realidade nem o Grande Irmão é onipotente nem o Partido infalível, é preciso haver uma incansável flexibilidade, de momento a momento, na interpretação dos fatos. Aqui, a palavra chave é negrobranco. Como tantas outras palavras da Novilíngua, esta tem dois sentidos mútuamente contraditórios. Aplicada a um adversário, caracteriza o hábito de afirmar impudentemente que o negro é branco, em contradição aos fatos evidentes. Aplicada a um membro do Partido, significa leal disposição de dizer que o preto é branco quando o Partido o exige. Significa, também, a capacidade de acreditar que o preto é branco, e mais ainda, de saber que o preto é branco, e de acreditar que jamais se imaginou o contrário. Isto exige contínua alteração do passado, possibilitada pelo sistema de raciocínio que na verdade abrange tudo o mais, e que em Novilíngua se chama duplipensar.

A alteração do passado é necessária por duas razões, uma das quais é subsidiária e, por assim dizer, precautória. A razão subsidiária é de que o membro do Partido, como o proletário, tolera as condições atuais em parte por não possuir padrões da comparação. Deve ser isolado do passado, da mesma forma que deve ser isolado do estrangeiro, porque lhe é necessário crer que vive melhor que os ancestrais e que o nível médio de confôrto material sobe constantemente.

Todavia, a razão mais importante para o reajuste do passado é a necessidade de salvaguardar a infalibilidade do Partido. Não significa apenas que se modifiquem discursos, estatísticas e registros de todo gênero para demonstrar que as predições do Partido são sempre certas. É que não se pode admitir, jamais, nenhuma modificação de doutrina ou de agrupamento político. Mudar de idéia, ou de política, é confessar fraqueza. Se, por exemplo, a Eurásia ou a Lestásia (qualquer das duas) for a inimiga de hoje, então aquele país deve ter sido sempre o inimigo. E se os fatos dizem coisas diferentes, então é preciso alterá-los.  Assim se reescreve continuamente a história. Essa falsificação cotidiana do passado, realizada pelo Ministério da Verdade, é tão necessária à estabilidade do regime como o trabalho de repressão e espionagem levado a cabo pelo Ministério do Amor.

A mutabilidade do passado é o dogma central do Ingsoc. Argúe-se que os acontecimentos passados não têm existência objetiva, porém só sobrevivem    em registros escritos e na memória humana. O passado é o que dizem os registros e as memórias. E como o Partido tem pleno controle de todos os registros, e igualmente do cérebro dos seus membros, segue-se que o passado é o que o Partido deseja que seja. Segue-se também que embora o passado seja alterável, jamais foi alterado num caso específico. Pois quando é re-escrito na forma conveniente, a nova versão passa a ser o passado, e nada diferente pode ter existido. Isto se aplica mesmo quando, como acontece com frequência, o mesmo sucesso tem de ser alterado várias vezes no decurso de um ano. TÔdas as vezes o Partido é detentor da verdade absoluta, e claramente o absoluto não pode nunca ser diferente do que é agora, Ver-se-á que o controle do passado depende, acima de tudo, do treino da memória. Não passa de ato mecânico certificarse de que todos os registros escritos concordam com a ortodoxia do momento. Mas também é necessário recordar que os acontecimentos se deram da maneira desejada. E se for necessário rearranjar as lembranças de cada um, ou alterar os registros escritos, então é necessário esquecer que assim se procedeu. Êsse é um truque que pode ser aprendido como se aprende qualquer outra técnica mental. É aprendido pela maioria dos membros do Partido e certamente por todos que são tão inteligentes quanto ortodoxos. Em Anticlíngua chama-se, com tôda a franqueza, "controle da realidade." Em

Novilíngua, chama-se duplipensar, conquanto duplipensar abranja muita coisa mais.

Duplipensar quer dizer a capacidade de guardar simultâneamente na cabeça duas crenças contraditórias, e aceitá-las ambas. O intelectual do Partido sabe em que direção suas lembranças devem ser alteradas; portanto sabe que está aplicando um truque na realidade; mas pelo exercício do duplipensar êle se convence também de que a realidade não está sendo violada. O processo tem de ser consciente, ou não seria realizado com a precisão suficiente, mas também deve ser inconsciente, ou provocaria uma sensação de falsidade e, portanto, de culpa. O duplipensar é a pedra basilar do Ingsoc, já que a ação essencial do Partido é usar a fraude conscienté ao mesmo tempo que conserva a firmeza de propósito que acompanha a honestidade completa. Dizer mentiras deliberadas e nelas acreditar piamente, esquecer qualquer fato que se haja tornado inconveniente, e depois, quando de novo se tornar preciso, arrancá-lo do olvido o tempo suficiente à sua utilidade, negar a existência da realidade objetiva e ao mesmo tempo perceber a realidade que se nega - tudo isso é indispensável. Mesmo no emprêgo da palavra duplipensar é necessário duplipensar. Pois, usando-se a palavra admite-se que se está mexendo na realidade; é preciso um novo ato de duplipensar para apagar essa percepção e assim por diante, indefinidamente, a mentira sempre um passo além da realidade. Em última análise, foi por meio do duplipensar que o Partido conseguiu - e, tanto quanto sabemos, continuará, milhares de anos - deter o curso da história.

No passado, as oligarquias cairam do poder por se ossificarem ou se amolecerem. Ou se tornaram estúpidas e arrogantes, deixando de se ajustar às novas circunstâncias, e foram derribadas; ou se tornaram liberais e covardes, fizeram concessões quando deviam ter usado fôrça, e por isso foram apeadas do poder. Em outras palavras, cairam pela consciência ou a inconsciencia. A grande obra do Partido é ter produzido um sistema de pensamento no qual ambas as condições podem co-existir. Não poderia ser permanente o dominio do Partido em nenhuma outra base intelectual. Para se dominar, e continuar dominando, é preciso deslocar o sentido de realidade. Pois o segredo do mando é combinar a crença na própria infalibilidade com a capacidade de aprender com os erros anteriores.

Não há quase necessidade de dizer que os mais sutis praticantes do duplipensar são os que o inventaram e sabem que é um vasto sistema de fraude mental. Em nossa sociedade, os que têm o melhor conhecimento do que sucede são também os que estão mais longe de ver o mundo tal qual é. Em geral, quanto maior a compreensão, maior a ilusão: quanto mais inteligente, menos ajuizado. Nítida ilustração desta afirmativa é o fato da histeria de guerra aumentar de intensidade à medida que se sobe na escala social. Aqueles cuja atitude em face da guerra é mais próxima da sensatez são povos submissos dos territórios disputados. Para êles a guerra não passa de uma calamidade contínua que se diverte a jogá-los de um lado para outro como um maremoto. É-Ihes completamente indiferente saber quem está ganhando. Percebem que a mudança de donos significa apenas que farão o mesmo trabalho que antes para os novos amos, que os tratarão como os tratavam os antigos. Os operários ligeiramente mais favorecidos a que chamamos "proles" têm consciencia intermitente da guerra. Quando é necessário, são instigados e levados a frenesís de ódio e medo, mas, entregues a si próprios, são capazes de esquecer, por longos períodos, que a guerra está acontecendo. É nas fileiras do Partido, e acima de tudo do Partido Interno, que se encontra o verdadeiro entusiasmo de guerra. Acreditam na conquista do mundo, com maior firmeza, aqueles que a sabem impossível. Êsse particularíssimo amálgama de opostos - sabedoria e ignorância, cinismo e fanatismo - é um dos sinais que distínguem a sociedade oceânica. A ideologia oficial abunda em contradições mesmo onde não há para elas qualquer razão prática. Assim, o Partido rejeita e vilifica qualquer princípio originalmente defendido pelo movimento socialista, e no entanto o faz em nome do socialismo. Prega um desdém pela classe operária de que não há exemplo há muitos séculos, e todavia veste os militantes num uniforme que foi característico dos trabalhadores manuais e adotado por essa razão. Mina sistemàticamente a solidariedade da família, ao passado que dá ao seu chefe um nome que é um apelo direto ao sentimento de lealdade familiar. Até os nomes dos quatro Ministérios por que somos governados ostentam uma espécie de impudência na sua deliberada subversão dos fatos. O Ministério da Paz ocupa-se da guerra, o da Verdade com as mentiras, o do Amor com a tortura e o da Fartura com a fome. Essas contradições não são acidentais,

nem resultam de hipocrisia ordinária: são exercícios conscientes de duplipensar. Pois é só reconcíliando contradições que se pode reter indefinidamente o poder. De nenhuma outra maneira seria possível quebrar o antigo ciclo. Se é preciso impedir para sempre a igualdade humana - se, como a chamamos, a Alta deve conservar permanentemente sua posição - então a condição mental deve ser a de insânia controlada.

Mas há outra questão que, até êste momento, não consideramos. E é esta: por que se deve impedir a igualdade humana? Suponhamos que tenha sido bem descrita a mecânica do processo: qual é o motivo dêsse vasto e bem calculado esfôrço para congelar a história num determinado instante?

Aqui chegamos ao segrêdo central. Como vimos, a mística do Partido e, acima de tudo, do Partido Interno, depende do duplipensar. Mais fundo do que isto, porém, há o motivo original, o instinto jamais posto em dúvida, que primeiro levou à conquista do poder e gerou o duplipensar, a Polícia do Pensamento, a guerra contínua e todo o restante equipamento necessário. Êsse motivo realmente consiste. ..

Winston dera-se conta do silêncio, como quem percebe um novo som. Parecia-lhe que Júlia estava muito quieta havia bastante tempo. Estava deitada de lado, nua da cintura para cima, com a face apoiada na mão e um cacho de cabelo castanho caido sôbre os olhos. O peito subia e descia com regularidade.

- Júlia? Nenhuma resposta.

- Júlia,  estás acordada? Nenhuma resposta. Estava dormindo. Êle fechou o livro, pousou-o cuidadosamente no soalho, deitou-se e puxou a colcha sôbre ambos.

Refletiu que ainda não aprendera o segrêdo final. Compreendia como; ainda não entendia por que. O Capítulo I, como o III, não lhe dissera nada que já não soubesse; apenas sistematizara o conhecimento que já possuía. Mas depois de lê-lo tinha maior certeza de não estar louco. Estar em minoria, mesmo em minoria de um, não era sintoma de loucura. Havia verdade e havia mentira, e não se está louco porque se insiste em se agarrar à verdade mesmo contra o mundo todo. Um raio amarelo do sol poente penetrou em oblíqua pela janela e iluminou o travesseiro. Êle fechou os olhos.

O sol no rosto e o corpo macio da moça, encostado ao seu, davam-lhe um forte sentimento de sonolência e confiança. Estava em segurança, e tudo ia bem. Adormeceu murmurando "A sanidade mental não é questão de estatística", e com a impressão de que essas palavras continham profunda sabedoria.

Quando acordou, teve a sensação de ter dormido longo tempo, porém uma consulta ao antigo relógio mostrou-lhe que eram apenas vinte e trinta. Deixou-se ficar na cama alguns instantes. Depois, a cantoria costumeira, forte e rija, subiu do quintal:

"Foi apenas uma fantasia desesperada,

Que passou como um dia de abril,

Mas um olhar, uma palavra, e os sonhos provocados,

Roubaram o meu coração gentil!"

A cantiga pueril parecia ter conservado a popularidade. Ainda se fazia ouvir por tôda parte. Sobrevivera a Canção do ódio. Júlia acordou com o barulho, espreguiçou-se como uma gata e pulou da cama.

- Estou com fome! - anunciou. - Vamos fazer um café. Bolas! O fogareiro apagou e a água esfriou! - Apanhou o fogareiro e sacudiu-o. - Está vazio.

- Creio que o velho Charrington pode arranjar um pouco de óleo.

- O engraçado é que eu verifiquei que estava cheio. Vou me vestir - acrescentou ela. - Parece que esfriou um pouco.

Winston também se levantou e vestiu-se. A voz infatigável -cantou:

"Dizem que o tempo tudo cura,

Dizem que sempre se pode esquecer,

Mas os sorrisos e lágrimas anos a fio,

Ainda fazem meu coração sofrer."

Prendendo o cinto, êle foi até a janela. O sol devia ter-se escondido atrás das casas. Já não brilhava no quintal. Os paralelepípedos estavam molhados, como se tivessem sido lavados, e êle teve a impressão de que o céu também fôra lavado, tão fresco e pálido era o azul entre as coifas das chaminés. Incansável, a mulher marchava daqui para acolá, arrolhando e desarrolhando a bôca com os prendedores, cantando e emudecendo, estendendo mais fraldas, e mais e mais. Êle se indagou se a mulher era lavadeira profissional ou apenas a escrava de vinte ou trinta netos. Júlia viera juntar-se

a êle; juntos contemplavam, com um certo fascínio, a figura reforçada da prole. Fitando a mulher na sua atitude característica, os braços grossos alcançando o varal, as ancas      muito salientes, fortes, como as de uma égua, êle achou, pela primeira vez, que ela era bonita. Antes, nunca lhe havia ocorrido que pudesse ser belo o corpo de uma mulher de cinqüenta anos, ampliado a monstruosas dimensões pelos partos sucessivos, depois enrijada, calejada pelo trabalho até ficar grosseira como um nabo muito maduro. Mas era, e afinal, pensou êle, por que não? O corpo sólido, sem contornos, como um bloco de granito, e a pele vermelha arrepiada, representavam o mesmo, em relação ao corpo de Júlia, que o fruto de uma rosa brava junto à rosa de jardim. Por que seria o fruto considerado inferior à flor?

-   Ela é bonita! - murmurou êle.

-   Tem um metro de diâmetro, nas cadeiras - disse Júlia.

-   É o seu estilo de beleza - respondeu Winston. Êle passou o braço em tôrno da cintura fina de Júlia. Do quadril ao joelho, o flanco da moça colava-se ao dêle. Dos seus corpos não sairia filho algum. Era a única coisa que nunca poderiam fazer. Só pela palavra oral, e pela comunicação mental podiam transmitir       o segredo. A mulher do quintal não tinha mente, só tinha      braços fortes, coração quente, ventre fértil. Êle gostaría de saber quantos filhos ela tivera. Talvez quinze, fàcilmente. Tivera o seu floramento momentâneo, um ano talvez, de beleza de rosa brava, e depois, inchara de repente, como um      fruto fertilizado, tornando-se dura, vermelha e rústica, e a sua vida fôra apenas lavar, esfregar, remendar, cozinhar, varrer, polir, consertar, esfregar, lavar, primeiro para os fílhos, depois para os netos, durante trinta anos sem interrupção. E no fim ainda cantava. A reverência mística que Winston por ela sentia misturava-se, de certo modo, com o aspecto do céu pálido e sem nuvens, dilatando-se, por trás das chaminés, e atingindo distâncias intermináveis. Era curioso pensar que o céu era o mesmo para todos, na Eurásia como na Lestásia, como na Oceania. E o povo que vivia sob o céu era também muito parecido - por tÔda parte, em todo o mundo, centenas ou milhares de milhões de pessoas exatamente assim, ignorantes da existência dos outros, separadas por muralhas de ódios e mentiras, e no'entanto quase exatamente iguais - gente que nunca aprendera a pensar mas guardava no coração, no ventre e nos músculos a força que um dia revolucionaria o mundo. Se esperança havia, estava nos proles! Sem ler o livro até o fim, sabia que devia ser essa a mensagem final de Goldstein. O futuro pertencia aos proles. E poderia ter a certeza

de que, quando chegasse o momento, o mundo que construiriam não lhe seria tão alheio, a êle, a Winston Smith, quanto o mundo do Partido? Sim, porque ao menos seria um mundo de sanidade mental. Onde há igualdade, há sanidade. Mais cedo ou mais tarde aconteceria: a força se transformaria em consciência. Os proles eram imortais; não era possível duvidar-se, fitando a valente figura da mulher no pátio. Por fim chegaria o seu despertar. E até que isso acontecesse, nem que levasse mil anos para acontecer, agüentariam vivos contra tudo, como os pássaros, transmitindo de corpo a corpo a vitalidade que o Partido não possuía e que não podia matar.

- Lembras-te do tordo - perguntou êle - que cantou para nós, o primeiro dia, na borda do bosque?

- Não estava cantando para nós, - disse Júlia. - Estava cantando para se distrair. Nem isso. Apenas cantava.

Os pássaros cantavam, os proles cantavam, o Partido não cantava. No mundo inteiro, em Londres e em Nova York, na África e no Brasil e nas terras misteriosas e proibidas de além-fronteiras, nas ruas de Paris e Berlim, nas aldeias da infindável planície russa, nos bazares da China e do Japão

- em toda parte a mesma figura sólida, invencível, que o trabalho e os partos sucessivos haviam tornado monstruosa- trabalhando desde nascer até morrer, e sempre cantando. Daqueles corpos robustos viria um dia uma raça de seres conscientes. O futuro era dêles. Mas era possível participar dêsse futuro mantendo o espírito vivo como êles mantinham o corpo, e passar adiante a doutrina secreta de que dois e dois são quatro.

- Nós somos os mortos - disse êle.

- Nós somos os mortos - repetiu Júlia, lealmente.

- Vós sois os mortos - ecoou uma voz de ferro, por trás dêles.

Separaram-se num pulo. As entranhas de Winston pareciam ter gelado. Podia ver todo o branco dos olhos de Júlia. cuja face adquirira um tom amarelo leitoso. A mancha de ruge, ainda nas faces, destacava-se vivamente, como se não tocasse a pele que tinha por baixo.

Sois os mortos - repetiu a voz de ferro. Foi atrás do quadro - sussurrou Júlia.

- Foi atrás do quadro - confirmou a voz. - Ficai exatamente onde estais. Não vos mexais enquanto não receberdes ordem.

Começava, por fim começava! Nada podiam fazer, excepto olhos entrefitar nos olhos.     Correr, fugir da casa antes que fosse tarde demais - essa idéia não lhes ocorreu. Incrível desobedecer à voz de ferro   da parede. Houve um estalido, como se tivesse corrido um  ferrolho, e um tilintar de vidro quebrado. O quadro caira ao chão, revelando uma teletela.

- Agora, podem enxergar a gente - disse Júlia.

- Agora podemos vos enxergar - disse a voz. - Ficai no meio do quarto, um de costas para o outro. Juntai as mãos na nuca. Não vos toqueis.

Não se tocavam, e no entanto pareceu a Winston que podia sentir o tremor do corpo de Júlia. Ou talvez fosse o seu próprio. Mal podia impedir os dentes de chocalharem, mas os joelhos não obedeciam ao seu controle. Ouviram-se botas ferradas marchando lá baixo, dentro e fora da casa.

O pátio parecia cheio de homens. Algo parecia estar rolando sôbre o lagedo. O cântico da mulher parara abruptamente. Houve um barulho metálico, prolongado, arrastado, como se a tina de roupa tivesse sido jogada de um lado a outro do quintal. Depois uma confusão de gritos furiosos que acabaram num uivo de dor.

- A casa está cercada - disse Winston.

- A casa está cercada - repetiu a voz. Ouviu Júlia trincar os dentes.

Creio que é melhor a gente se despedir      disse éla. É melhor vos despedirdes - disse a voz. E depois üma voz completamente diferente, fina, culta, e que deu a Wínston a impressão de já a haver ouvido nalguma parte:

- E por   falar nisso, já que falamos do assunto, Aí vem uma luz para te levar para a cama, Aí vem um machado para te cortar a cabeça!'

Algo caíra na cama, por trás de Winston. A ponta de uma escada fôra metida pela vidraça e quebrara o caixilho. Alguém entrava pela janela. Ouviu-se um tropel de botas que subiam por dentro da casa. O quarto encheu-se de homens robustos, de uniformes negros, botas ferradas nos pés e bastões nas mãos.

Winston já não tremia. Mal mexia os olhos. Só uma coisa lhe importava: ficar muito quieto, ficar imóvel, para não lhes dar pretexto para espancá-lo! Um homem de cara lisa, de pugilista, em que a boca não passava de uma frincha, parou diante dêle, brandindo o bastão com ar pensativo. Winston fitou-o nos olhos. Era quase insuportável a impressão de nudez, as mãos na nuca, o rosto e o corpo expostos.

O homem mostrou a ponta da língua branca, umedeceu o lugar onde deveriam estar os lábios, e passou adiante. Houve outro estrondo. Alguém apanhara o peso de papel da mesa e o arrebentara de encontro à lareira.

O fragmento de coral, uma partícula crespa de rosa, como um enfeite de bolo, rolou pelo capacho. Que pequenino, pensou Winston, como sempre fôra     pequenino! Houve uma exclamação e um baque, atrás dêle, e levou um pontapé no tornozelo que quase o fez perder o   equilíbrio. Um dos homens desferira um murro no plexo     de Júlia, fazendo-a dobrar-se em dois como um canivete. Rolava pelo chão, ofegante. Winston não ousava virar a cabeça nem um milímetro, mas de vez em quando o rosto lívido da moça entrava no seu campo de visão. Em meio ao seu terror, tinha a impressão de poder sentir a dor no seu próprio corpo, a dor fatal que no entanto era menos ansiosa que a luta de Júlia para recobrar o fôlego. Êle sabia como era: a dor terrível, agoniante, presente o tempo todo mas que não podia ainda ser sofrida porque, antes de tudo, era necessário respirar. Então dois homens a suspenderam pelos ombros e joelhos e a levaram para fora do quarto, como um saco. Winston viu-a de relance, cabeça para baixo, amarela e contorcida, olhos fechados, e ainda com uma mancha de ruge em cada face; foi a última vez que viu Júlia.

Continuou imóvel. Ainda ninguém o esbordoara. Pensamentos que surgiam por si mesmos, mas que pareciam totalmente desinteressantes, começaram a revolutear na sua cabeça. Teriam apanhado também o sr. Charrington? Que teriam feito com a lavadeira do quintal? Reparou que tinha urgente vontade de urinar, e sentiu-se ligeiramente surpreso, porque se aliviara havia apenas duas ou três horas. Observou que o velho relógio da lareira marcava nove, significando vinte e uma horas. Mas a luz lhe parecia forte demais. Já não deveria estar esmorecendo às vinte e uma, em agosto? Seria possível que êle e Júlia se tivessem enganado - dormido mais de 10 horas e acreditado que fossem vinte e trinta quando na verdade eram oito e trinta da manhã seguinte? Não prosseguiu no raciocínio. Não interessava.

Outro passo, mais ligeiro, se fez ouvir no corredor. O sr. Charrington entrou no quarto. De repente, tornou-se mais cortês a conduta dos homens de uniforme negro. Na aparência do sr. Charrington algo também se modificara. Seu olhar tombou sôbre os fragmentos do peso de papéis.

- Recolhe êsses pedaços - disse, imperiosamente.

O homem abaixou-se e obedeceu. O sotaque londrino desaparecera; Winston repentinamente percebeu de quem era a voz que ouvira, não havia muito, pela teletela. O sr. Charrington ainda usava o paletó de veludo velho; mas o cabelo, antes quase todo grisalho, enegrecera de novo. Não usava mais óculos. Lançou a Winston um olhar único, percuciente, como se lhe verificasse a identidade, e não tornou a lhe dar atenção. Ainda era reconhecível, mas não era mais a mesma pessoa.  O corpo se endireitara e êle parecia maior, mais alto. A face sofrera apenas modificações minúsculas que, no entanto, haviam operado completa transformação. As sobrancelhas negras eram menos bastas, as rugas tinham sumido, e tôda a fisionomia parecera se alterar; até o nariz parecia mais curto. Era o rosto alerta e frio de um homem de seus trinta e cinco anos. E a Winston ocorreu que pela primeira vez na vida punha os olhos num componente da Polícia do Pensamento.

18

NÃO SABIA ONDE ESTAVA.     PRESUMIVELMENTE NO Ministério do Amor; mas não havia jeito de o verificar.

Encontrava-se numa cela de alto pé-direito, sem janelas, de paredes de porcelana branca e brilhante. Lâmpadas ocultas inundavam-na de luz fria, e havia um zumbido baixo, constante, que êle supôs ter relação com o sistema de ar. Um banco, ou prateleira, de largura apenas suficiente para se sentar, circundava tôda a parede, interrompendo-se apenas na porta e, em frente à porta, um vaso de privada, sem tampo. Havia quatro teletelas, uma em cada parede.

Sentia uma dor surda na barriga. Sofria desde que o haviam metido no caminhão fechado e levado embora. Mas também sentia fome, uma fome horrível, devoradora. Vinte e quatro horas talvez se haviam passado desde que comera por último, quem sabe, trinta e seis. Ainda não sabia, provàvelmente jamais saberia, se fôra preso de manhã ou de noite. E desde que fôra preso não lhe haviam dado de comer.

Estava sentado, tão imóvel quanto possível, no banco estreito, as mãos pousadas nos joelhos. Já aprendera a sentar quieto. Se fizesse movimentos inesperados, gritavam-lhe da teletela. Mas a fome crescia. O que mais ambicionava era um pedaço de pão. Teve a idéia de que sobravam umas migalhas nos bolsos da roupa. Era possível até - pensava nisso porque de vez em quando algo lhe parecia fazer cócegas na perna - que tivesse um bom pedaço de côdea. Por fim, a tentação venceu o medo. Meteu a mão no bolsão.

Smith! - berrou uma voz da teletela. - 6079 Smith W! Tira a mão do bolso!

Tornou a ficar imóvel, mãos cruzadas no joelho. Antes de ter sido levado para ali, haviam-no conduzido a outro lugar, que devia ser uma prisão comum, ou um depósito

temporário utilizado pela patrulha. Não sabia quanto tempo lá ficara; algumas horas, ao menos; sem relógio e sem luz do sol era difícil calcular o tempo. Era um lugar barulhento, mal cheiroso. Tinham-no trancafiado numa cela semelhante à que estava agora, mas imunda, e às vezes cheia, com dez ou quinze pessoas. A maioria era de criminosos comuns, porém havia alguns presos políticos. Êle sentara-se em silêncio junto à parede, roçado pelos corpos sujos, muito cheio de medo e de dor de- barriga para se interessar pelo ambiente, mas ainda notando a tremenda diferença de comportamento entre os presos do Partido e os outros. Os presos do Partido estavam sempre calados e aterrorizados, porém os criminosos comuns pareciam não ligar a mínima a ninguém. Insultavam os guardas aos gritos, resistiam desesperadamente quando os seus bens eram arrolados, escreviam palavras obscenas no chão, comiam alimento contrabandeado que tiravam de misteriosos esconderijos das roupas, e até faziam as teletelas calar, gritando em uníssono, quando o aparelho tentava restaurar a ordem. Por outro lado, alguns pareciam ter boas relações com os guardas, a quem chamavam por apelidos, e tentavam passar cigarros pela vigia da porta. Os guardas, também, tratavam os criminosos comuns com certo respeito, mesmo quando lhes davam uns safanões. Falava-se muito dos campos de trabalhos forçados, aos quais a maioria dos prisioneiros esperava ser enviada. "Tudo azul" nos campos, afirmaram-lhe, contanto que tivesse bons contactos e conhecesse os truques. Havia suborno, favoritismo e roubalheira de todo gênero, havia homossexualidade e prostituição, havia até álcool ilícito, distilado de batatas. Os cargos de confiança eram dados apenas aos criminosos comuns, especialmente gangsters e os assassinos, que formavam uma espécie de aristocracia. Todo trabalho sujo era feito pelos políticos.

Havia um contínuo fluxo e refluxo de presos de todo gênero: vendedores de entorpecentes, ladrões, bandidos, mercadonegristas, bêbados, prostitutas. Alguns bêbados eram tão violentos que os companheiros de cela tinham de juntar forças para dominá-los. Uma mulheraça de uns sessenta anos, de enormes seios como pêndulos, e grossas melenas de cabelo branco esgrouviado, foi levada para a cela, gritando e dando pontapés, por quatro guardas que a seguravam pelos braços e pernas. Arrancaram as botinas com que ela tentara atingi-los e jogaram-na no colo de Winston, quase quebrando seus fêmures. @A mulher ergueu-se e cumprimentou-lhes a saída com um grito de "Filhos da p... !" Depois, percebendo que estava sentada nalguma coisa incômoda, escorreu dos joelhos de Winston para o banco.

- Desculpe, queridinho. Eu não sentaria em cima de você, foram os sacanas que me botaram aí. Não sabem nem tratar uma senhora, sabem? - Fez uma pausa, bateu no peito, e arrotou. - Perdão, não estou me sentindo muito bem.

Curvou-se para frente e vomitou copiosamente no chão.

- Tá melhor, assim - disse, tornando a endireitar-se, fechando os olhos. - Nunca segurar a vontade, é o que eu digo. Soltar tudo enquanto está fresco no estômago.

Retemperou-se, tornou a olhar para Winston e ímediatamente pareceu ter simpatizado com êle. Passou por seus ombros um braço enorme e puxou-o para perto, fungando cerveja e vômito na cara dêle.

Como é seu nome, queridinho? Smith. Smith? Engraçado! Meu nome também é Smith! -

E acrescentou, sentimental: - Eu podia ser sua mãe!

Podia, pensou Winston. Tinha mais ou menos a idade e o físico, e era provável que as pessoas mudassem muito em vinte e cinco anos de trabalhos forçados.

Ninguém mais lhe falara. Surpreendentemente, os criminosos comuns nem tomavam conhecimento dos políticos, a quem chamavam de "politiqueiros," com uma espécie de desprezo desinteressado. Os prisioneiros do Partido pareciam amedrontados demais para falar a quem quer que fosse, principalmente aos companheiros de infortúnio. Só uma vez, quando duas militantes foram apertadas de encontro ao banco é que êle entreouviu, em meio ao vozerio geral, umas palavras sussurradas à pressa; e em particular uma referência, que não compreendeu, à sala "um-zero-um".

Havia talvez duas ou três horas que o tinham levado para ali. Não o largava a dor surda da barriga, que no entanto ora melhorava, ora piorava, e os seus pensamentos se expandiam ou contraíam. Quando piorava, só pensava na dor, e no seu desêjo de comer. Quando melhorava, dominava-o um medo pânico. Havia momentos em que com tamanha clareza previa o que lhe ia acontecer, que o coração galopava e parava de respirar. Sentia o golpe dos bastões nos cotovelos e das botas ferradas nas canelas; via-se rojando no chão, pedindo misericórdia aos gritos, por entre os dentes

partidos. Mal pensava em Júlia. Não podia fixar a mente em Júlia. Amava-a e não a trairia; mas era apenas um fato, sabido como as leis da matemática. Não sentia amor por ela, e quase não tinha vontade de saber o que lhe estava acontecendo. Com muito maior frequência pensava em O'Brien, com um raio de esperança. O'Brien devia saber que êle fôra preso. A Fraternidade, dissera êle, nunca procurava salvar seus membros. Mas havia a lâmina de barba; mandariam uma lâmina, se pudessem. Cinco segundos talvez se passassem antes dos guardas poderem levá-lo para a cela. A lâmina haveria de mordê-lo com uma espécie de frieza de queimar, e os dedos que a segurassem seriam lanhados até o osso. Tudo voltava ao corpo doente, que se encolhia, trêmulo, ante a menor dor. Não tinha certeza de usar lâmina, mesmo  que tivesse tempo. Seria mais natural existir de momento a momento, aceitar mais dez minutos de vida mesmo com a certeza de mais tortura.

Às vezes, tentava calcular o número de tijolos de porcelana nas paredes da céla. Não seria difícil, porém sempre perdia a conta num ponto ou noutro. O mais das vezes perguntava a si mesmo onde estaria, e que horas seriam. Ora tinha a certeza de ser dia claro lá fora, ora sentia igual certeza de ser noite fechada. Sabia instintivamente que naquele lugar as luzes jamais apagariam. Era o lugar sem treva: agora via porque O'Brien parecera reconhecer a alusão. No Ministério do Amor não havia janelas. Sua cela podia ser no meio do edifício, ou junto a uma parede externa; podia ser dez andares abaixo do solo, ou trinta acima. Deslocava-se mentalmente de um lugar para outro, tentando determinar sensoriamente se estava num andar alto ou enterrado num subsolo.

De fóra se ouviu o ruido de botas marchando. A porta de aço abriu-se com estrépito. Um jovem oficial, uma figura esbelta, de uniforme negro que brilhava nos couros polidos, e cujo rosto magro parecia uma máscara de cera, cruzou o limiar. Fez um gesto aos guardas, mandando que trouxessem o preso. O poeta Ampleforth foi atirado dentro da cela. A porta tornou a fechar-se com ruido.

Ampleforth fez um ou dois movimentos incertos, de um lado para outro, como se imaginasse haver outra porta de saída; depois começou a vaguear pela cela. Ainda não percebera a presença de Winston. Seu olhar perturbado examinava a parede, a um metro acima da cabeça de Winston.

Não tinha sapatos e os artelhos grandes e sujos escapavam pelos buracos das meias. Também fazia vários dias que não se barbeava. Uma barba rala cobria-lhe as faces, dando-lhe um ar de rufião que destoava do corpanzil balofo e dos seus movimentos nervosos.

Winston sacudiu um pouco da sua letargia. Devia falar com Ampleforth, e arriscar-se a um grito da teletela. Era até concebível que Ampleforth lhe trouxesse a lâmina.

- Ampleforth - chamou. Não houve berro da teletela. Ampleforth parou, um tanto assustado. Lentamente, focalizou os olhos em Winston.

- Ah, Smith! Tu também?

- Por que te prenderam?

- Para te dizer a verdade. . . - sentou-se desajeitado no banco diante de Winston. - Só há um delito, não é?

- E o cometeste?

- Aparentemente. Levou a mão à testa e apertou as têmporas por um momento, como se tentasse recordar de algo.

- Essas coisas acontecem, - começou, vagamente. -

Consegui recordar um caso... um caso possível. Foi uma indiscrição, sem dúvida. Estávamos produzindo uma edição definitiva dos poemas de Kipling. Deixei que a palavra "Deus" ficasse no fim de um verso. Não pude evitá-lo! -acrescentou, quase indignado, levantando o olhar para Winston. - Era impossível modificar o verso. A rima era "seus." Durante dias e dias quebrei a cabeça. Não havia outra rima possível.

Modificou-se a expressão de seu rosto.      Sumira-se o desgosto, e por um momento êle pareceu quase satisfeito. Uma espécie de calor intelectual, a alegria do pedante que descobriu um fato inútil, brilhava por entre os pelos sujos e crescidos.

- Já te ocorreu que tôda a história da poesia inglêsa foi determinada pelo fato de escassearem as rimas?

Não, aquilo jamais ocorrera a Winston. E, na circunstância em que se encontrava, não lhe pareceu muito importante nem interessante.

- Sabes que horas são? - indagou. Ampleforth tornou a olhá-lo espantado.

- Nem pensei nisso. Prenderam-me... há uns dois ou três dias. - Seus olhos rodearam as paredes, como se esperasse encontrar uma janela nalguma parte. - Neste

lugar não há diferença entre noite e dia. Não sei como se pode calcular o tempo.

Conversaram sem propósito alguns minutos e então, sem razão aparente, um grito da teletela mandou que se calassem. Winston sentou-se quieto, braços cruzados. Ampleforth, muito grande para sentar-se cômodamente no banco estreito, a todo momento mudava de posição, segurando com as mãos ossudas ora um joelho ora outro. A teletela bradoulhe que ficasse quieto. Passou-se o tempo. Vinte minutos, uma hora - era difícil julgar. De novo se ouviu o barulho de botas lá fora. As entranhas de Winston se contraíram. Breve, muito breve, talvez dali a cinco minutos, talvez naquele instante, o barulho das botas traria a notícia de que chegara sua vez.

A porta abriu-se. O oficial de cara fria entrou na cela. Com a mão indicou Ampleforth.

- Sala 101 - ordenou. Ampleforth saiu marchando desàjeitado entre os guardas, fisionomia vagamente perturbada, mas sem compreender.

Passou-se um período que pareceu longo. Voltara a dor na barriga de Winston. Seu pensamento insistia em cair nos mesmos sulcos, como uma bola que repetidas vezes cai nos mesmos buracos. Tinha apenas seis idéias. A dor na barriga; um pedaço de pão; sangue e grito; O'Brien; Júlia; a lâmina de barba. Houve novo espasmo nas entranhas. As botas ferradas aproximavam-se. Quando a porta se abriu, a corrente que fez trouxe uma onda de cheiro penetrante de suor frio. Parsons entrou na cela. Estava de shorts caqui e camisa esporte.

Desta vez Winston ficou tão assombrado que esqueceu suas mazelas.

- Tu aqui! - exclamou. Parsons lançou a Winston um olhar em que não havía nem interêsse nem surpresa, mas apenas aflição. Pôs-se a andar nervoso para um lado e outro, evidentemente incapaz de ficar imóvel. Cada vez que endireitava os joelhos gorduchos via-se que tremiam. Tinha os olhos arregalados, como se não conseguisse desviar a vista de alguma coisa à distância.

- Por que te trouxeram? - perguntou Winston.

- Crimidéia! - respondeu Parsons, quase soluçando.

O tom de sua voz implicava ao mesmo tempo completa admissão de culpa e uma espécie de horror incrédulo de que tal palavra pudesse aplicar-se a êle. Parou diante de Winston e pôs-se a apelar para êle, ansioso: - Achas que me fusilam, hein, velhinho? Não fusilam a gente que não fez nada mal, hein... só pensou, e quem segura o pensamento? Sei que fazem justiça. Oh, eu tenho confiança na justiça! Conhecem a minha ficha, não conhecem? Tu sabes quem eu era. Não era mau sujeito. Não tinha muita inteligência, mas tinha boa vontade. Fazia o que podia pelo Partido, não fazia? Será que me livro com cinco anos? Ou dez? Um sujeito como eu podia ser muito útil num campo de trabalhos. Achas que me fusilam por ter descarrilado uma vez só?

- És culpado?

- Naturalmente sou! - gritou Parsons, com uma olhadela servil à placa de metal. - Não crês que o Partido prenda inocentes? - A cara de rã acalmou-se um pouco, chegou a tomar uma expressão sentimonial. - Crimidéia é uma coisa horrível, velho - afirmou, sentencioso. - É insidiosa. Pode te pegar sem que te dês conta. Sabes como foi que me pegou? No sono. Sim, é fato. Lá estava eu, trabalhando duro, procurando fazer meu dever, sem nunca saber que tivesse nada de 'mau na cabeça. E daí comecei a falar dormindo. Sabes o que me ouviram dizendo?

Baixou a voz, como alguém que se vê obrigado a pronunciar uma obscenidade, por ordem do médico ou do juiz.

- Abaixo o Grande Irmão! Sim, foi o que eu disse. E disse muitas vezes, ao que parece. Cá entre nós, meu velho, ainda bem que me pegaram antes que fosse além. Sabes o que vou dizer a êles quando comparecer no tribunal? "Obrigado," direi, "obrigado por me salvarem antes que fosse tarde demais."

- Quem te denunciou? - perguntou Winston.

- Mnha filhinha - respondeu Parsons, com uma espécie de melancólico orgulho. - Escutou pelo buraco da fechadura. Ouviu o que eu disse e contou às patrulhas no dia seguinte. Sabidinha aquela guria de sete anos, hein? Não me queixo dela. Com efeito, tenho orgulho dela. Mostra, afinal, que lhe ensinei o que devia.

Deu mais algumas passadas para um lado e outro, olhando várias vezes a privada, de soslaio. De repente, arriou os calções.

-   Desculpe, velho. Não posso mais. É a espera. Pousou o volumoso trazeiro no vaso da privada. Winston cobriu o rosto com as mãos.

- Smith! - gritou a voz da teletela. - 6079 Smith W! Descobre o rosto! Nada de esconder o rosto!

Winston descobriu o rosto. Parsons usou o lavatório, ruidosa e abundantemente. Verificou-se depois que a descarga es 'tava defeituosa, e a cela fedeu abominàvelmente durante muitas horas.

Parsons foi removido. Outros presos chegaram e partiram misteriosamente. Uma presa foi destinada à "Sala 101" e pareceu encolher-se e mudar de côr quando ouviu a ordem. Chegou um momento em que, se o tivessem levado ali de manhã, seria de tarde; se o tivessem levado de tarde seria meia-noite. Havia na cela seis presos, entre homens e mulheres. Todos sentados, calados e imóveis. Diante de Winston estava um homem sem queixo e sem dentes que parecia exatamente um grande roedor inofensivo.           Suas bochechas gordas e flácidas pareciam guardar comida, e os olhos cinza pálido saltavam timidamente de rosto em rosto, fugindo à pressa quando encontravam os de outrem.

A porta abriu-se e apareceu outro prisioneiro cujo aspecto deu um arrepio em Winston. Era um homem comum, de aparência medíocre, que poderia ser engenheiro ou técnico dalguma coisa. O que espantava.era a magreza do seu rosto. Parecia uma caveira. Por causa da magreza, a boca e os olhos tinham ficado desproporcionais, e os olhos pareciam cheios de ódio homicida, incontrolável, a' alguém ou alguma coisa.

O homem sentou-se no banco a pequena distância de Winston. Êle não tornou a olhá-lo, porém enxergava a cabeça atormentada, escaveirada, como se a tivesse diante de si. De repente descobriu do que se tratava. O homem estava morrendo de fome. A mesma idéia deve ter ocorrido quase simultâneamente a todos na cela. Houve um ligeiro movimento no banco inteiro. Os olhos do homem sem queixo pousavam a medo no escaveirádo e logo fugiam, como envergonhados; mas a atração 'era irresistível. Dali a pouco, começou a remexer-se no banco. Por fim levantou-se, atravessou a cela desajeitado, meteu a mão no bolso do macacão e, com ar émbaraçado, estendeu um pedaço de pão sujo ao homem-caveira.

Houve um rugido furioso, ensurdecedor, da teletela. O sem queixo recuou num pulo. O homem-caveira escondera as mãos nas costas, como se a demonstrar ao mundo que recusava o presente.

- Bumstead! rugiu a voz. - 2713 Bumstead J! Solta êsse pedaço de pão!

O homem sem queixo derrubou o pão.

- Fica de pé onde estás - comandou a voz. - Olha para a porta. Não te mexas.

O homem obedeceu. As grandes bochechas flácidas tremiam  sem controle. A porta abriu-se com estrépito. O jovem oficial entrou e afastou-se para o lado, dando passagem a um guarda baixo e atarracado,'com enormes braços e ombros. Postou-se diante do homem e então, a um sinal do oficial, vibrou tremendo murro na boca sem queixo. A força foi tamanha que a vítima pareceu voar. O corpo foi lançado do outro lado da cela, chocando-se na base da privada. Por um momento, ali ficou, o sangue escuro escorrendo da boca e do nariz. Um gemido muito débil, que parecia inconsciente, se fez ouvir. Depois rolou e levantou-se hesitante, apoiando-se nas mãos e joelhos. Numa torrente de sangue e saliva, cairam-lhe da boca as duas metades da dentadura.

Os presos deixaram-se ficar, imóveis, mãos postas nos joelhos. O homem sem queixo voltou para o seu lugar. De um lado, a carne do rosto estava escurecendo. A boca inchara, transformando-se numa massa informe, côr de cereja, com um orifício negro no meio. De vez em quando um pouco de sangue pingava no peito do macacão. Seus olhos cinzentos continuavam a saltar de face em face, mais culpados que nunca, como se tentasse descobrir até onde o desprezavam os outros, pela sua humilhação.

A porta abriu-se. Com um pequeno gesto o oficial indicou o homem de cara de caveira.

- Sala 101. Ao lado de Winston houve uma exclamação e um movimento brusco. O homem atirara-se de joelhos ao chão, e erguia as mãos postas.

- Camarada! Oficial! - exclamou. - Não tens que me levar para aquele lugar. Já não te disse tudo? Que mais queres saber? Confessei tudo, não sobrou nada. Dize-me o que queres que eu confesso. Escreve e eu assino... qualquer coisa! Mas não a sala 101!

- Sala 101 - repetiu o oficial. A cara do homem, já muito pálido, ficou duma côr que Winston não acreditava possível. Era um tom verde, positivo, inconfundível.

- Faze comigo o que quiseres! - urrou. - Há semanas que venho passando fome. Deixa-me morrer de fome. Fusila-me, enforca-me. Condena-me a vinte e cinco anos. Alguém mais que queres que eu denuncie? Dize o nome e eu confesso imediatamente. Não me importa quem seja, nem o que faças com êle. Tenho mulher e três filhos. O mais velho ainda não tem seis anos. Podes pegar todos êles e degolá-los na minha frente, que eu olho sem virar a cabeça. Mas a sala 101, não!

- Sala 101.

O homem, frenético, olhou em torno, examinando os outros presos, como se acreditasse poder oferecer outra vitima no seu lugar. Seus olhos pousaram na face ensanguentada do homem sem queixo. Estendeu o braço esquelético. É aquele que deves levar, e não eu! - gritou. - Não ouviste o que êle disse depois que o esmurraram. Dá-me uma oportunidade e eu te contarei tudo, palavra por palavra. É êle que é contra o Partido, eu não! - Os guardas deram um passo à frente. A voz do homem elevou-se a um urro.

- Não ouviste o que êle disse! - repetiu. - A teletela não estava funcionando direito. É êle que queres. Leva-o, não a mim!

Os dois guardas robustos iam tomá-lo pelos braços, mas nesse momento exato êle se atirou ao chão da cela e agarrouse a uma das pernas de ferro que amparava o banco. Pôs-se a uivar, como um animal. Os guardas seguraram-no, para puxá-lo dali, mas êle resistiu com força espantosa. Durante uns vinte segundos, talvez, os dois atletas forcejaram. Os presos continuavam sentados, imóveis, olhando para frente. Os uivos pararam; o homem não tinha fôlego para outra coisa, além de segurar-se. Ouviu-se então um brado diferente. Um pontapé de um dos guardas partira-lhe os dedos da mão. Obrigaram-no a levantar-se.

- Sala 101 - repetiu o oficial.

O homem foi levado embora, cambaleando, cabisbaixo e alisando a mão esmagada.

Passou-se muito tempo. Se o homem caveira tivesse sido levado à meia-noite, era de manhã; se o fosse de manhã, era de tarde. Winston estava só, e assim tinha permanecido algumas horas. A dor de sentar-se no banco estreito era tanta que por fim êle se levantou e passeou um pouco, sem que a teletela o censurasse. O pedacinho de pão estava ainda onde o outro a derrubara. A princípio, foi preciso um grande esfôrço para não o olhar mas depois a fome deu lugar à sêde. Sentia um gosto ruim na boca pastosa. O zumbido constante e a luz branca tinham provocado uma espécie de fraqueza, uma sensação de vazio na cabeça. Levantava-se porque não podia mais agüentar a dor nos ossos, e então tornava a sentar-se, quase imediatamente, porque se sentia tonto demais para ficar de pé. O terror voltava sempre que conseguia controlar um pouco suas sensações físicas. Às vezes, com diminuida esperança, pensava em O'Brien e na lâmina de barba. Era imaginável que viesse escondida na comida, se é que lhe iam dar de comer. Pensou vagamente em Júlia. Devia estar sofrendo nalguma parte, talvez mais do que êle. Talvez estivesse gritando de dor, naquele instante. Imaginou: "Se eu pudesse salvar Júlia dobrando a minha dor, seria capaz? Sim, seria." Mas não passava de uma decisão intelectual, tomada por saber que devia tomá-la. Não a sentia. Naquele lugar não era possível sentir nada, excepto dor e presciência da dor. Além disso, era possível desejar, por qualquer motivo, que a dor aumentasse, quando já a sofria bastante? Era uma pergunta que ainda não podia responder.

As botas fizeram-se ouvir de novo. A porta abriu-se. O'Brien entrou.

Winston levantou-se num pulo. O choque baniu todas suas precauções. Pela primeira vez, em muitos anos, esqueceu-se da presença da teletela.

- Também te pegaram! - exclamou.

- Pegaram-me há muito tempo - disse O'Brien, com leve ironia, quase arrependida. Deu um passo para o lado e por trás dêle apareceu um guarda- de peito largo, com um longo bastão negro na mão.

- Sabias disto - disse O'Brien. - Não te iludas, Winston. Sabias... sempre soubeste.

Sim, êle agora via que sempre o soubera. Mas não houve tempo para pensar. Só tinha olhos para o bastão do guarda. Podia cair em qualquer parte: no alto da cabeça, na ponta da orelha, no braço, no cotovelo...

O cotovelo! Caira de joelhos, quase paralisado, protegendo com a mão o cotovelo atingido. Tudo explodira numa luz amarela. Inconcebível, inconcebível que um só golpe produzisse tamanha dor! O amarelo se foí e êle pôde enxer-

gár os dois a contemplá-lo. O guarda ria-se das suas contorções. Ao menos uma dúvida fôra esclarecida. Nunca, por nenhuma razão, se poderia desejar que a dor aumentasse. Da dor, só se podia desejar uma coisa, que parasse. Nada no mundo era tão horrível como a dor física. Em face da dor não há heróis, não há heróis, êle pensou e tornou a pensar, torcendo-se no chão, segurando à toa o braço esquerdo invalidado.

19

Estava deitado nalguma coisa que parecia uma cama de campanha, mais alta porém e sobre a qual estava fixado de maneira a não poder se mexer. Caía-lhe no rosto uma luz que parecia mais forte que a habitual. O'Brien estava de pé junto dêle, fitando-o atentamente. Do outro lado havia um homem de avental branco, segurando uma seringa de injeção.

Mesmo depois de abrir os olhos só aos poucos foi compreendendo a forma das coisas. Tinha a impressão de ter chegado ali a nado, vindo de um mundo muito diferente, um distante mundo subaquático. Quanto tempo estaria ali, não sabia. Desde o momento da prisão não vira nem trevas nem a luz do dia. Além disso, sua memória não era contínua. Havia momentos em que a consciencia, mesmo a consciência que se tem durante o sono, se interrompera de todo, recomeçando depois de um intervalo em branco. E não havia meio de saber se êsses intervalos eram de dias, semanas ou apenas segundos.

O pesadelo começara por aquele primeiro golpe no cotovelo. Mais tarde, verificaria que aquilo tudo não passava de preliminar, de interrogatório rotineiro, a que todos os presos eram submetidos. Havia uma longa série de crimes- espionagem, sabotagem, etcétera - que todo mundo devia confessar, por praxe. A confissão era uma formalidade, embora a tortura fosse real. Quantas vezes fôra espancado, e durante quanto tempo, não conseguia se lembrar. Havia sempre cinco ou seis homens de uniforme negro ocupados com êle, simultâneamente. Às vezes eram os punhos, outras os bastões, ou varas de aço, ou botas. Ocasiões havia em que rolava pelo chão, desavergonhadamente, como um animal,

encolhendo o corpo daqui e dali, num esforço infindo, inútil, de fugir aos pontapés, e com isso apenas atraindo mais e mais coices, nas costelas, na barriga, nos cotovelos, nas canelas, nas vírilhas, nos testículos, no cócix. Havia ocasiões em que a pancadaria continuava longamente, até o cruel, perverso, imperdoável, não ser mais a brutalidade dos guardas, mas o fato de não poder perder os sentidos à vontade. Doutras, a coragem de tal modo lhe fugia que começava a implorar miserícórdia antes dos golpes começarem, e quando a simples vista de um punho fechado era suficiente para levá-lo a confessar  um chorrilho de crimes reais e imaginários. Havia vezes em que começava com a decisão de nada confessar, em que cada   palavra lhe tinha de ser arrancada entre gemidos de dor, e outras em que tentava débilmente resistir mais um pouco, dizendo: "Confessarei, mas ainda não. Devo agüentar até que a dor se torne insuportável. Mais três pontapés, mais dois, e então direi o    que querem." Freqüentemente, era espancado até não poder mais se suster em pé, sendo então atirado como um saco de batatas ao chão de pedra duma cela; depois de recobrar-se algumas horas, levavam-no de novo e tornavam a bater-lhe. Havia também períodos mais longos de repouso. Lembrava-se vagamente dêles, porque os passava dormindo ou numa espécie de estupor. Lembrava-se duma cela como uma cama de tábua, uma espécie de prateleira embutida na parede, uma bacia de folha, e refeições de sopa quente, pão e às vezes café. Lembrava-se de um barbeiro carrancudo que lhe cortou o cabelo e escanhoou o queixo, e homens antipáticos, muito ativos nos seus aventais brancos, a tomar-lhe o pulso, anotar-lhe os reflexos, revirar-lhe as pálpebras, apalpar-lhe o corpo todo à cata de fraturas, e a enterrar-lhe agulhas no braço para fazê-lo dormir.

Os espancamentos diminuiram, e tornaram-se mais uma ameaça, um horror a que poderia ser recambiado a qualquer momento se suas respostas não satisfizessem. Agora, os inquisidores 'não eram os monstros de uniforme negro, mas intelectuais do Partido, homenzinhos rotundos de movimentos rápidos e óculos brilhantes, que se ocupavam dêle em rodizio durante períodos que duravam - êle calculou, sem certeza - dez e doze horas, sem interrupção. Êsses interrogadores providenciavam para êle que sentisse uma dor constante, embora ligeira; mas não era a dor a sua maior arma. Davam-lhe tapas na cara, torciam-lhe as orelhas, puxavam-lhe o cabelo, obrigavam-no a ficar de pé numa só perna, recusavam-se a dar licença para urinar, focavam lâmpadas fortes nos seus olhos, até lacrimejarem; porém o propósito disto tudo era apenas humilhá-lo e destruir-lhe o poder de raciocínio e argumentação. Sua verdadeira arma era o interrogatório impiedoso que continuava, hora após hora, arquitetando armadilhas, fazendo-o tropeçar aqui e ali, torcendo tudo quanto dissesse, condenando-o a cada passo pelas suas mentiras e contradições, até êle começar a chorar, tanto de vergonha como de fadiga nervosa. Freqüentemente, faziam-no chorar até meia-dúzia de vezes numa única sessão. A maior parte do tempo insultavam-no aos brados e, a cada hesitação, o ameaçavam de devolução aos guardas; havia também momentos em que de repente mudavam de tom, chamavam-no camarada, apelavam para êle em nome do Ingsoc e do Grande Irmão, e lhe perguntavam patèticamente se não tinha suficiente lealdade ao Partido para desejar desfazer o mal que fizera. Quando tinha os nervos em frangalhos, depois de horas e horas de interrogatório, até êsse apelo podia reduzi-lo a um chôro fungado. Por fim, as vozes insistentes o venciam mais completamente do que as botas e os punhos dos guardas. Tornou-se apenas uma bôca que dizia, uma mão que assinava, tudo quanto lhe fosse exigido. Sua única preocupação era descobrir o que desejavam que confessasse e confessar depressa, antes que a tortura recomeçasse. Confessou o assassinio de eminentes membros do Partido, a distribuição de panfletos sediciosos, desfalque de fundos públicos, venda de segredos militares, sabotagem de todo gênero. Confessou ter sido espião a soldo do govêrno lestasiático desde 1968. Confessou-se crente religioso, admirador do capitalismo e pervertido sexual. Confessou haver assassinado a espôsa, embora soubesse, como certamente deviam saber também os interrogadores, que ela ainda vivia. Confessou ter-se mantido em contacto pessoal com Goldstein, havia muitos anos, e ter sido membro duma organização clandestina que incluía quase todos os seres humanos que jamais conhecera. Era mais fácil confessar tudo e implicar todos. Além disso, de certo modo, era tudo verdade. Era verdade que fôra inimigo do Partido, e aos olhos do Partido não havia distinção entre o pensamento e o ato.

Havia também recordações de outro gênero. Destacavam-se, desligadas, no seu espírito, como quadros rodeados de preto.

Estava numa cela que tanto podia ser clara como escura, porque não enxergava mais que um par de olhos. Perto dêle, um instrumento qualquer tiquetaqueava lentamente, com regularidade. Os olhos aumentavam de tamanho e luminosidade. De repente, êle se desprendeu donde estava, mergulhou nos olhos e foi engulido.

Estava amarrado numa cadeira, cercado de mostradores, sob luzes ofuscantes. Um homem de branco consultava os mostradores. Lá fora ouviu-se o barulho de botas ferradas. A porta abriu-se com estrépito. O oficial de máscara de cera entrou, seguido por dois guardas.

Sala 101 - disse o oficial.

O homem de avental branco não se voltou. Nem olhou para Winston; só lhe interessavam os mostradores.

Estava rolando por um enorme corredor,        de um quilômetro de extensão, inundado de gloriosa luz dourada, rindo às gargalhadas e gritando confissões a plenos pulmões. Confessava tudo, até mesmo o que conseguira prender durante a tortura. Estava contando tôda a história da sua vida a um público que já a conhecia. Com êle estavam os guardas, os outros interrogadores, os homens de avental branco, O'Brien, Júlia, o sr. Charrington, todos rolando juntos pelo corredor e gargalhando. Uma coisa horrível, que jazera no futuro, passara em branca nuvem e não acontecera. Estava tudo ótimo, não havia mais dor, e o último detalhe da sua vida se desnudou, compreendido, perdoado.

Estava-se levantando da cama de tábua, na meia-certeza de ter ouvido a voz de O'Brien. Durante todo o interrogatório, embora não o pudesse ver, tivera a impressão de ter O'Brien ao lado. Era O'Brien quem tudo dirigia. Mandara os guardas atacarem Winston e os impedira de o matarem. Era quem decidia quando Winston devia gritar de dor, quando devia se aliviar, quando comer, quando dormir, quando levar injeção no braço. Era quem fazia as perguntas e sugeria as respostas. Era o atormentador, o protetor, o inquisidor, o amigo. E uma vez - Winston não podia se lembrar se fôra durante o sono natural, ou dopado, ou mesmo num momento de lucidez - uma voz murmurou no seu ouvido: "Não te preocupes, Winston; estás sob minha guarda. Há sete anos que te vigio. Agora chegou o grande momento. Eu te salvarei, eu te farei perfeito." Não estava seguro de que fosse a voz de O'Brien. Mas era a mesma voz que lhe dissera "Tornaremos a nos encontrar onde não há treva," naquele outro sonho, sete anos atrás.

Não se lembrava do fim do interrogatório. Houve um período de escuridão e depois a cela, ou sala, onde estava, materializou-se lentamente em torno dêle. Estava deitado de costas, e impedido de mexer-se. Tinha o corpo preso em todos os ' pontos essenciais. Até a cabeça estava ligada. O'Brien fitava-o com gravidade e alguma tristeza. Visto de baixo, seu rosto parecia tosco e gasto, olhos empapuçados, rugas cansadas do nariz ao queixo. Era mais velho do que Winston supusera; devia ter entre quarenta e oito e cinquenta anos. Tinha na mão um mostrador com uma alavanca em cima e números em volta.

- Eu te disse que se     tornássemos a nos encontrar seria aqui.

Sim. Sem qualquer aviso, além de um ligeiro movimento da mão de O'Brien, uma onda de dor percorreu o corpo de Winston. Era uma dor assustadora, porque não podia ver o que acontecia, e tinha a sensação de que lhe infligiam um ferimento mortal. Não sabia se de fato estava acontecendo, ou se apenas o efeito era elètricamente provocado; mas sentia o corpo se deformando, as juntas dos ossos separadas, devagar. Embora a dor o fizesse suar na testa, o pior de tudo era o medo de que a espinha se rompesse. Trincou os dentes e respirou fundo, pelo nariz, procurando manter silêncio o mais possível.

- Estás com medo - disse O'Brien, observando-lhe a face - de que algo arrebente, daqui a um momento. Teu medo é que seja a espinha. Tens uma nítida imagem mental das vértebras se separando e do líquido raquiano escorrendo. Não é nisso que pensas, Winston?

Winston não respondeu. O'Brien puxou a alavanca do mostrador. A onda de dor refluiu com a mesma rapidez com que viera. Quarenta - disse O'Brien. - Como vês, os números dêste mostrador vão até cem. Lembra-te, durante tôda nossa conversa, que está em meu poder infligir-te dor a qualquer momento, no grau que eu quiser. Se me mentires, ou tentares prevaricar de qualquer modo, ou caires em

nível de ínteligência, gritarás de dor, instantâneamente. Compreendes?

- Compreendo. Os modos de O'Brien abrandaram-se. Arrumou os óculos, pensativo, e deu algumas passadas. Quando falou, foi com voz gentil e paciente. Tinha o ar de um médico, professor, ou sacerdote, ansioso de explicar e persuadir, e não de punir.

Dou-me a esta trabalheira contigo, Winston, porque vales a pena. Sabes perfeitamente qual é o teu mal. E sabes há muitos anos, embora lutasses contra o conhecimento. És mentalmente desequilibrado. Sofres de memória defeituosa. És incapaz de recordar acontecimentos reais e pensas que te lembras de outros, que nunca tiveram lugar. Felizmente, é curável. Não te curaste, porque preferiste não te curar. Não te dispuseste a fazer um esforcinho. Neste mesmo instante, sei que te agarras à tua doença, sob a impressão de que é uma virtude. Consideremos um exemplo. Neste momento, com que potência a Oceania está em guerra?

- Quando fui preso, a Oceania estava em guerra com a Lestásia.

- Com a Lestásia. Bom. E a Oceania sempre esteve em guerra com a Lestásia, não esteve?

Winston respirou fundo. Abriu a boca para falar mas calou-se. Não podia tirar os olhos do mostrador.

- A verdade, Winston, por favor. Tua verdade. Dize-me o que pensas lembrar.

- Lembro-me de que há apenas uma semana antes de ser preso, não estávamos em guerra com a Lestásia. Era nossa aliada. A guerra era contra a Eurásia, e já durava havia quatro anos. Antes...

O'Brien deteve-o com um gesto.

- Outro exemplo, - disse êle. - Há alguns anos tiveste uma alucinação muito séria. Acreditavas que três homens, três antigos membros do Partido, de nomes Jones, Aaronson e Rutherford - executados por traição e sabotagem, após uma confissão integral - não tinham cometido os crimes imputados. Acreditavas ter visto prova documental inconfundível de que as confissões dos três eram falsas. Houve uma certa fotografia em torno da qual construiste uma alucinação. Acreditavas tê-la tomado nas mãos. A fotografia era mais ou menos assim.

Um recorte retangular de jornal aparecera entre os dedos de O'Brien. Durante cinco segundos talvez ficou ao alcance da visão de Winston. Era uma fotografia, e não havia dúvidas quanto à sua identidade. Era a fotografia. Era outro exemplar da foto de Jones, Aaronson e Rutherford numa função do Partido em Nova York, a mesma que por acaso tivera em mãos, onze anos atrás, e destruira quase imediatamente. Por um instante apenas teve-a diante dos olhos, depois tornou a sumir. Mas vira-a, não havia dúvida de que a vira! Fez um esforço desesperado, agoniado, de libertar o tórax e a cabeça. Era impossível mexer-se em qualquer direção, um centímetro que fosse. Por um momento, chegara a esquecer-se do mostrador. Tudo que queria era segurar de novo a fotografia, ou pelo menos vê-la.

- Existe! - exclamou.

- Não, - disse O'Brien. Atravessou a sala. Na parede oposta havia um buraco da memória. Êle levantou a grade. Sem que o vissem, o frágil pedaço de papel foi sugado pela corrente de ar quente; desapareceria numa labareda. O'Brien voltou-se.

- Cinza - disse. - Nem mesmo cinza identificável. Pó. Não existe. Nunca existiu.

- Mas existiu! Existe! Existe na memória. Eu me lembro. Tu te lembras.

- Não me lembro - afirmou O'Brien.

O coração de Winston sossobrou. Era o duplipensar. Teve uma sensação mortal de impotência. Se ao menos pudesse ter certeza de que O'Brien mentia, não teria tanta importância. Mas era perfeitamente possível que O'Brien se tivesse esquecido da foto. E se assim fosse, já teria certamente esquecido sua negativa de se lembrar, e esquecido o esquecimento. Como era possível ter a certeza de que tudo não passava de estratagema? Esmagava-o o pensamento de que talvez pudesse de fato ocorrer aquele deslocamento lunàtico da mente.

O'Brien fitava-o com curiosidade nos olhos. Mais do que nunca tinha o ar dum mestre, dedicado a um aluno peralta mas promissor.

- Há um ditado do Partido que se refere ao controle do passado - disse êle. - Repete-o, por favor.

- "Quem controla o passado, controla o futuro; quem controla o presente controla o passado" - repetiu Winston obediente.

- "Quem controla o presente controla o passado, -disse O'Brien sacudindo a cabeça devagar. - Na tua opinião, Winston, o passado tem existência real?

De novo a sensação de impotência dominou Winston. Seus olhos contemplavam o mostrador. Não sabia qual a resposta salvadora; "sim", ou "não"? Nem ao menos sabia que resposta acreditava verdadeira.

O'Brien sorriu levemente.

- Não és metafísico, Winston. Até êste momento, não havias considerado o que significa existência. Farei uma frase mais precisa. O passado existe concretamente, no espaço? Existe em alguma parte um mundo de objetos sólidos, onde o passado ainda acontece?

-   Não.

-   Então onde é que existe o passado, se é que existe?

-   Nos registros. Está escrito.

-   Nos registros. E em-que mais?

- Na memória. Na memória dos homens.

-   Na memória. Muito bem. Nós, o Partido, controlamos todos os registros, e controlamos      todas as memórias, Nesse caso controlamos passado, não é  verdade?

- Mas como podes impedir que a gente se lembre das coisas? - exclamou Winston, de novo se esquecendo do mostrador. - É involuntário. . Está fóra do indivíduo. Como podes controlar a memória? Não controlaste a minha!

Os modos de O'Brien tornaram-se rispidos de novo. Poúsou a mão no mostrador.

- Ao contrário - disse êle. - Foste tu que não a controlaste. Por isso estás aqui. Estás aqui porque fracassaste em humildade, em disciplina. Não queres fazer o ato de submissão que é o preço da sanidade. Preferiste ser lunático, minoria de um. Só a mente disciplinada pode enxergar a realidade, Winston. Crês que a realidade é algo objetivo, externo, que existe de per si. Acreditas também que é evidente a natureza da realidade. Quando te iludes, e pensas enxergar algo, julgas que todo mundo vê a mesma coisa. Mas eu te digo, Winston, a realidade não é externa. A realidade só existe no espírito, e em nenhuma outra parte. Não na mente do indivíduo, que pode se enganar, e que logo perece. Só na mente do Partido, que é coletivo e imortal.

O que quer que o Partido afirme que é verdade é verdade. É impossível ver a realidade exceto pelos olhos do Partido. É êsse o fato que deves reaprender, Winston. Exige um ato de auto-destruição, um esforço da vontade. Deves te humilhar antes de recobrar o juizo.

Fez uma pausa de alguns momentos, como se para permitir que suas palavras calassem fundo.

- Lembras-te de escrevér no teu diário: "liberdade é a liberdade de escrever que dois e dois são quatro?"

- Lembro. O'Brien mostrou a mão esquerda, de dorso para Winston, com o polegar oculto e mostrando quatro dedos.

- Quantos dedos tenho aqui, Winston?

- Quatro.

- E se o Partido disser que não são quatro, mas cinco... quantos?

- Quatro. A palavra acabou numa exclamação de dor. O ponteiro do mostrador fôra até cinqüenta e cinco. O suor brotara em todo o corpo de Winston. O ar rasgava-lhe os pulmões e saia de novo em profundos gemidos que nem mesmo trincando os dentes êle conseguia calar. O'Brien observava-o, com os quatro dedos ainda estendidos. Puxou a alavanca. Desta vez a dor apenas diminuiu um pouco.

- Quantos    dedos, Winston?

- Quatro.

O ponteiro   subiu a sessenta.

- Quantos    dedos, Winston?

- Quatro!     Quatro!     Não  posso dizer outra coisa! Quatro!

O ponteiro   deve ter-se adiantado mais, porém êle não olhou. O rosto   largo e severo, e os quatro dedos, tomavam-lhe tôda a visão. Os dedos estavam na sua frente como colunas, enormes, e pareciam vibrar, mas não havia dúvida de que eram quatro.

- Quantos dedos, Winston?

- Quatro! Pára, pára! Como podes continuar? Quatro! Quatro!

- Quantos dedos, Winston?

- Cinco! Cinco! Cinco!

- Não, Winston. Assim não adianta. Estás mentindo. Ainda achas que são quatro. Quantos dedos, por      favor?

- Quatro! Cinco! Quatro! O que quiseres. Mas pára, pára a dor!

Abruptamente, achou-se sentado na cama, com o braço de O'Brien passado por seus ombros. Talvez tivesse perdido os sentidos por alguns segundos. Tinham-se afrouxado os laços que amarravam o seu corpo. Sentia muito frio, e tremia descontroladamente. Os dentes chocalhavam, e as lágrimas'rolavam pelas faces. Por um momento, agarrou-se a O'Brien como um nenê, curiosamente consolado pelo braço musculoso passado por seus ombros. Tinha a impressão de ser O'Brien seu protetor, de que a dor era algo que vinha de fóra, de outra fonte, e que O'Brien o salvava dela.

- Aprendes devagar, Winston, disse O'Brien, gentilmente.

- Que Posso fazer? - choramingou. - Como posso deixar de ver o que está diante dos meus olhos? Dois e dois são quatro.

- Às vezes, Winston. Às vezes são cinco. Às vezes são três. As vezes são as três coisas ao mesmo tempo. Deves fazer maior esforço. Não é fácil recobrar a razão.

Tornou a deitar Winston na cama. Apertou-se de novo a prisão nos membros, porém a dor se fôra e o tremor parara, deixando-o apenas fraco e com frio. O'Brien fez um movimento com a cabeça, dirigindo-se ao homem do avental branco, que durante tôda a cena estivera imóvel. O homem inclinou-se e examinou de perto os olhos de Winston, tateoulhe o pulso, encostou-lhe a orelha ao peito, deu tapinhas ali e aqui; depois sacudiu a cabeça positivamente.

- Outra vez - disse O'Brien. A dor percorreu o corpo de Winston. A agulha devia ter atingido setenta, ou setenta e cinco. Desta vez êle fechara os olhos. Sabia que os dedos ainda estavam ali e que ainda eram quatro. A única coisa que importava era continuar vivo até passar o espasmo. Deixou de perceber se chorava ou não. A dor tornou a diminuir. Êle abriu os olhos. O'Brien puxara a alavanca.

- Quantos dedos, Winston?

- Quatro. Imagino que sejam quatro. Veria cinco, se pudesse. Estou tentando ver cinco.

- Que desejas? Convencer-me de que vês cinco, ou de fato vê-los?

- Vê-los de fato.

- Outra vez.

O ponteiro devia ter ido a oitenta. .. noventa talvez. Winston só intermitentemente podia se lembrar porque a dor acontecia. Atrás das pálpebras cerradas, uma floresta de dedos parecia movimentar-se numa espécie de dança, entrando e saindo, desaparecendo atrás dos outros e tornando a aparecer. Tentava contá-los, mas não se lembrava porque. Só sabia ser impossível contá-los, e que isto se devia à misteriosa identidade entre o quatro e o cinco. A dor diminuiu de novo. Quando abriu os olhos foi verificar que ainda via o mesmo. Inúmeros dedos, como árvores movediças, corriam em todas as direções, cruzando e recruzando seu campo de visão. Tornou a fechar os olhos.

-   Quantos dedos estou mostrando, Winston?

- Não sei. Não sei. Me matas, se me deres dor outra vez. Cinco, quatro, seis... sinceramente, não sei.    Está melhor.

Uma agulha penetrou o braço de Winston. Quase no mesmo instante, um delicioso calor balsâmico se espalhou por todo o seu corpo. A dor já estava meio-esquecida. Abriu os olhos e fitou O'Brien com gratidão. O coração pareceu virar, à vista daquele rosto grande e enrugado, tão feio e tão inteligente. Se pudesse mexer-se, teria esticado a mão e segurado o braço de O'Brien. Nunca o estimara tão profundamente como naquele momento, e não apenas por ter parado a dor. Voltara a velha sensação, de que no fundo não tinha importância que O'Brien fosse amigo ou inimigo. Era uma pessoa com quem se podia conversar. Talvez não quisesse ser tão estimado quanto compreendido. O'Brien o torturara, levara-o à beira da loucura e, dentro em breve, certamente o mandaria à morte. Não fazia diferença. Num sentido qualquer, que ia mais fundo que a amizade, eram íntimos; nalguma parte, embora as palavras jamais fossem ditas, havia um lugar onde poderiam encontrar-se e falar. O'Brien fitava-o com uma expressão que levava a suspeitar que pensasse o mesmo. Quando falou, foi num tom fácil, de palestra.

-   Sabes onde estás, Winston?

- Não sei. Mas adivinho. No Ministério do Amor.

-   Sabes há quanto tempo estás aqui?

-   Não sei. Dias, semanas, meses. .. creio que há meses.

-   E por que imaginas que trazemos gente aqui?

-   Para obrigá-la 'a confessar.

-   Não, a razão não é essa. Tenta outra.

-   Para puni-la.

- Não! - exclamou O'Brien, cuja voz mudara extraordinàriamente. Sua face se tornara ao mesmo tempo severa e animada. - Não! Não apenas para te extrair uma confissão, nem para te punir. Queres que diga porque foste trazido aqui? Para te curar! Para te salvar da loucura! Compreenderás, Winston, que ninguém, dos que trazemos a êste lugar, sai de nossas mãos sem estar curado? Não estamos interessados nos estúpidos crimes que cometeste. O Partido não se interessa pelo ato físico; é com os pensamentos que nos preocupamos. Não apenas destruimos nossos inimigos; nós os modificamos. Compreendes o que quero dizer?

Estava inclinado sôbre Winston. Seu rosto parecia enorme por causa da proximidade, e horrivelmente feio por ser visto de baixo. Além disso, estava cheio de uma espécie de exaltação, de lunática intensidade. O coração de Winston tornou a apequenar-se no peito. Se fosse possível, êle se enterraria mais na cama. Tinha'a certeza de que o outro estava a ponto de acionar a alavanca, por pura perversidade. Nesse momento, porém, O'Brien se voltou. Pôs-se a passear de um lado para outro. Depois continuou, com menos veemencia: - A primeira coisa que deves entender é que neste lugar não há martírios. Lêste a história das perseguições religiosas na Idade Média, quando havia a inquisição. Foi um fracasso. Tinha por intúito erradicar a heresia, e por fim só conseguiu perpetuá-la. Para cada hereje queimado na fogueira, surgiram milhares de outros. Por que? Porque a inquisição matava os inimigos abertamente, e os matava quando ainda não se haviam arrependido; com efeito, matava-os porque não se arrependiam. Os homens morriam por se recusarem a abandonar as suas verdadeiras crenças. Naturalmente, tÔda a glória pertencia à vítima e a vergonha ao Inquisidor que a queimava. Mais tarde, no século vinte, houve os chamados totalitários. Os nazistas alemães, e os comunistas russos. Os russos perseguiram a heresia mais cruelmente que a inquisição. Imaginavam ter aprendido com os erros do passado; sabiam, ao menos, que era preciso não fazer mártires. - Antes de exporem suas vítimas ao julgamento público, procuravam destruir-lhes deliberadamente a dignidade. Abatiam-nos pela tortura e a solidão, até se transformarem em desprezíveis réprobos, confessando o que lhes fosse posto na boca, cobrindo-se de infâmia, acusando-se e abrígando-se atrás dos outros, choramingando misericórdia. E no entanto, apenas alguns anos mais tarde, a mesma coisa acontecia de novo. Os mortos se haviam transformado em mártires, e fôra esquecida sua degradação. Máis uma vez, por que? Em primeiro lugar, porque as confissões que haviam feito eram óbviamente extorquidas e falsas. Nós não cometemos erros dêsse gênero. Tôdas as confissões feitas aqui são verdadeiras. Nós as tornamos verdadeiras. E, acima de tudo, não permitimos que os mortos se levantem contra nós. Deves deixar de pensar que a posteridade te vindicará, Winston. A posteridade jamais ouvirá falar de ti. Serás totalmente eliminado da história. Havemos de te transformar em gás e te soltar na estratosfera. Nada restará de ti: nem um nome num registro, nenhuma lembrança na mente. Serás aniquilado no passado como no futuro. Não terás existido nunca.

Então por que se dar ao trabalho de me torturar? pensou Winston, num momento de amargura. O'Brien deteve-se em meio a um passo, como se Winston tivesse pensado alto. A carantonha aproximou-se, olhos apertados.

- Estás pensando: já que pretendemos te destruir tão completamente, de maneira que não faça a mínima diferença o que disseres ou fizeres, - nesse caso, porque nos damos ao trabalho de primeiro te interrogar, não é? Foi o que pensaste, não foi?

Foi - admitiu Winston. O'Brien sorriu ligeiramente.

- És uma falha na urdidura, Winston. És uma nódoa que precisa ser limpa. Não acabo de te dizer que somos diferentes dos promotores do passado? Não nos contentamos com a obediência negativa, nem mesmo com a mais abjeta submissão. Quando finalmente te renderes a nós, deverá ser por tua livre e espontânea vontade. Não destruimos o hereje porque nos resista; enquanto nos resiste, nunca o destruimos. Convertemo-lo, capturamos-lhe a mente, damoslhe nova forma. Nele queimamos todo o mal e tôda alucinação; trazemo-lo para o nosso lado, não em aparência, mas genuinamente, de corpo e alma. Tornamo-lo um dos nossos antes de matá-lo. É-nos intolerável que exista no mundo um pensamento errôneo, por mais secreto e inerme que seja. Nem mesmo no instante da morte podemos admitir um desvio. No passado, o hereje caminhava para a fogueira ainda herético, proclamando sua heresia, nela se gloriando. Até a vítima dos expurgos russos conseguia levar a rebelião se-

lada no crânio, enquanto ia pelo corredor à espera do tiro. Mas nós tornamos perfeito o cérebro do individuo antes de matá-lo. A ordem dos antigos despotismos era "tu não farás." Os totalitários -mudaram para "tu farás".  Nossa ordem é "tu és." Ninguém, dos que trazemos a êste lugar, se volta contra nós. Todo mundo é levado. Até mesmo aqueles miseráveis traidores, em cuja inocência um dia acreditastes -

Jone, Aaronson e Rutherford - por fim cederam. Eu mesmo tomei parte no interrogatório. E os vi se entregando aos poucos, gemendo, choramingando, rojando ao chão... e no fim não era de dor ou medo, mas de pura penitência. Quando acabamos com êles, eram apenas invólucros de homens. Neles nada restava, além da mágua pelo que haviam cometido, e amor ao Grande Irmão. Era tocante ver como o amavam. Imploravam o fusilamento sem espera, para que pudessem morrer enquanto tinham ainda o pensamento limpo.

Sua voz tornara-se quase sonhadora. A exaltação, o entusiasmo lunático, ainda estavam no seu rosto. Não está fingindo, pensou Winston. Não é hipócrita: acredita em tudo que diz. O que mais o oprimia era ter consciência da sua própria inferioridade inteletual. Observou o corpanzil, forte mas gracioso, deslocar-se de um lado para outro, fugindo ao seu campo de visão. De tôdas as maneiras, O'Brien era maior do que êle. Não havia idéia que tivesse, ou pudesse ter tido, que O'Brien, muito antes, já não tivesse conhecido, examinado e repelido. Sua mente continha a mente de Winston. Mas nesse caso, como poderia ser que fosse louco? O louco devia ser êle, Winston. O'Brien parou e tornou a olhar para êle. A voz de novo adquirira um tom ríspido:

- Não imagines que te salvarás, Winston, por mais completamente que te rendas. Quem se desvia uma vez não é nunca poupado. E mesmo que resolvamos permitir que vivas até o fim normal da tua vida, não nos escaparás. O que acontece aquí dura para sempre. Compreende isso, antecipadamente. Havemos de te esmagar até o ponto de onde não se volta. Vão te acontecer coisas das quais não poderias te recuperar nem que vivesses mil anos. Nunca mais poderás sentir sensações humanas comuns. Tudo estará morto dentro de ti. Nunca mais serás capaz de amor, ou amizade, ou alegria de viver, riso, curiosidade, coragem, ou integridade. Serás oco. Havemos de te expremer, te deixar vazio, e então saberemos como te encher. Fez uma pausa e indicou qualquer coisa ao homem do avental branco. Winston percebeu que algum aparelho pesado estava sendo colocado debaixo da sua cabeça. O'Brien sentou-se ao lado da cama, de modo a ficar com a cabeça quase no nível de Winston.

- Três mil - disse êle, dirigindo-se ao homem de branco.

Duas almofadinhas, que pareciam um tanto úmidas, foram aplicadas às fontes de Winston. Êle desacorçoou. Ia sentir dor, uma nova espécie de dor. O'Brien pousou a mão sôbre a dêle, num gesto tranquilizador, quase bondoso.

- Desta vez não dói - afirmou. - Fixa-me bem nos olhos.

Naquele momento houve uma tremenda explosão, ou o que parecia uma formidável explosão, embora Winston não tivesse certeza de ouvir barulho algum. Sem dúvida, porém, houvera um clarão ofuscante. Winston não se sentiu dorido, apenas prostrado.   Embora já estivesse deitado de costas quando sucedeu a coisa, teve a curiosa sensação de que fôra a explosão que o jogara assim. Um golpe terrível, sem dor, lançara-o abaixo. Dentro da sua cabeça, também acontecera algo. Quando seus olhos recobraram o foco, êle se lembrou quem era, onde estava, e reconheceu o rosto que o fitava de perto; mas nalgum lugar havia uma vasta área de vazio, como se lhe tivessem tirado um pedaço do miolo.

- Não dura muito - disse O'Brien. - Fita-me nos olhos. Com que país a Oceania está em guerra?

Winston pensou. Sabia o que queria dizer Oceania, e que era cidadão da Oceania. Lembrava-se também da Lestásia e da Eurásia; mas não sabia quem estava em guerra. Com efeito, não tinha ciência de nenhuma guerra.

- Não me lembro.

- A Oceania está em guerra com a Lestásia. Lembras disso?

- Lembro.

-  A Oceania sempre esteve em guerra com a Lestásia. Desde  o comêço da tua vida, desde o comêço do Partido, desde o comêço da história, a guerra continua sem interrupção, sempre a mesma guerra. Lembras disso?

- Lembro.

- Há onze anos, criaste uma lenda em tôrno de três homens que foram condenados à morte por traição. Pretendias ter visto um pedaço de papel que os provava ino-

centes. Êsse pedaço de papel nunca existiu. Tu o inventaste, e mais tarde vieste a acreditar nele. Lembras agora o momento exato em que o inventaste?

- Lembro.

- Mostrei os dedos de minha mão. Viste cinco dedos. Lembras disso?

Lembro. O'Brien levantou os dedos da mão esquerda, escondendo o polegar.

Aqui há cinco dedos. Vês cinco dedos? Vejo. E viu mesmo, por um instante fugidio, antes de mudar a cena, no seu espírito. Viu cinco dedos, sem deformidade. Depois tudo voltou ao normal, e o velho medo, o ódio e o espanto regressaram de tropel. Mas um momento houvera

- não se lembrava da súa duração, trinta segundos, talvez

- de certeza luminosa, em que cada nova sugestão de O'Brien enchera uma área de vazio e se transformara em verdade absoluta, e durante o qual dois e dois podiam perfeitamente ser cinco, se fosse necessário. Desvanecera-se antes de O'Brien ter baixado a mão. Embora não pudesse recapturá-llo, podia recordá-lo, como quem recorda uma vívida experiência num período remoto da vida, em que se foi, na verdade, uma pessoa diferente.

- Agora percebes que é possível - disse O'Brien.

- Sím. O'Brien ergueu-se com ar satisfeito. À sua esquerda, Winston viu o homem de branco quebrar o pescoço duma ampola e puxar o êmbolo duma seringa hipodérmica. O'Brien voltou-se para Winston com úm sorriso. Com o gesto familiar, rearranjou os óculos no nariz.

- Lembras-te de ter escrito no teu diário que não importava que eu fosse amigo ou inimigo, pois era ao menos uma pessoa que te compreendia e com quem se podia conversar? Tinhas razão. Gosto de conversar contigo. Tua mente me atrai. Parece-se com a minha, com a diferença -de que és louco. Antes de encerrarmos a sessão, podes me fazer algumas perguntas, se quiseres.

- Qualquer Pergunta?

- Qualquer. - Viu que os olhos de Winston estavam -no mostrador. - Está desligado. Qual é a tua primeira pergunta?

- Que foi feito de Júlia? O'Brien tornou a sorrir.

- Ela te traiu, Winston. Imediatamente... sem reservas. Raramente tenho visto uma pessoa vir a nós tão depressa. Mal a reconhecerias, se a visses. Tôda sua rebeldia, seu fingimento, sua loucura, sua sujeira mental - tudo foi queimado. Foi uma conversão perfeita, um caso de cartilha.

- Tu a torturaste. O'Brien não respondeu. Outra -pergunta.

- Existe o Grande Irmão?

- Naturalmente existe. O Partido existe. O Grande Irmão é a corporificação do Partido.

Mas existe da mesma maneira que eu existo? Tu não existes. De novo a sensação de impotência o assaltou. Sabia, ou podia imaginar, os argumentos que provavam sua não-existência; mas eram insensatos, não passavam de jôgo de palavras. Não continha a afirmativa "Tu não existes" um absurdo em lógica? Mas de que adiantava dizê-lo? Sua mente encolhia-se só de pensar nos argumentos loucos, irrespondíveis, com que O'Brien o demoliria.

- Creio que existo - respondeu. - Tenho consciencia de minha própria identidade. Nasci, e morrerei. Tenho braços e pernas. Ocupo um determinado ponto no espaço. Ao mesmo tempo, nenhum outro sólido pode ocupar o mesmo ponto. Nesse sentido, existe o Grande Irmão?

- Não tem importância. Existe.

- O Grande Irmão morrerá?

- Lógico que não. Como poderia morrer?  Outra pergunta.

- Existe a Fraternidade?

- Isso nunca saberás, Winston. Se resolvermos te pôr em liberdade quando acabarmos a tarefa, e mesmo que vivas até os noventa, nunca saberás se a resposta a essa pergunta é Sim ou Não. Enquanto viveres será um enigma insolvível na tua cabeça.

Winston guardou silêncio. Seu peito ofegou um pouco mais depressa. Ainda não fizera a pergunta que lhe viera em primeiro lugar à mente. Tinha de fazê-la, e no entanto era como se a língua se recusasse. Havia uma sombra de jocosidade no rosto de O'Brien. Até os seus óculos pareciam despedir lampejos irônicos. Êle sabe, pensou Winston de

repente, êle sabe o que vou perguntar! E a isso as palavras lhe brotaram dos lábios:

- O que é a Sala 101? Não mudou a expressão do rosto de O'Brien. Respondeu secamente:

- Sabes o que há na Sala 101, Winston. Todo mundo sabe o que há na Sala 101.

Apontou com o dedo o homem de branco. Evidentemente., encerrara-se a sessão. A agulha mergulhou no braço de Winston. Quase imediatamente êle mergulhou no sono profundo.

20

- Há três estágios na tua re-integração - disse O'Brien.

- Aprender, compreender e aceitar. É hora de iniciares o segundo.

Como sempre, Winston jazia em decúbito dorsal. Mas já não se sentia tão fortemente ligado. Ainda estava amarrado à cama, porém podia mexer um pouco os joelhos, mover a cabeça de um lado para outro e levantar os braços, dobrando os cotovelos. O mostrador, também, já não o aterrorizava tanto. Podia fugir às suas picadas se fosse bastante alerta: em geral era quando demonstrava estupidez que O'Brien acionava a alavanca. Às vezes, atravessavam uma sessão inteira sem que o aparelho fosse usado. Não podia lembrar-se de quantas sessões sofrera. Todo o processo parecia prolongar-se por um período enorme, indefinido - semanas, possívelmente - e o intervalo entre as sessões às vezes era de alguns dias, outras de apenas uma hora ou duas.

- Enquanto estás aí deitado - disse O'Brien - muitas vezes perguntas a ti mesmo... e até a mim... por que é que o Ministério do Amor gasta tanto tempo e tanto esfôrço contigo. E quando eras livre também te admirava essencialmente a mesma pergunta. Podias perceber a mecânica da sociedade em que vivias, mas não os motivos orientadores. Lembras-te de que escreveste no teu diário "Compreendo como; não compreendo por que?" Era quando pensavas no por que" que duvidavas do teu estado mental. Leste o livro, o livro de Goldstein, ou trechos dêle, pelo menos. Reveloute alguma coisa que já não soubesses?

- Leste o livro?

- Eu oescrevi. Isto é, colaborei na sua autoria. Nenhum livro é produzido individualmente, como sabes.

- E é verdade o que diz o livro?

- Como descrição   é. O programa que estabelece é insensato. O entesouramento secreto da sabedoria... a propagação gradual do esclarecimento... por fim uma rebelião proletária... a derribada do Partido. Tu mesmo previste o que êle diria. É tudo bobagem. Os proletários nunca se revoltarão, em mil anos, ou num milhão de anos., Não podem. Não preciso dizer-te a razão: já a conheces. Se algum dia acariciaste sonhos de insurreição violenta, deves abandoná-los. Não há maneira de se deitar o Partido abaixo.

O domínio do Partido é eterno. Isso deve ser o ponto de partida dos teus pensamentos.

Aproximou-se mais da cama.

- Eterno! - repetiu. - E agora, voltemos à        questão do como e do por que. Compreendes bem como o          Partido se mantém no poder. Agora, dize-me, porque nos agarramos ao poder. Qual é o nosso motivo? Por que devemos querer o poder? Vamos, fala - acrescentou, vendo que Winston calava.

Não obstante, Winston continuou calado por mais alguns instantes. Dominara-o uma profunda sensação de cansaço. Voltara ao rosto de O'Brien o débil e dôido lampejo de entusiasmo. Êle sabia de antemão o que diria Ó'Brien. Que o Partido não buscava o poder em seu próprio benefício, mas pelo bem da maioria. Que procurava o poder porque os homens da massa eram criaturas débeis e covardes que não podiam suportar a liberdade nem enfrentar a verdade, e que deviam ser dominados e sistemàticamente defraudados por outros, mais fortes que êles. Que para o gênero humano a alternativa era liberdade ou felicidade e que, para a grande maioria, era preferível a felicidade. Que o Partido era o eterno guardião dos fracos, uma seita dedicada fazendo o mal para que o bem pudesse reinar, sacrificando sua própria felicidade à felicidade alheia. O terrível, raciocinou Winston, o terrível era que, dizendo isso, O'Brien estaria sendo sincero. Via-se-lhe na fisiononiia. O'Brien sabia tudo. Mil vezes melhor que Winston, sabia como o mundo era, na realidade, em que degradação vivia a massa dos seres humanos e por ráeio de que mentiras e barbaridades o Partido os mantinha nesse nível. Compreendia tudo, pesava-o, e não fazia diferença: era tudo justificado pelo intuito derradeiro.

Que podes fazer, pensou Winston, contra o lunático que é mais inteligente que tu, que ouve equânime os teus argumentos e simplesmente persiste na sua loucura?

- Vós nos governais em nosso próprio benefício -

disse, com um fio de voz. - Acreditais que os seres humanos não têm capacidade para se governar e    porisso...

Deu um estremeção e quase gritou. Uma descarga dolorosa lhe percorrera o corpo. O'Brien levara ao trinta e cinco o ponteiro do aparelho.

- Isso foi cretino, Winston, cretino! Bem sabes que não devias dizer uma coisa dessas.

Levou a alavanca à posição neutra e continuou:

- Eu responderei minha pergunta. O Partido procura o poder por amor ao poder. Não estamos interessados no bem-estar alheio; só estamos interessados no poder. Nem na riqueza, nem no luxo, nem em longa vida de prazeres: apenas no poder, poder puro. O que significa poder puro já compreenderás, daqui a pouco. Somos diferentes de tÔdas as oligarquias do passado, porque sabemos o que estamos fazendo. Tôdas as outras, até mesmo as que se assemelhavam conosco, eram covardes e hipócritas. Os nazistas alemães e os comunistas russos muito se aproximaram de nós nos métodos, mas nunca tiveram a coragem de reconhecer os próprios motivos. Fingiam, talvez até acreditassem, ter tomado o poder sem querer, e por tempo limitado, e que bastava dobrar a esquina para entrar num paraíso onde os seres humanos seriam iguais e livres.  Nós não somos assim. Sabemos que ninguém jamais toma o      poder com a intenção de largá-lo. O poder não é um meio,    é um fim em si. Não se estabelece uma ditadura com o fito de salvaguardar uma revolução; faz-se a revolução para estabelecer a ditadura.

O objetivo da perseguição é a perseguição. O objetivo da tortura é a tortura. O objetivo do poder é o poder. Agora começas a me compreender?

Winston ficou admirado, como já ficara antes, pelo cansaço do rosto de O'Brien. Era forte, carnudo e brutal, cheio de inteligência e de uma espécie de paixão controlada diante da qual êle se sentia inerme; mas estava cansado. Tinha olheiras fundas, e as bochechas estavam flácidas. O'Brien inclinou-se sôbre êle, aproximando de propósito a cara gasta.

- Estás pensando que meu rosto está velho e cansado. Estás pensando que falo do poder, e no entanto não consigo deter a deterioração do meu próprio corpo. Não podes com-

preender, Winston, que o indivíduo é apenas uma célula?

O cansaço da célula é o vigor do organismo. Acaso morres quando aparas as unhas?

Afastando-se da cama e pôs-se a passear de um lado para outro, com a mão na algibeira.

- Somos os sacerdotes do poder - disse. - Deus é poder. Mas no momento, para ti, poder é apenas uma palavra. É tempo de teres uma idéia do que significa poder. A primeira coisa que deves entender é que o poder é coletivo. O indivíduo só tem poder na medida em que cessa de ser indivíduo. Conheces o lema do Partido: "Liberdade é Escravidão." Já te ocorreu que é reversível? Escravidão é liberdade. Sózinho, livre, o ser humano é sempre derrotado. Assim deve ser, porque todo ser humano está condenado a morrer, que é o maior dos fracassos. Mas se puder realizar uma submissão completa, total, se puder fugir à sua identidade, se puder fundir-se no Partido então êle é o Partido, e é onipotente e imortal. A segunda coisa que deves entender é que poder é o poder sôbre todos os entes humanos. Sôbre o corpo mas, acima de tudo, sôbre a mente. O poder sôbre a matéria - realidade externa, como a chamarias -não é importante. E o nosso poder sôbre a matéria já é absoluto.

Por um momento, Winston ignorou o mostrador. Fez um violento esfôrço para se sentar, e só conseguiu torcer o corpo dolorosamente.

- Mas como podes controlar a matéria? - explodiu.

- Não consegues nem dominar o clima nem a lei da gravidade. E há a doença, a morte, a dor...

O'Brien calou-o com um gesto.

- Controlamos a matéria porque controlamos a mente. A realidade está dentro da cabeça. Aprenderás aos poucos, Winston. Não há nada que não possamos fazer. Invisibilidade, levitação. .. tudo. Eu poderia flutuar no ar, como uma bolha de sabão, se quisesse. Mas não quero, porque o Partido não o deseja. Deves abandonar essas idéias século dezenove a respeito das leis da Natureza. Nós fazemos as leis da natureza! Não fazeis! Não sois donos do planeta. E a Eurásia e a Lestásia?  Ainda não as vencestes.

-Não importa. Haveremos de dominá-las quando nos convir. E se não, que diferença faz? Podemos bani-las da exístencia. A Oceania é o mundo.

- Mas se o mundo não passa dum grão de pó! E o homem é minúsculo - inerme! Há quanto tempo existe? Durante milhões de anos a terra foi desabitada.

- Tolice. A terra é tão velha quanto o homem, e nada mais. Como poderia ser mais velha? Nada existe excepto pela via da consciência humana.

- Mas as rochas estão cheias de ossos de animais extintos - mamutes, mastodontes, e répteis enormes que viveram aqui muito antes do homem aparecer.

- Já viste êsses ossos, Winston?     Naturalmente não. Os biólogos do século dezenove os inventaram. Antes do homem, não havia nada. Depois do homem, se por acaso acabasse, nada haveria. Fóra do homem não há nada.

- Mas o universo inteiro está fora de nós. Considera as estrelas. Algumas estão a um milhão de anos-luz de distância. Estão para sempre fóra de nosso alcance.

- Que são estrelas? - indagou O'Brien, indiferente.

- São pedacinhos de fogo a alguns quilômetros de distância. Poderíamos alcançá-las, se quiséssemos. Ou poderíamos apagá-las. A terra é o centro do universo. O sol e as estrêlas giram em tôrno dela.

Winston fez outro movimento convulso. Desta vez porém não disse nada. O'Brien continuou, como se respondesse a uma objeção falada:

- Naturalmente, isso não é verdade, para certos propósitos. Quando navegamos no oceano, ou quando predizemos um eclipse, muita vez nos convém supor que a terra rode em tôrno do sol e que as estrêlas estão a milhões e milhões de quilômetros de distância. E daí? Imaginas que não podemos produzir um sistema dual de astronomia? As estrêlas podem estar longe ou perto, conforme precisarmos. Supões que os nossos matemáticos não dão conta do recado? esqueceste do duplipensar?

Winston encolheu-se na cama. Dissesse o que dissesse, a pronta resposta esmagava-o como uma paulada. E no entanto sabia, sabia que tinha razão. A teoria de que nada existe fóra da mente humana - com certeza havia um meio de demonstrá-la falsa? Não fôra denunciada e provada falsa, havia muito tempo? Isso até tinha um nome, que êle esquecera. Um vago sorriso animou as comissuras dos lábios de O'Brien, que voltara a fitá-lo:

- Eu te disse, Winston, que a metafísica não era o teu forte. A palavra que estás procurando encontrar é "solip-

sismo". Mas estás enganado. Não é solipsismo. Solipsismo coletivo, se quiseres. Mas é diferente: na verdade, é o oposto. Tudo isto não passa de digressão - acrescentou, em tom mudado. - O verdadeiro poder, o poder pelo qual temos de lutar dia e noite, não é o poder sôbre as coisas, mas sôbre os homens. - Fez uma pausa e por um momento tornou a assumir o ar de mestre-escola interrogando o aluno esperto:

- Como é que um homem afirma o seu poder sôbre outro, Winston?

Winston refletiu.

- Fazendo-o sofrer.

- Exatamente. Fazendo-o sofrer. A obediência não basta. A menos que sofra, como podes ter certeza de que êle obedece tua vontade e não a dêle? O poder reside em infligir dor e humilhação. O poder está em se despedaçar os cérebros humanos e tornar a juntá-los da forma que se entender. Começas a distinguir que tipo de mundo estamos criando? É exatamente o contrário das estúpidas utopias hedonísticas que os antigos reformadores imaginavam. Um mundo de medo, traição e tormento, um mundo de pisar ou ser pisado, um mundo que se tornará cada vez mais impiedoso, à medida que se refina. O progresso em nosso mundo será o progresso no sentido de maior dor. As velhas civilizações proclamavam-se fundadas no amor ou na justiça. A nossa funda-se no ódio. Em nosso mundo não haverá outras emoções além do medo, fúria, triunfo e auto-degradação. Destruiremos tudo mais - tudo. Já estamos liquidando os hábitos de pensamento que sobreviveram de antes da Revolução. Cortamos os laços entre filho e pai, entre homem e homem, entre mulher e homem. Ninguém mais ousa confiar na espôsa, no filho ou no amigo. Mas no futuro não haverá espôsas nem amigos. As crianças serão tomadas das mães ao nascer, como se tiram os ovos da galinha. O instinto sexual será extirpado. A procreação será uma formalidade anual como a renovação de um talão de racionamento. Aboliremos o orgasmo. Nossos neurologistas estão trabalhando nisso. Não haverá lealdade, excepto lealdade ao Partido. Não haverá amor, excepto amor ao Grande Irmão. Não haverá riso, excepto o riso de vitória sôbre o inimigo derrotado. Não haverá nem arte, nem literatura, nem ciência. Quando formos onipotentes, não teremos mais necessidade de ciência. Não haverá mais distinção entre a beleza e a feiura. Não haverá curiosidade, nem fruição do processo da vida.   Todos os prazeres concorrentes serão destruidos. Mas sempre... não te esqueças, Winston... sempre haverá a embriaguez do poder, constantemente crescendo e constantemente se tornando mais sutil. Sempre, a todo momento, haverá o gôzo da vitória, a sensação de pisar um inimigo inerme. Se queres uma imagem do futuro, pensa numa bota pisando um rosto humano - para sempre.

Fez uma pausa, como esperando que Winston falasse. Winston de novo tentara se encolher sôbre a cama. Não podia dizer nada.     Seu coração parecia gelado. O'Brien continuou:

- E lembra-te de que é para sempre. O rosto estará sempre ali para ser pisado. O herege, o inimigo da sociedade, ali estará sempre, para ser sempre derrotado e humilhado. Tudo que sofreste desde que estás em nossas mãos

- tudo continuará, e pior. A espionagem, as traições, as prisões, as torturas, as execuções, os desaparecimentos jamais cessarão. Será tanto um mundo de terror quanto de triunfo. Quanto mais poderoso o Partido, menos tolerante: mais débil a oposição ,mais rígido o despotismo. Goldstein e suas heresias viverão sempre. Todo dia, a todo momento, serão derrotados, desacreditados, ridicularizados, cuspidos - e no entanto sempre sobreviverão. Éste drama que representei contigo durante sete anos será representado inúmeras vezes, geração após geração, sempre em formas mais sutis. Sempre teremos aqui o herege à nossa mercê, gritando de dor, quebrado, desprezível - e no fim completamente arrependido, salvo de si próprio, rastejando aos nossos pés por sua própria vontade. É êsse o mundo que estamos preparando, Winston, um mundo de vitória após vitória, de triunfo sôbre triunfo sÔbre triunfo: infinda pressão, pressão, pressão sôbre o nervo do poder. Vejo que começas a perceber o que será o mundo. Mas no fim farás mais do que compreender. Tu o aceitarás, aplaudirás, farás parte dêle.

Winston recobrara-se o suficiente para falar.

- Não podes! - disse, dèbilmente.

- Que queres dizer com isso?

- Não podes criar um mundo como o que descreveste. É um sonho. É impossível.

- Por que?

- É impossível fundar uma civilização sôbre medo, ódio e crueldade. Nunca poderia durar.

- Por que não?

- Não teria vitalidade.     Desintegrar-se-ia.    Suicidarse-ia. Tolice. 'Tens a impressão de que o ódio cansa mais que o amor. Por que cansaria mais? E se cansasse, que diferença faria?    Suponhamos que resolvemos nos gastar mais depressa. Suponhamos que aceleramos o ritmo da vida humana, de modo que estamos senis aos trinta anos. Que diferença faria? Não podes compreender que a morte do indivíduo não é morte? O Partido é imortal.

Como de praxe, a voz martelara Winston, mostrando sua impotência. Além disso, temia que, se persistisse em discordar, O'Brien tornasse a virar o ponteiro. E no entanto não podia se calar. - Dèbilmente, sem argumentos, sem nada que o apoiasse além do seu horror inarticulado ao que dissera O'Brien, voltou ao ataque.

- Não sei... não me importa. De algum modo, haverá de falhar. Algo vos derrotará. A vida vos derrotará.

Nós controlamos a vida, Winston, em todos os seus níveis. Imaginas que existe uma coisa às vezes chamada natureza humana, que se enfurece como o que fazemos e que se voltará contra nós. Mas nós criamos a natureza humana. Os homens são infinitamente maleáveis. Ou talvez tenhas voltado à velha idéia de que os proletários ou os escravos se levantarão e nos derrubarão. Perde a esperança. São inermes, como os animais. A humanidade é o Partido. Os outros estão de fora. .. não contam.

- Não me importa. No fim haverão de vos derrotar. Mais cedo ou mais tarde verão o que sois, e então vos estraçalharão.

- Vês algum sinal de que isso aconteça? Alguma razão para que aconteça?

- Não. É o que acredito. Sei que falhareis. Há algo no universo - não sei o que, um espírito, um princípio -

que  nunca podereis vencer.

Acreditas em Deus, Winston? Não. Então o que é êsse princípio que nos derrotará? Não sei. O espírito do Homem. E tu te consideras homem? Sim. Se és homem, Winston, és o último homem. Tua raça está extinta. Nós somos os herdeiros. Entendes que estás sózinho? Estás fóra da história, tu és não-existente. - Seus modos mudaram e êle disse, mais brusco: - E te consideras moralmente superior a nós, com nossas mentiras e nossa crueldade?

- Sim, eu me considero superior. O'Brien não falou. Duas outras vozes falavam. Dali a um momento, Winston reconheceu como sua uma delas. Era uma gravação da conversa que tivera com O'Brien, na noite em que se ligara à Fraternidade. Ouviu-se prometendo mentir, roubar, forjar, assassinar, incentivar a toxicomania e a prostituição, a disseminação de doenças venéreas, atirar vitríolo no rosto duma criança. O'Brien teve um pequeno gesto de impaciência, como se dissesse que mal valia a pena fazer a demonstração. Êle apertou um botão e as vozes calaram-se.

- Levanta-te dessa cama - ordenou. Os laços se haviam afrouxado. Winston alcançou o chão com os pés e levantou-se titubeando.

- És o último homem - disse O'Brien. - És o guardião do espirito humano. Já verás que aspecto tens. Despe-te.

Winston desamarrou o barbante que servia de cinto ao macacão. Havia muito tempo que se fôra o zip, violentamente arrancado. Não podia se recordar de nenhuma ocasião, desde que fôra preso. em que se despira totalmente. Por baixo do macacão, tinha o corpo enrolado em imundos trapos amarelados, mal reconhecíveis como restos de roupa de baixo. Ao largá-las no chão, viu que havia no extrêmo do aposento um jôgo de três espelhos. Aproximou-se dêle e parou de repente. Um grito involuntário lhe rompeu dos lábios.

- Anda - disse O'Brien. - Cola-te entre os espelhos. Poderás te ver de lado, como de frente.

Êle se detivera porque estava com medo. Caminhava ao seu encontro um espantalho esquelético, curvado e cinzento.  Era a sua aparência que dava medo, e não apenas o fato de saber que se tratava dêle mesmo. Aproximou-se do cristal. A cara da criatura parecia se projetar, por causa do corpo arcado. Uma cara triste de presidiário, com a testa ossuda se prolongando pelo crânio calvo, um nariz adunco e zigomas salientes, acima dos quais os olhos apareciam vigilantes e ferozes.   As faces estavam cobertas de sulcos, a boca chupada para dentro. Com certeza, era o seu rosto, mas lhe parecia ter mudado mais do que mudara por dentro. As emoções que revelava seriam diferentes das que sentia.

Ficara parcialmente calvo. A princípio, pensoU que o cabelo agrisalhara também, mas apenas o couro cabeludo se tornara cinzento. Com exceção das mãos e um círculo no rosto, o corpo todo estava coberto de gafeira antiga, entranhada. Aqui e ali, sob a sujeira, viam-se cicatrizes vermelhas de ferimentos, e perto do tornozelo a variz ulcerada era uma só massa inflamada, soltando cascas de pele. O que mais aterrorizava porém era o aspecto geral do corpo. O tórax, com as costelas de fora, ficara estreito como o de um esqueleto; as pernas tinham emagrecido tanto que os joelhos eram mais grossos que as coxas. Agora percebia o que O'Brien tivera em mente ao lhe sugerir que se visse de lado. Era espantosa a curvatura da espinha. Os ombros magros arcavam-se para a frente, formando uma cavidade no peito, e o pescoço fininho parecia formar um U sob o peso da cabeça. Se lhe perguntassem, poderia dizer que se tratava do corpo dum homem de sessenta anos, vítima duma doença maligna.

- Pensaste às vezes - disse O'Brien - que minha cara... a cara dum membro do Partido Interno... parece velha e cansada. Que achas agora da tua?

Agarrou Winston pelos ombros e fê-lo dar meia volta, de maneira a fitá-lo de frente.

- Olha o estado em que estás! Olha a imundície que recobre o teu corpo. Olha a sujeira entre      teus artelhos. Olha essa nojenta ferida na tua perna. Sabes que fedes como um bode? Provàvelmente já não consegues mais sentí-lo. Olha a tua magreza. Vês? Com o polegar e o indicador dou volta ao teu biceps. Poderia quebrar teu pescoço como se fosse uma cenoura. Sabes que perdeste vinte e cinco quilos desde que caíste em nossas mãos? Até o teu cabelo está caindo aos punhados. Olha! - Puxou o cabelo de Winston e arrancou um maço de cabelo. - Abre a boca. Nove, dez, onze dentes restam. Quantos tinhas quando vieste a nós? E os poucos que te sobram estão caindo atoa. Olha só!

Agarrou um dos incisivos restantes de Winston com o polegar e o indicador. Um arrepio de dor percorreu o maxilar de Winston. O'Brien arrancara-lhe o dente pela raiz. Atirou-o ao chão.

- Estás apodrecendo. Estás caindo aos pedaços. Que és tu? Um saco de lixo. Agora, volta-te e olha-te de novo no espelho. Vês aquela coisa te olhando? É o último homem.

Se és humano, a humanidade é aquilo. Agora, torna a vestir-te.

Winston pôs-se a vestir-se com gestos lentos e rigidos. Até ali não havia notado como estava magro e fraco. Só um pensamento lhe agitava a mente: devia ter estado preso mais tempo do que imaginára. De repente, fixando os trapos miseráveis que o vestiam, dominou-o um fundo sentimento de pena do seu corpo arruinado. Sem saber o que fazia, deixou-se cair num mocho que havia junto à cama, e rompeu em pranto. Sabia da sua feiura, da sua falta de graça, do feixe de ossos em imunda roupa de baixo, chorando, sentado sob a luz violenta; mas não era possível parar. O'Brien pousou no seu ombro a mão quase bondosa.

-  Não durará sempre. Podes fugir disto quando quiseres. Tudo depende de ti.

-  Tu o fizeste! - soluçou Winston. - Tu me reduziste a êste estado.

-  Não, Winston. Foste tu mesmo. Foi o que aceitaste quando te voltaste contra o Partido. Continha-se tudo no primeiro ato. Não aconteceu nada que não previsses.

Calou-se por um instante. Depois continuou:

- Nós te batemos, Winston. Nós te vencemos a resistência. Viste que aspecto tem teu corpo. Tua mente está no mesmo estado. Não creio que possa restar muito orgulho em ti. Foste escoiceado, chibateado e insultado, gritaste de dor, rolaste no chão, melando-te no teu sangue e teu vômito. Choramingaste pedindo misericórdia, traiste todo mundo e tudo. Podes imaginar alguma degradação que não te haja acontecido?

Winston parára de chorar, embora as lágrimas ainda brotassem nos seus olhos. Ergueu a vista para O'Brien.

- Não traí Júlia. O'Brien fitou-o contemplativo.

- Não - concordou. - Não. É verdade. Não traiste Júlia.

Inundou de novo o coração de Winston aquela reverência particular pelo seu torturador, que nada parecia conseguir extirpar. Como era inteligente, pensou êle, como era inteligente! O'Brien nunca deixava de compreender o que se lhe dissesse. Qualquer outro no mundo responderia prontamente que êle traira Júlia. Pois havia algo que não lhe houvessem arrancado na tortura?       Contara-lhes tudo que sabia a respeito da moça, seus hábitos, seu caráter, sua vida

passada; confessara até os detalhes mais insignificantes, tudo quanto acontecera nos seus encontros, tudo que lhe havia dito e tudo quanto ela lhe dissera; seus víveres do mercado negro, seus adultérios, suas vagas conspiratas contra o Partido... tudo. E no entanto, no sentido a que se referia, não a havia traído. Não deixara de amá-la; seus sentimentos em relação a ela continuavam na mesma. O'Brien percebera o significado de suas palavras sem precisar explicar.

- Dize-me - perguntou - quando me matarão?

- Ainda pode demorar muito - respondeu O'Brien.

- És um caso difícil. Mas não te desesperes. Mais cedo ou mais tarde todos se curam. No fim te daremos um tiro.

21

Estava muito melhor. Engordava e ficava mais forte cada dia, se é que podia falar de dias.

A luz branca e o zumbido eram os mesmos de sempre, porém a cela era um pouco mais confortável que as outras em que estivera. Havia um travesseiro e um colchão na cama de tábua, e lhe permitiam lavar-se com certa frequência na bacia de folha. Até lhe davam água morna para se lavar. Haviam fornecido roupa de baixo nova e um macacão limpo. Tinham pensado a úlcera com uma pomada. Haviam tirado os restos dos dentes e lhe dado um jôgo de dentaduras.

Deviam ter passado semanas ou meses. Agora seria possível marcar a passagem do tempo, se tivesse interêsse em o fazer, pois o alimentavam a intervalos aparentemente regulares. Acreditava que lhe davam     três refeições cada vinte e quatro horas; às vezes, raciocinava vagamente se as recebia de dia ou de noite. A comida era surpreendentemente boa, com carne de três em três refeições. Certa vez veio até um maço de cigarros. Não tinha fósforos, porém o guarda mudo que lhe trazia a comida lhe dava fogo. Da primeira vez que tentou fumar enjoou muito, porém perseverou, e fez o maço durar muito tempo, fumando meio-cigarro após a refeição.

Haviam-lhe dado uma ardósia branca, com um toco de lapis amarrado à moldura. A princípio não a usou. Mesmo quando deSperto sentia-se completamente entorpecido. Muitas vezes deixava-se ficar na cama de uma refeição à outra, quase sem se mexer, ora dormindo, ora mergulhado em vagas elocubrações durante as quais não valia a pena abrir os olhos. Havia muito que se acostumara a dormir com a luz forte no rosto. Parecia não fazer diferença. à exceção dos sonhos, que se tornavam mais coerentes. Sonhava muito, e eram

sempre sonhos alegres. Estava na Terra Dourada, ou então sentado entre enormes ruinas, gloriosas, banhadas de sol, em companhia de sua mãe, Júlia, O'Brien - sem fazer nada, apenas sentados ao sol, conversando de coisas pacíficas. Os pensamentos que tinha quando desperto eram principalmente relativos aos sonhos. Parecia ter perdido o poder do esfôrço intelectual, agora que terminara o estímulo da dor. Não estava aborrecido; não tinha o menor desejo de palestra ou distração. Bastava-lhe estar só, não apanhar nem ser interrogado, ter bastante que comer e sentir-se limpo de corpo inteiro.

Aos poucos, ia dormindo menos, porém ainda não sentia ânimo de se levantar da cama. Tudo que lhe apetecia era ficar quieto, deitado, sentindo a fôrça regressar ao corpo. Apalpava-se aqui e ali, procurando certificar-se de que não era ilusão o engrossamento dos seus músculos, o esticamento da pele. Por fim, constatou sem dúvida que estava engordando; as coxas estavam positivamente mais grossas que os joelhos. Depois disso, com relutância a princípio, começou a fazer exercícios regulares.    Dentro em breve conseguia caminhar três quilômetros, calculados pelo tamanho da cela, e os ombros arcados estavam-se endireitando. Tentou exercícios mais complicados, e ficou parvo e humilhado de descobrir o que não podia fazer. O único movimento que podia fazer era andar; não podia segurar o mocho com o braço esticado, não podia ficar numa perna só sem cair. Punha-se de cócoras, e com dores horríveis na coxa e na barriga da perna conseguia levantar-se de novo. Deitava de barriga e tentava erguer-se do chão, usando as mãos. Inútil; não podia levantar-se um centímetro que fosse. Mas depois de alguns dias - mais algumas refeições - até essa façanha foi possível. Chegou a ocasião em que o lograva seis vezes seguidas. Começou a ficar verdadeiramente orgulhoso do seu corpo, e a acariciar a crença intermitente de que o rosto também devia estar voltando ao normal. Só quando por acaso punha a mão na calva é que se lembrava da face enrugada, arruinada, que o fitara do espelho.

Sua mente tornou-se mais ativa. Sentava-se na cama, de costas para a parede e ardósia nos joelhos, e punha-se a trabalhar, deliberadamente, na tarefa de se reeducar.

Capitulara; não havia dúvida. Na realidade, percebia agora que estivera pronto a capitular muito antes de tomar essa decisão. Desde o momento em que se encontrara no Ministério do Amor - e mesmo durante aqueles minutos em que êle e Júlia haviam esperado, inermes, as ordens da vóz férrea da teletela - percebera a frivolidade, a inutilidade da sua tentativa de levantar-se contra o poder do Partido. Sabia agora que havia sete anos a Polícia do Pensamento o vigiara como quem examina um besouro sob a lupa. Não havia ato físico, nenhuma palavra em voz alta, que não tivesse observado, nenhuma associação de idéias que não tivessem podido inferir. Até mesmo o grão de poeira esbranquiçada fôra reposto na capa do diário. Tinham tocado gravações, mostrando fotografias. Algumas eram fotos de Júlia e dêle. Sim, até de...      Não podia mais lutar contra o Partido. Além disso, o Partido tinha razão. Devia ter: como poderia enganar-se o cérebro imortal coletivo? Por que padrão extra-sensório poderia medir seus raciocínios? A sanidade era estatística.   Era apenas questão de aprender a pensar como o Partido. Se ao menos... !

O lápis pareceu-lhe grosso e desajeitado entre os dedos. Começou a grafar os pensamentos que lhe vinham à cabeça. Primeiro escreveu em grandes letras trêmulas:

LIBERDADE É ESCRAVIDÃO

Depois, quase sem pausa, escreveu por baixo:

DOIS E DOIS SÃO CINCO

Houve então uma espécie de pausa. Sua mente, como se fugisse de alguma coisa, parecia incapaz de se concentrar. Sabia que sabia o que vinha depois, mas no momento não podia se lembrar. Quando se recordou, foi apenas através do raciocínio consciente do que deveria ser; não veio espontâneamente. Escreveu:

DEUS É PODER

Aceitava tudo.   O passado era alterável.     O passado nunca fôra alterado. A Oceania estava em guerra com a Lestásia. A Oceania sempre estivera em guerra com a Lestásia. Jones, Aaronson e Rutherford eram réus dos crimes imputados. Nunca vira a fotografia que provava sua inocência. Nunca existira: êle a inventara. Lembrou-se de que recordara coisas contraditórias, mas eram apenas falsas lembranças, produtos de alucinação. Como tudo era fácil! Bas-

tava render-se e tudo o mais sobrevinha. Era como nadar contra uma corrente -que o levasse para trás, por mais esfôrço que fizesse, e resolveu de repente dar meia-volta e nadar a favor, em vez de opôr-se ao fluxo da água. Nada mudara, excepto sua atitude; e a coisa predestinada acontecera sempre. Mal sabia porque se havia revoltado. Tudo era fácil, excepto... !

Qualquer coisa podia ser verdade. Eram tolice as chamadas leis naturais. Era bobagem a lei da gravidade. "Se eu quisesse," dissera O'Brien, "eu poderia flutuar no ar como uma bolha de sabão." Winston raciocinara. "Se êle pensa que flutua no ar, e se eu simultâneamente pensar que o vejo flutuando, então a coisa de fato acontece." De repente, como um destroço submerso que aflora à tona, um pensamento rompeu-lhe no cérebro: "Não acontece de fato. Nós é que imaginamos. É uma alucinação." Fez o pensamento afundar instantâneamente. Era óbvia sua falácia. Pressupunha a existência, nalguma parte, fóra do indivíduo, de um mundo "real" onde coisas "reais" acontecessem. Mas como poderia existir êsse mundo? Que sabemos das coisas, excepto através de nossa mente? Tudo que acontece acontece na cabeça. E o que acontece em tôdas as mentes, de fato acontece.

Não teve dificuldade em eliminar a falácia, e não corria risco de sucumbir. Não obstante, percebia que não lhe devia ter ocorrido. O cérebro devia formar um ponto cego sempre que se apresentasse um pensamento perigoso. O processo devia ser automático, instintivo. Crimedeter, era o seu nome em Novilíngua.

Pôs-se a exercitar-se em crimedeter. Apresentava a si próprio proposições - "o Partido diz que a terra é plana," "o Partido diz que o gêlo é mais pesado que a água," - e treinava para não ver ou não compreender os argumentos que as contradiziam. Não era fácil. Necessitava grandes recursos de raciocínio e improvisação. Os problemas aritméticos provocados por uma afirmativa como por exemplo "dois e dois são cinco", estavam fóra da sua compreensão intelectual. Precisava também de uma espécie de atletismo da mente, da habilidade de num momento fazer o uso mais delicado da lógica e, no momento seguinte, ser inconsciente dos mais brutais ilogismos. A estupidez era tão necessária quanto a inteligência, e igualmente difícil de se conquistar.

Durante todo tempo, uma parte do seu espírito se indagava quando o matariam. "Tudo depende de ti" dissera O'Brien; mas sabia não haver ato consciente pelo qual aproximasse o fim. Poderia ser dali a dez minutos, ou dez anos. Poderiam metê-lo numa solitária, poderiam mandá-lo a um acampamento de trabalhos forçados, poderiam soltá-lo algum tempo como às vezes faziam. Era perfeitamente possível que antes de ser morto todo o drama da prisão e do interrogatório fosse representado de novo. A única coisa certa era que a morte nunca ocorria no momento esperado. A tradição - a tradição tácita: sabia-se, sem nunca se ter ouvido falar dela - era ser atirado pelas costas: sempre na nuca, sem aviso, quando o preso ia pelo corredor, de uma cela a outra.

Um dia - mas "um dia" não era a expressão correta,com tôda a probabilidade era no meio da noite - uma vez mergulhou num sonho estranho, feliz. Ia andando pelo corredor, à espera da bala. Sabia que viria dali a um momento. Tudo estava resolvido, esclarecido,   reconciliado. Não havia mais dúvidas, nem discussões, nem dor, nem medo. Sentia o corpo sadio e forte. Andava com     facilidade, com uma alegria de movimentos, com a sensação de caminhar ao sol. Não estava mais nos estreitos corredores  brancos do Ministério do Amor, estava na enorme passagem ensolarada, de um quilômetro de extensão, em que estivera    no seu delírio intoxicado. Estava na Terra Dourada, seguindo a senda que cortava o pasto roído de coelhos. Podia sentir o relvado curto e novo sob os pés e o sol suave no rosto. Na orla do campo via os ulmeiros, mexendo-se gentilmente, e mais além o riacho onde nadavam os mugens em espraiados verdes sob os chorões.

De repente, levantou-se com um choque de horror. O suor escorria-lhe pela espinha.    Ouvira a sua própria voz gritando:

- Júlia! Júlia! Júlia, meu amor! Júlia! Por um momento, teve uma        alucinação esmagadora da sua presença. Ela parecia estar     não apenas com êle, mas dentro dêle. Era como se tivesse     penetrado dentro da pele. Naquele momento, amou-a muito       mais do que quando estavam livres e juntos. Soube também que ainda estava viva, e precisava de auxílio.

Deitou-se de novo e tentou compor-se. Que fizera? Quantos anos mais de servidão acrescentara à sua pena, por aquele momento de fraqueza?

Dali a um momento ouviria o barulho das botas lá fora. Não era Possível que deixassem de punir uma explosão da-

quelas. Saberiam agora, se já não o soubessem, que estava rompendo o acôrdo feito. Obedecia ao Partido, mas ainda o odiava. No passado, ocultara a mente herética sob a aparência de conformidade. Agora, recuara mais um passo: na mente recuara, mas tivera esperança de manter inviolado o imo do coração. Sabia estar errado, mas preferia estar errado. Êles compreenderiam isso - O'Brien o compreenderia. Confessara tudo naquele grito tolo.

Teria de começar tudo do comêço. Poderia levar anos. Passou a mão pelo rosto, procurando se familiarizar com a nova fisionomia. Havia sulcos profundos nas faces, os zigomas eram salientes, o nariz se achatara. Além disso, depois de se olhar no espêlho, lhe haviam dado dentadu'ras novas. Não era fácil preservar a inescrutabilidade se nem sabia que feições tinha. De qualquer modo, não bastava o mero controle fisionômico. Pela primeira vez viu que para guardar segredo é preciso escondê-lo também da própria consciência. Deve-se saber todo o tempo que o segredo está ali mas, até o momento de usá-lo, é preciso não permitir que venha a furo sob nenhuma forma a que se possa dar nome. Dali por diante, não devia apenas pensar direito; devia sentir direito, sonhar direito. E todo o tempo devia guardar o seu ódio trancado dentro de si, como um corpo estranho que fosse parte dêle e no entanto desligado do resto do corpo, como uma espécie de quisto.

Um dia resolveriam matá-lo. Não era possível dizer quando aconteceria, mas uns segundos antes seria possível adivinhá-lo. Era sempre por trás, andando pelo corredor. Dez segundos bastariam. E então, de repente, sem que se pronunciasse uma palavra, sem uma interrupção no passo, sem que se alterasse uma linha do rosto - a camuflagem cairia de repente e bum! ribombariam as baterias do seu ódio.

O ódio o inundaria como uma enorme labareda, a roncar. E quase no mesmo instante bum! viria o tiro, tarde demais, ou cedo demais. Teriam destruido seu cérebro antes de recuperá-lo. O pensamento herético ficaria impune, sem arrependimento, fora do alcance do seu poder. Teriam esburacado a própria perfeição. Morrer a odiá-los, eis a liberdade.

Fechou os olhos. Era mais difícil    do que aceitar uma disciplina intelectual. Era questão de se degradar, de se mutilar. Tinha de mergulhar na maior     imundície. Que era o mais horrível e nauseante de tudo? Pensou no Grande Irmão. A face enorme (por vê-la constantemente nos cartazes, sempre pensava nela como se tivesse um metro de largura), com o espesso bigode negro e os olhos que o seguiam por tôda parte, pareceu penetrar-lhe no cérebro, por si mesma. Quais eram os seus verdadeiros sentimentos em relação ao Grande Irmão?

Houve um ruido de botas ferradas no corredor. A porta de aço abriu-se com estrépito. O'Brien entrou na cela. Atrás dêle estavam o oficial de cara de cera e os guardas de uniforme negro.

- Levanta. Vem aqui. Winston postou-se diante dêle. O'Brien pousou as mãos nos ombros de Winston e fitou-o de perto.

- Tiveste idéia de me enganar - disse êle. - Foi uma cretinice. Endireita-te mais. Olha-me no rosto.

Fez uma pausa e continuou, com tom mais sereno:

- Estás melhorando. Intelectualmente, não há quase nada errado em ti. Só emocionalmente é que não progrides. Dize-me, Winston - e lembra-te, nada de mentir; bem sabes que sempre descubro as mentiras - dize-me, quais são teus verdadeiros sentimentos em relação ao Grande Irmão?

- Eu o odeio.

- Odeias. Bom. Então chegou a hora de dares o último passo. É preciso que ames o Grande Irmão. Não basta obedecê-lo: é preciso amá-lo.

Soltou Winston com um pequeno empurrão na direção dos guardas.

- Sala 101 - ordenou.

22

A cada estágio da prisão êle soubera, ou parecera saber, em que ponto do edificio se encontrava. Era possível que houvesse ligeira diferença na pressão do ar. Ficavam no sub-solo as celas onde os guardas o tinham espancado. O quarto onde O'Brien o interrogara era bem no alto, perto do telhado. O lugar onde estava ficava muitos metros abaixo do nível do chão, tão profundo quanto era possível ir.

Era maior do que qualquer das celas em que estivera. Êle porém mal observou o ambiente. Tudo que notou foi a existência de duas pequenas mesas, bem na sua frente, ambas cobertas de feltro verde. Uma ficava a apenas um metro ou dois, e a outra mais longe, perto da porta. Estava amarrado, muito teso numa cadeira, tão fortemente ligado que não podia mexer nem a cabeça. Uma espécie de almofada comprimia-lhe a nuca, forçando-o a olhar para a frente.

Por um momento ficou só. Depois a porta se abriu e O'Brien entrou.

- Uma vez me perguntaste - disse O'Brien - o que havia na Sala 101. E eu te disse que sabias a resposta. Todos sabem. O que há na Sala 101 é a piorcoisa do mundo.

A porta tornou a abrir-se. Um guarda entrou, trazendo algo feito de arame, uma caixa, ou cesta. Colocou-o na mesa distante. Por causa da posição ocupada por O'Brien, Winston não pôde enxergar bem o que era.

- A pior coisa do mundo - disse O'Brien - varia de indivíduo para indivíduo. Pode ser o sepultamento vivo, a

morte pelo fogo, afogamento, empalamento, ou cinquenta outras mortes. Casos há em que é algo trivial, nem ao menos mortífero.

Afastou-se um pouco para o lado, de modo que Winston pudesse ver melhor o que estava sôbre a mesa. Era uma gaiola de arame, retangular, com uma alça em cima. Fixado na frente havia um objeto que parecia uma máscara de esgrima, com o lado côncavo para fóra. Embora estivesse a três ou quatro metros de distância, Winston pôde ver que a gaiola era dividida longitudinalmente em dois compartimentos, e que em cada um havia um animal. Eram ratazanas.

- No teu caso - disse O'Brien - a pior coisa do mundo são ratos.

Uma espécie de tremor de premonição, um medo de que não tinha certeza, passara por Winston assim que entrevira a gaiola. Mas naquele momento, a utilidade do objeto côncavo de repente se esclareceu. Suas entranhas pareceram liquefazer-se.

Não podes fazer isso! - exclamou num tom de falsete.    Não podes, não podes! É impossível.

Lembras-te - perguntou OBrien - dos momentos de pânico que ocorriam nos teus sonhos? Havia uma muralha de treva na tua frente, um ronco nos teus ouvidos. Havia algo terrível do outro lado da parede. Sabias que sabias o que era, mas não ousavas trazê-lo à luz. Eram ratos que estavam do outro lado da muralha.

- O'Brien!      disse Winston, fazendo um esfôrço para controlar a voz.     Sabes que isto não é necessário. Que queres que eu faça?

O'Brien não deu resposta. Quando falou, foi com os modos de mestre-escola que às vezes ostentava.         Pareceu pensativo, olhos perdidos na distância, como se se dirigisse a uma platéia colocada atrás de Winston.

- Em si - disse êle - a dor nunca é suficiente. Há ocasiões em que o ser humano resiste à dor, mesmo sob risco de morte. Mas para todos há algo insuportável - algo que não pode ser contemplado. A coragem e a covardia nada têm com isso. Se estás caindo dum lugar alto, não é covardia agarrar-te a uma corda. Se vens de águas profundas, não é covardia encher os pulmões de ar. É apenas um instinto que não pode ser desobedecido. É o mesmo com as ratazanas. Para ti, são insuportáveis. São uma forma de pressão que não podes aguentar, nem que queiras. Farás o que se te exige.

- Mas o que é, o que é? Como fazê-lo se não sei o que é?

O'Brien apanhou a gaiola e trouxe-a para a mesa mais próxima. Colocou-a cuidadosamente sôbre o feltro verde. Winston podia ouvir o sangue tinindo nas orelhas. Tinha a impressão de estar na mais absoluta solitude. Encontrava-se no meio de uma vasta planície erma, um deZerto plano banhado de sol, e os sons lhe chegavam de grandes distâncias. No entanto, a gaiola dos ratos não estava senão a dois metros dêle. Eram ratazanas enormes. Tinham a idade em que ficam com o focinho rombudo e o pelo pardo, em vez de cinzento.

- O rato - disse O'Brien, ainda se dirigindo à platéia invisível - embora roedor, é carnívoro. Bem o sabes. Ouviste falar das coisas que acontecem nos bairros pobres desta cidade. Em algumas ruas, uma mulher não ousa deixar o filhinho em casa, por cinco minutos que seja. É seguro que os ratos o ataquem. Dentro de muitíssimo pouco tempo devoram tudo, só deixam ossos. Também atacam pessoas doentes, e moribundos. Demonstram espantosa inteligência, descobrindo quando um ser humano está indefeso.

Houve uns guinchos na gaiola. Pareceram a Winston vír de muito longe. Os ratos est   avam brigando; tentavam atacar-se através da divisão de arame. Ouviu também um fundo gemido de desespêro, que também pareceu vir de fóra.

O'Brien ergueu a gaiola e, ao fazê-lo, comprimiu algo. Ouviu-se um estalido. Winston fez um esforço frenético para se livrar da cadeira. Inútil, pois todo o seu corpo, inclusive a cabeça, estavam firmemente presos, imobilizados. O'Brien aproximou a gaiola. Estava a menos de um metro do rosto de Winston.

- Apertei a primeira alavanca - disse O'Brien. -

Compreendes a construção desta gaiola. A máscara adapta-se à tua cabeça, sem deixar saída. Quando eu apertar esta outra alavanca, a porta da gaiola correrá. Os monstros famintos saltarão por ela como balas. Já viste um rato pular no ar? Pularão sôbre teu rosto e começarão a devorá-lo. Às vezes, atacam primeiro os olhos. As vezes abrem caminho pelas bochechas e devoram a língua.

A gaiola estava mais próxima; cada vez mais. Winston ouviu uma série de guinchos agudos que pareciam vir de cima, de sôbre sua cabeça. Mas lutou furiosamente contra o pânico. Pensar, pensar, mesmo que lhe restasse uma fração de segundo - pensar para a única esperança. De repente o fedor mofado dos brutos atingiu-lhe as narinas.

Dentro dêle houve uma violenta convulsão de náusea, e quase perdeu os sentidos. Tudo enegrecera. Por um instante, sentiu-se louco, um animal a gritar. Entretanto, saiu das trevas trazendo uma idéia. Só havia um, um único meio de se salvar. Precisava colocar outro ser humano, interpor o corpo de outro ser humano diante da gaiola.

O círculo da máscara era suficientemente grande para tapar a visão de tudo mais. A porta de arame estava a alguns palmos do seu rosto. Os ratos sabiam o que ia acontecer. Um dêles dava pulos no ar, e o outro, um escamoso veterano dos esgotos, se levantou, com as patas rosadas nas grades, fungando ferozmente. Winston pôde ver os bigodes e os dentes amarelos. De novo o pânico negro o possuiu. Estava cego, indefeso, insano.

- Um castigo comum na China imperial - disse O'Brien, mais pedagógicamente do que nunca.

A máscara se aproximava. O arame tocou-lhe o rosto. E então... não, não era alívio, apenas esperança, um minúsculo fragmento de esperança. Tarde demais, tarde demais talvez. Mas compreendera de repente que no mundo inteiro só havia uma pessoa a quem transferir seu castigo

- um corpo que podia colocar diante dos ratos. E pôs-se a berrar frenéticamente, repetidamente:

- Faze isso com Júlia! Faze com Júlia! Comigo não! Júlia! Não me importa o que faças a ela. Arranca-lhe a cara, desnuda-lhe os ossos. Não comigo! Com Júlia! Comigo não!

Estava caindo para trás, vertiginosamente, afastando-se dos ratos. Ainda estava amarrado à cadeira, mas caira através do soalho, através das paredes do edifício, através da terra, dos oceanos, da atmosfera, do espaço exterior, no vácuo entre as estrêlas - sempre longe, longe, longe dos ratos. Estava a uma distância de anos-luz, porém O'Brien continuava de pé ao seu lado. Sentia ainda na face o toque frio do arame. Mas dentro da escuridão que o envolvera ouviu outro estalido metálico, e soube que a porta da gaiola se fechara, não se abrira.

23

O Café Castanheira estava quase vazio. Um raio de sol, entrando em oblíqua pela janela, caia amarelo sôbre as mesas poeirentas. Era a solitária hora das quinze. Das teletelas escorria uma música metálica.

Winston sentou-se no seu recanto habitual, fitando o copo vazio. De vez em quando contemplava um rosto enorme que o olhava da parede oposta. O GRANDE IRMÃO ZELA POR TI, dizia a legenda. Sem que o chamasse, o garçon veiu e encheu-lhe o copo de Gin Vitória, pingando algumas gotas de outra garrafa com um canudinho atravessando a rolha. Era sacarina com essência de cravo, a especialidade do café.

Winston escutava a teletela. No momento, dela apenas saía música, mas havia a possibilidade de a qualquer momento divulgar um boletim do Ministério da Paz. As notícias da frente africana eram extremamente inquietadoras. O dia todo sentira-se intermitentemente preocupado com elas. Um exército eurasiano (a Oceania estava em guerra com a Eurásia: sempre estivera em guerra com a Eurásia) progredia para o sul com terrível velocidade. O boletim do meio-dia não mencionara nenhuma área definida, mas era provável que a foz do Congo já fosse um campo de batalha. Brazzaville e Leopoldville estavam em perigo. Não era preciso olhar o mapa para saber o que significava. Não era apenas questão de perder a África Central: pela primeira vez em tôda a guerra, o território da Oceania estava ameaçado.

Uma violenta emoção, que não era bem medo, mas uma espécie de excitação amorfa, se acendeu dentro dêle, e tornou a apagar-se. Deixou de pensar na guerra. Não podia fixar o pensamento em assunto algum por mais de uns momentos. Ergueu o copo e tragou o conteúdo de um gole.

Como sempre, produziu-lhe um arrepio e até lhe deu engulhos. A bebida era horrível. Os cravos e a sacarina, em si já bastante repugnantes, não conseguiam disfarçar o cheiro oleoso do álcool; e o pior de tudo era que o bafio de gin, que não o abandonava dia e noite, misturava-se indissolúvelmente, no seu espírito, com o cheiro dos. ..

Nunca lhes dizia o nome, nem mesmo em pensamento, e tanto quanto possível, nunca os visualizava. Eram algo de que êle só em parte se dava conta, mexendo-se perto do seu

rosto, com aquele fedor que se prendia às narinas. Um arroto de gin lhe entreabriu os lábios escuros. Engordara mais depois de ser posto em liberdade, e recobrara sua côr antiga - na verdade, tinha mais côr que antes. Suas feições haviam engrossado, a pele do nariz e das faces tornara-se áspera e vermelha, e até a calva tinha um tom rosa escuro. Um garçon, sem que ninguém o chamasse, trouxe um tabuleiro de xadrez e um exemplar do dia do Times, na página do problema de xadrez. Daí, vendo vazio o copo de Winston, trouxe a garrafa de gin e encheu-o. Não havia necessidade de pedír nada. Conheciam seus hábitos. O tabuleiro de xadrez estava sempre à sua espera, sua mesa de canto sempre reservada; mesmo quando o café estava cheio ali se sentava a sós, pois ninguém gostava de ser visto em sua companhia. Nem mesmo se preocupava de contar quanto bebia. A intervalos irregulares apresentavam-lhe um pedacinho de papel sujo, que passava por conta, mas tinha a impressão de que sempre lhe cobravam de menos. Não faria a mínima diferença se fosse o contr'ário. Agora sempre tinha bastante dinheiro. Tinha até um emprego, uma sinecura, mais bem paga do que fôra o seu trabalho anterior.

Parára a música da teletela, e uma voz a substituira. Winston levantou a cabeça para escutar. Não era um boletim da frente, todavia. Apenas um breve comunicado do Ministério da Fartura. Aparentemente, no trimestre anterior, fôra superada de noventa e oito por cento a cota de atacadores para sapatos do Décimo Plano Trienal.

Examinou o problema de xadrez e arrumou as pedras. Era um final complicado, com dois bispos. "As brancas jogam. Mate em dois lances." Winston ergueu os olhos para o retrato do Grande Irmão. As brancas sempre matam, pensou, numa espécie de nebuloso misticismo. Sempre, sem exceção, é o que acontece. Em nenhum problema de xadrez, desde o comêço do mundo, as pretas jamais venceram. Não

seria um símbolo do triunfo eterno, invariável, do Bem sôbre o Mal? A carantonha fitava-o, cheia de calmo poder. As brancas sempre matam.

A voz da teletela fez uma pausa e acrescentou, num tom diferente, muito mais grave:

- Avisamos que deveis    todos aguardar uma comunicação importante às quinze e trinta. Quinze e trinta! Notícias da mais alta importância! Não percais! Quinze e trinta! E a música metálica recomeçou.

Winston ofegou. Devia ser    o boletim da frente de batalha; o instinto dizia-lhe que vinham más notícias. O dia inteiro, com pequenas fases de  excitação, pensara numa esmagadora  derrota na África. Parecia-lhe ver o exército eurasiano formigando, cruzando a fronteira inviolada e invadindo a ponta da África como uma coluna de saúvas. Por que não fôra possível franqueá-lo de algum modo? A silhueta da costa ocidental da África destacou-se vividamente na sua mente. Apanhou o bispo branco e colocou-o num dos quadros. Ali estava a casa certa. Ao mesmo tempo que enxergava a horda negra disparando para o sul, via outra fôrça, misteriosamente reunida, súbitamente plantada na sua retaguarda, cortando-lhe as comunicações por terra e mar. Sentiu que, pensando nela, estava dando existência àquela outra fôrça. Mas era necessário agir ràpidamente. Se pudessem assumir o controle da África inteira, se tivessem campos de pouso e bases de submarinos no Cabo, cortariam a Oceania em duas. Poderia significar qualquer coisa: derrota, debacle, redivisão do mundo, destruição do Partido! Êle respirou fundo. Lutava dentro dêle uma extraordinária miscelânea de sentimentos - mas não era uma miscelânea, própriamente; mais uma sucessão de camadas de sentimento, e era impossível dizer qual ficava por baixo.

Passou o espasmo. Tornou a recolocar o bispo no lugar anterior, mas por um instante não pôde  dedicar-se ao estudo sério do problema de xadrez. Seus pensamentos tornaram a vaguear. Quase inconsciente, pôs-se a rabiscar com o dedo na poeira da mesa: 2+2-5

- Não podem ver dentro de ti - dissera ela. Mas, podíam entrar na pessoa. - O que te acontecer aqui será para sempre - dissera O'Brien. E era verdade. Havia coisas, atos do indivíduo, dos quais era impossível se recuperar. Algo estava morto em seu peito; queimado, cauterizado.

Êle a vira; chegara até a falar-lhe. Não havia perigo nisso. Sabia, quase instintivamente, que agora não se interessavam mais pelo que fizesse. Poderiam ter combinado novos encontros, se algum dos dois o tivesse desejado. Na verdade, haviam-se encontrado por acaso. Foi no parque, num dia feio e hostil de março, quando a terra era como ferro, tôda a relva parecia morta e não havia flor em parte alguma, excepto alguns crocus que se haviam arriscado a ser despetalados pelo vento. Êle ia andando depressa, as     mãos geladas, olhos lacrimejantes, quando a viu a menos de dez metros de distância. Imediatamente percebeu que ela mudara, de modo mal definido. Quase se cruzaram sem um gesto; mas êle voltou-se e seguiu-a, sem grande interêsse. Sabia não haver perigo, já ninguém se ocupava dêle. Ela não falou. Caminhara obliquamente, pela grama, como se tentasse se desvencilhar dêle; depois parecera resignar-se a tê-lo ao lado. Dali a pouco estavam no meio duma touceira de arbustos desfolhados e escalavrados, que não serviam nem como esconderijo nem como abrigo contra o vento. Pararam. Fazia um frio nefando. O vento assobiava por entre os galhos secos, e sacudia os pobres crocus sujos. Êle passou o braço pela cintura da moça.

Não havia teletela, mas devia haver microfones escondidos; além disso, podiam ser vistos. Não importava, nada importava. Poderiam deitar no chão e fazer aquilo se quisessem. Sua carne gelou de horror, só de pensá-lo. Ela não reagiu de modo algum ao toque do braço de Winston; nem ao menos tentou se livrar. Êle soube então o que havia mudado nela. Tinha o rosto macilento, e havia uma longa cicatriz, parcialmente oculta pelo cabelo, rasgando a testa e a fonte; mas não era essa a mudança. Sua cintura engrossara e, de modo surpreendente, enrijara também. Êle lembrou-se de um  a vez em que, após a explosão de uma bombafoguete, ajudara a puxar um cadáver debaixo dos escombros, e como se assustara não apenas com o peso incrível do corpo como também com a rigidez e a dificuldade de segurálo, que davam mais a impressão de pedra do que de carne.

O corpo dela dava aquela impressão. Ocorreu-lhe que a textura de sua pele também era muito diferente do que fôra.

Não tentou beijá-la, nem falaram. Enquanto atravessavam o portão, de volta, ela olhou-o de frente pela primeira vez. Foi apenas um olhar momentâneo, cheio de desprezo e repugnância. Êle indagou de si mesmo se se tratava de uma repugnancia oriunda do passado ou se inspirada também pelo seu rosto inchado e a água que o vento persistia em fazerlhe brotar dos olhos. Tinham sentado em duas cadeiras de ferro, de lado mas não muito juntas. Viu que Júlia estava a pique de falar. Ela esticou alguns centímetros o pé no sapato deselegante e deliberadamente quebrou um graveto. Êle observou que os pés da moça pareciam ter-se alargado.

- Eu te traí - disse ela, sem rodeios.

- Eu te traí - disse êle também. Júlia lançou-lhe outro olhar de repugnância.

- As vezes, - disse ela - ameaçam a gente com uma coisa... com coisas que não se pode aguentar, não se pode nem pensar. E então a gente diz "Não faças isso comigo, faze com outra pessoa, faze com Fulano e Sicrano." Mais tarde, talvez finjas que se tratava apenas de um estratagema, mandar que o fizessem a outro, e que não era a sério. Mas não é verdade. Na hora que acontece a gente fala sério. Pensa que não há outro jeito de se salvar; e se dispõe a salvar-se daquele modo. A gente quer que a coisa aconteça ao outro. Não se importa que sofra. Só importa a gente. Só nós temos importância.

- Só nós temos importância - repetiu êle.

- E depois disso, já não se sente o mesmo pela outra pessoa.

- Não - concordou êle - já não se sente o mesmo. Não parecia haver nada mais a dizer. O vento colava-lhes à pele os macacões delgados. Quase imediatamente, tornou-se incômodo ficar ali, calados: além disso, estava frio demais para continuarem sem se mexer. Ela disse qualquer coisa a respeito do trem subterrâneo e levantou-se.. .

- Precisamos nos encontrar outra vez - disse êle.

- Sim, precisamos nos encontrar. Seguiu-a irresoluto por alguma distância, meio passo atrás. Não tornaram a falar. Ela não procurou se desvencilhar dêle, porém andava com passo bastante rápido, de maneira a evitar que a alcançasse. Êle resolvera acompanhá-la até a estação do subterrâneo, mas de repente essa coisa de seguir uma pessoa lhe pareceu insuportável e inútil. Dominou-o o desejo não tanto de se afastar de Júlia como de voltar ao Castanheira, que nunca lhe parecera tão atraente como naquele instante. Teve uma visão saudosa da sua mesinha no canto, com o jornal, o tabuleiro de xadrez e o copo sempre cheio de gin. Sobretudo, não faria frio. No instante seguinte, e não por acaso, êle permitiu que um grupo de pessoas o separasse dela. Fez uma tentativa desanimada de alcançá-la, depois reduziu o passo, voltou-se e saiu na direção oposta. Depois de ter caminhado uns cinquenta metros, voltou-se e olhou para trás. A rua não estava cheia, mas quase não a podia distinguir. Podia ser qualquer daquelas figuras apressadas. Talvez o corpo engrossado e enrijado não fôsse mais reconhecível por trás. "Na hora que acontece a gente fala sério", dissera ela. Êle falara sério. Não apenas o dissera: desejara-o. Desejara que ela e não êle sofresse os...

Algo se modificou na música que escorria da teletela. Doniinava-a, partida e zombeteira, uma nota amarela. E então - talvez não estivesse acontecendo, talvez fosse apenas uma lembrança tomando forma de som - uma voz cantou: "Sob a frondosa castanheira Eu te vendi e tu me vendeste. . . Os olhos de Winston ficaram rasos dágua. Um garçon que passava observou o copo vazio e voltou com a garrafa de gin.

Êle ergueu o copo e cheirou-o. Quanto mais bebia, mais horrível se tornava a tisana. Mas tornara-se o elemento em que nadava. Era sua vida, sua morte, sua ressurreição. Era o gin que o mergulhava no estupor tôdas as noites, e o gin que o revigorava tôdas as manhãs. Ao despertar, rara vez antes das onze, as pálpebras coladas, a bôca ardente e as costas moídas, seria impossível abandonar a horizontal se não fossem a garrafa e a xícara no criado-mudo. Passava um par de horas sentado, olhos vazios e vidrados, garrafa à mão, escutando a teletela. Das quinze à hora de fechar estava sempre no Castanheira. Ninguém mais se importava com o que êle fizesse, nenhum apito o acordava, nenhuma teletela o admoestava. Ocasionalmente, duas vezes por semana talvez, ia a um empoeirado e esquecido escritório do Ministério da Verdade e trabalhava um pouco. Fôra nomeado para o sub-comitê de um sub-comitê que surgira de um dos inúmeros comitês que tratavam das dificuldades menores aparecidas durante a compilação da Décima Primeira Edição do Dicionário de Novilíngua. Cabia-lhes redigir um

chamado Relatório provisório, porém êle nunca descobrira a respeito do que deveriam es'crever. Parecia ligar-se à questão da colocação das vírgulas antes ou depois das aspas. Havia outros quatro no comité, todos pessoas em semelhantes condições. Havia dias em que se reuniam e logo debandavam de novo, admitindo francamente que na verdade nada tinham que fazer. Mas noutras ocasiões, atiravam-se ao trabalho quase com ânsia, fazendo uma fita enorme de minutar seus relatórios pessoais e redigir longos memorandos que nunca terminavam - quando a discussão sôbre o que deveriam discutir se tornava extraordinàriamente complicada e abstrusa, com sutis divergências sôbre definições, enormes digressões, brigas e até ameaças de recurso a autoridade superior. E então de repente o entusiasmo se apagava e êles ficavam em tôrno da mesa, entrefitando-se, com olhos defuntos, como duendes que se desvanecem ao cocoricar do galo.

A teletela calou-se um instante. Winston tornou a levantar a cabeça. O boletim! Mas não, apenas mudavam de música. Tinha o mapa da África na retina. O movimento dos exércitos era um diagrama: uma flecha negra avançando para o sul, na vertical, e uma seta branca rasgando para leste, na horizontal, cortando a haste da primeira. Como para se tranquilizar, contemplou o rosto imperturbável do cartaz. Seria concebível que a segunda flecha nem ao menos existisse?

Seu interêsse caiu de novo. Bebeu novo gole de gin, apanhou o bispo branco e deu um lance experimental. Cheque. Evidentemente, porém, não era o lance certo porque...

Sem que a chamasse, uma lembrança lhe voltou à mente. Viu um quarto iluminado a vela, com uma vasta cama, coberta por uma colcha branca, e êle próprio, com nove ou dez anos, sentado no chão, sacudindo um copo de dados e rindo-se nervosamente. Sua mãe estava sentada à sua frente e também ria.

Devia ter sido um mês antes dela desaparecer. Fôra um momento de reconciliação, em que esquecera a fome atenazante no ventre, e ressuscitara parcialmente a antiga afeição, Lembrava-se lúcidamente do dia, de chuva forte, em que a água escorría pelas vidraças e dentro da casa estava escuro demais para ler. Tornara-se insuportável o tédio das duas crianças presas num quarto escuro e apertado. Winston queixava-se e resmungava, fazia fúteis pedidos de comida, perambulava nervoso pelo quarto tirando tudo do seu lugar e dando pontapés nas paredes até os vizinhos reclamarem, dando murros do outro lado; enquanto isso, a menina gemia intermitentemente. No fim, sua mãe dissera

Fica bonzinho que eu te compro um brinquedo. Um lindo brinquedo... hás de gostar muito dêle." E saíra para a chuva, indo a uma lojinha próxima que ainda abria esporàdicamente, e voltara com uma caixa de papelão contendo um jôgo de obstáculos. Podia ainda lembrar-se do cheiro da cartolina molhada. Era um jôgo paupérrimo. A prancha da corrida de obstáculos estava rachada, e os dados de madeira eram tão toscos que mal caíam de lado. Winston fitara o brinquedo, emburrado, sem interêsse. Mas então sua mãe acendera um coto de vela e sentara no chão para jogar. Dali a pouco êle estava entusiasmado, gritando e dando gargalhadas quando as pedras subiam cheias de esperança e caíam nas arapucas, voltando quase ao ponto de partida. Tinham jogado oito partidas, ganhando quatro cada um. A irmãzinha, muito pequena para compreender o jôgo, fôra instalada entre travesseiros na cama, e ria porque via os outros rindo. Durante a tarde tôda tinham sido felizes os três, como na primeira infância.

Êle expulsou a cena da memória. Era uma lembrança falsa. De vez em quando era perturbado por essas falsas recordações. Não tinha importância, contanto que soubesse do que se tratava. Algumas coisas tinham acontecido, outras não. Concentrou-se de novo no tabuleiro e tornou a apanhar o bispo branco. Quase no mesmo instante largou-o com ruido sôbre o tabuleiro. E estremeceu como se lhe tivessem dado uma alfinetada.

Um agudo toque de clarim cortara o ar. Era o boletim! Vitória! O toque de clarim antes do noticiário sempre significava vitória. Uma espécie de arrepio elétrico percorreu o café. Até os garçons pararam prestando atenção.

O clarim provocara uma onda de barulho. Já uma voz excitada tagarelava na teletela, mas antes de começar fôra quase abafada pelos vivas e hurras na rua. A notícia se propagara como por arte de magia. Podia-se ouvir apenas o suficiente do que saía da teletela, para perceber que tudo acontecera como previra: um vasto exército transportado pelo mar, secretamente concentrado, um golpe repentino na retaguarda do inimigo, a flecha branca cortando a haste da negra. Fragmentos de frases triunfantes se faziam ouvir por entre o berreiro geral: "Vasta manobra estratégica... per-

feita coordenação...   derrota integral... meio milhão de Prisioneiros... completa desmoralização... controle de tôda a África ... leva a guerra a uma distância visível do fim... vitória ... a maior vitória da história humana... vitória, vitória, vitória! "

Sob a mesa, os pés de Winston fizeram movimentos convulsos. Não se movera do lugar, porém mentalmente estava correndo à pressa, misturando-se com a multidão, vivando até ensurdecer. Tornou a olhar o retrato do Grande Irmão.

O colosso que dominava o mundo! A rocha contra a qual as hordas da Ásia debalde se haviam arremessado! Pensou que havia apenas dez minutos - sim, dez minutos - havia dúvida em seu coração quanto ao caráter das notícias da frente de batalha: vitória ou derrota. Ah, perecera mais que um exército eurasiano! Muita coisa havia mudado nele, desde aquele primeiro dia no Ministério do Amor, porém a transformação final, salvadora, não se registrara até aquele momento.

A voz da teletela estava ainda falando de prisioneiros, presa e matança, mas lá fóra a gritaria diminuira um pouco. Os garçons tinham voltado ao trabalho. Um dêles aproximou-se com a garrafa de gin. Winston, imerso num sonho bem aventurado, não reparou quando lhe encheram o copo, Já não corria nem dava vivas. Estava de volta ao Ministério do Amor, tudo perdoado, a alma branca de neve. Estava na tribuna dos réus, confessando tudo, implicando todos. Ia andando pelo corredor de ladrilhos brancos, com a impressão de andar ao sol, acompanhado por um guarda armado. Por fim penetrava-lhe o crânio a bala tão esperada.

Levantou a vista para o rosto enorme. Levara quarenta anos para aprender que espécie de sorriso se ocultava sob o bigode negro. Oh mal-entendido cruel e desnecessário! Oh teimoso e voluntário exílio do peito amantíssimo! Duas lágrimas cheirando a gin escorreram de cada lado do nariz. Mas agora estava tudo em paz, tudo ótimo, acabada a luta. Finalmente lograda a vitória sôbre si mesmo. Amava o Grande Irmão.

 

FIM

CEP - Centro de Estudos Proféticos
contato: Robespierre@centrodeestudosprofeticos.com.br - Telefone: (71) 3492-5517